Notas Biográficas

Nascer num país pequeno.

www No dia 7 de outubro de 1930 nasci em Bruges, cidade no norte da Bélgica. Um país do tamanho de Alagoas. A maior distância, do norte ao sul da Bélgica, é de uns duzentos e cinquenta quilômetros. Um país pequeno, rodeado de vizinhos grandes (e poderosos). A cidade em que nasci, Bruges, de fala flamenga, fica a 35 km. da França, 19 km. da Holanda, 50 km. da Inglaterra e 120 km. da Alemanha. A capital da Bélgica, Bruxelas, fica a pouco mais de 100 km. Acontece que nenhum desses vizinhos era do agrado das pessoas no meio das quais me criei: a França era ‘ateia’, a Holanda ‘protestante’, a Inglaterra ‘fria’, a Alemanha ‘perigosa’. Mesmo Bruxelas nos era estranha, pois aí se fala francês e há nightclubs com strip-tease.

www Éramos ‘flamengos’. A região guardava raízes culturais anteriores à formação dos atuais estados europeus, as assim chamadas ‘nações europeias’, que é um processo dos tempos modernos. Ser ‘flamengo’, viver na ‘Flandres’ remetia aos tempos medievais, quando a Flandres tinha conquistado uma notável capacidade de resistência diante da França, que secularmente ameaçava dominar a região.

www Os estados europeus de hoje resultam de processos políticos frequentemente artificiais, com resultados nem sempre satisfatórios. Dizem que a única nação europeia sem problemas de convivência interna é a Islândia! Até hoje, o estado espanhol tem dificuldades com bascos e catalães, a Inglaterra lida com dissidentes na Escócia e na Irlanda, enquanto a Itália dificilmente consegue uma real integração nacional entre, digamos, Milão e Nápoles. Mesmo países aparentemente bom integrados, como a França e a Alemanha, contam com culturas bem diferentes dentro de suas fronteiras.

O nacionalismo

www A Bélgica é um exemplo paradigmático de artificialidade política. A fronteira linguística entre culturas tradicionalmente latinas e culturas de raiz germânica (como a flamenga) corre exatamente pela Bélgica, cuja formatação bilíngue é resultado de arranjos feitos pelo chanceler prussiano Otto von Bismarck no decorrer do século XIX. No intuito de formar um cordão ‘amortecedor’ de pequenas nações (a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e a Suíça) entre duas nações que, naquele tempo, demonstravam tendências imperialistas (a França e a Alemanha), Bismarck não enxergou outra solução senão juntar populações de língua francesa a populações que falavam a língua flamenga.

www Viver na Bélgica bilíngue constitui, pois, um desafio. Pois ambas as culturas, a latina do sul, a germânica do norte, são de difícil coexistência. Mas, penso que nenhum belga, hoje, perde o sono por causa dessa dificuldade. Aprende-se a conviver, de qualquer jeito, e mesmo de aprender com o diferente.

www Aprendi, desde meus oito anos, a falar francês. Quando meu avô nos visitava, eu me lembro, a primeira coisa que ele olhava no meu boletim de escola era meu desempenho no estudo do francês. Não queria saber se eu era bom em religião ou em matemática, não. Só olhou para os resultados em francês. E ficou satisfeito: Vai bem em francês, vai ser gente!. No seu entendimento, falar francês era absolutamente fundamental para ‘ser gente’.

www Mas existia, de outro lado, um forte sentimento regionalista. No fundo, a gente não queria ser um ‘bom belga’, mas um ‘bom flamengo’. Essa raiz era muito funda. A cultura flamenga era de teor bastante conservador, de certo modo até xenófobo. A ideia era que nós tínhamos de reagir contra o chamado ‘mundo’. O símbolo mais próximo desse ‘mundo perverso’ era Bruxelas, porque lá tinha cinema com Brigitte Bardot, tinha ‘Night Club’, tinha striptease, coisa absolutamente inimaginável em Flandres. Além disso, ali se falava francês. Pior era Paris, que fica a 500 km., a terra para onde os flamengos viajavam para cometer o grande pecado de sua vida: ver mulheres dançando levantando a saia, no Moulin Rouge.

A Grande Guerra 1940-1945.

www A Grande Guerra, de certo modo, interrompeu minha infância. Ela irrompeu em 1940, quando eu tinha dez anos. O exército de Hitler passou por cima da Bélgica em oito dias e, dez dias depois, já estava em Paris. O exército alemão era uma máquina preparada para um ‘blitzkrieg’ (guerra relâmpago). Nunca mais, em minha vida, vi algo parecido com a disciplina militar alemã em 1940. Deixe-me contar um episódio que ilustra isso. Nós morávamos numa avenida que dá acesso à cidade de Bruges, para quem vem do Leste. Minha mãe abriu um pouco a persiana que cobria a janela que dava à rua e pelas brechas a gente espiava a tropa alemã passar. Ao longo de dois dias e duas noites, tropas alemães marchavam na frente da nossa casa, a pé. Um, dois, um, dois! Na frente de cada pelotão, um homem sentado num cavalo, o resto a pé. De tempos em tempos, o comandante gritava uma palavra de ordem e a tropa parava, como se fosse uma máquina. Ele descia do cavalo e dava uma barra de chocolate a cada soldado, que comia em perfeito silêncio, depois tomava um gole de água do cantil e relaxava por uns minutos. Depois se ouvia de novo marschieren! (em marcha!). Isso por dois dias e duas noites. Eu me recordo que, naquele momento, disse a minha mãe: Não tem jeito, eles vieram para ficar. Hitler herdou um exército extremamente disciplinado e conseguiu que os soldados, gente humilde em sua grande maioria, acreditassem que estavam realizando uma obra grandiosa, que contava com a ajuda de Deus.

www No capacete, o soldado alemão carregava as palavras: Gott mit uns (Deus conosco). Uma frase carregada de história, que abre uma perspectiva de dez séculos de história do Ocidente. Em 1095, o Papa Urbano II, ao declarar guerra contra os ‘sarracenos’, disse que o motivo era recuperar a terra santa das mãos dos infiéis. No calor da hora, ele gritou, no francês da época: Dieu veult! (Deus quer!). Deus conosco. O Dieu veult funcionou por séculos. Quando Constantinopla, capital multissecular da cristandade grega, caiu nas mãos dos turcos, em 1453, o papa Alexandre VI, na bula Inter Caetera, de 1493, decretou que as nações bárbaras (na realidade as latino-americanas!) sejam derrubadas e trazidas à fé (leia: fé católica). ‘Deus quer!’. O papa, que não entendia muito de geografia, pensou que um domínio sobre os chamados ‘índios’ (confusão entre a Índia no Oriente e a América no Ocidente) poderia ‘encurralar’ o poder muçulmano e facilitar a ‘reconquista’ do mundo cristão. Na América Latina se usa até hoje o termo ‘índio’ para designar um representante de povos originários do continente.

Paixão por livros

www Nossa casa tinha muitos livros. Havia, no sótão, uma espécie de ‘biblioteca secreta’, com livros que ‘não eram para crianças’. Não era fechada à chave e eu ia fuxicar em livros que não eram para minha idade. Meu pai, por vezes, me surpreendeu naquela ‘biblioteca’. Enfim, desde cedo, me apaixonei por livros. Eles instigaram em mim a vontade de entender melhor o mundo, instigaram a ideia de história, pois entendia cedo que a história podia me dar uma maior compreensão do mundo em que vivia. Encontrei, naquela biblioteca, livros em holandês, francês e alemão. Raramente em inglês. Eles aguçaram em mim a vontade de conhecer mais esses mundos ‘grandes’, poderosos e atraentes: o mundo francês, o mundo inglês, o mundo alemão. Enfim, me apaixonei por livros e guardo essa paixão até hoje.

www Já na idade adulta, visitar uma grande cidade como Paris ou Londres significava, para mim, passar horas a fio numa dessas maravilhosas livrarias de diversos andares, onde mundos desconhecidos se abriram para mim. O professor da escola primária já descobriu minha paixão por livros e me fez ‘bibliotecário’ da escola, um encargo de que me orgulhava muito. E no seminário de Bruges fui igualmente bibliotecário. Gostei tanto do ofício que, durante as férias, fiz um curso em biblioteconomia e consegui um diploma, que guardo até hoje. Nos dois anos em que estudei em Lovaina, a cidade universitária, entre 1950 e 1952, ir à livraria era um prazer, mesmo sem comprar nada, pois meu dinheiro era parco. Quando viajei a João Pessoa, em 1958, de avião, nada menos de 18 malas de ferro, repletas de livros, me seguiram de navio, e chegaram quinze dias depois no porto de Recife. Foi vendo meus livros, já arrumadas em estantes, que o bispo auxiliar de João Pessoa, Dom Manuel Pereira, pensou em me convidar a dar aulas no seminário de João Pessoa. Meus livros me acompanharam de João Pessoa a Recife, depois a Fortaleza e finalmente a Salvador da Bahia. E chegaram novos, continuamente. Por volta de 2016, doei 82 caixas de livros à Biblioteca Central da Universidade Católica de Recife (UNICAP), um prédio de cinco andares, a mais organizada biblioteca universitária que encontrei no Nordeste. Quase todos esses livros são de teor historiográfico. Ainda com a idade de 70 anos, comprei todos os livros que consegui encontrar a respeito do filósofo austríaco Wittgenstein, como conto adiante. Pois esse filósofo me deixou marcas em meu entendimento da vida e do mundo.

O Colégio.

www Entre 1942 e 1948, cursei o chamado curso ‘Humaniora’ no Colégio São Luís em Bruges. Um curso exclusivo para rapazes, de seis anos de duração. Meu pai fez questão de matricular na ‘Humaniora’ seus cinco filhos do sexo masculino, sucessivamente.

wwwConsiderado o programa mais qualificado para o ensino médio da época, a ‘Humaniora’ (‘studia humaniora’: estudos humanísticos) é uma criação de jesuítas do século XVII, herança da época do humanismo renascentista, com a finalidade não confessa de reagir contra uma modernidade racionalista que estava estourando na Europa naquele século. Tratava-se de resgatar tradições humanísticas vinculadas ao cristianismo, por meio da valorização de ‘línguas mortas’ e da cultura greco-romana, da qual a Europa renascentista se julgava herdeira. Tradições que carregavam preciosos tesouros de sabedoria humana.

wwwEmbora não se possa dizer que a ‘Humaniora’ tenha prenunciado o ‘método Paulo Freire’, alguns parâmetros que se encontram no pedagogo pernambucano Paulo Freire (1921-1997), hoje considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, estavam presentes em nossa formação humanística. Em sua Pedagogia do Oprimido (1970), Freire distingue entre opressores e oprimidos e nisso remonta a Hegel, como vai expresso na obra Fenomenologia do Espírito. Ele é, como Hegel escreve, um ‘tecelão paciente’, que separa os fios de um ‘espírito alienado’ dos fios de um ‘espírito verdadeiro’.

wwwA ‘Humaniora’ de meu tempo cultivava alguns pontos similares ao método Paulo Freire. Não era alheia às inspirações de Platão ou Hegel, cultivava o espírito crítico e mantinha uma atitude aberta diante da sociedade. Em geral, os estudos no colégio secundário me foram benéficos. Eles não eram de caráter técnico, mas humanístico. Até hoje, defendo essa orientação para estudos secundários. Adorei o estudo de latim e de grego, e nunca questionei o que esse estudo, aparentemente sem preparar uma eventual futura profissão, podia significar para mim. Não pensava nisso, não me imaginava um futuro engenheiro, arquiteto, médico ou advogado. Nunca, nesses anos todos, fiz esse tipo de considerações. Eu gostava de estudar, tinha prazer em adquirir diariamente conhecimentos novos sobre os mais diversos temas da vida.

wwwEu me apliquei principalmente no estudo das línguas clássicas. Não era bom em matemática, por desencanto de meu pai, que dizia: Matemática é o futuro, abre para as ciências modernas. Mas eu persistia em meu grego. Mas, no colégio onde estudei, não bastava ser bom nos estudos. Era preciso, para ser valorizado pelos formadores, ser ‘idealista’. O bom estudante tinha de se mostrar ‘idealista’, dar sinais de idealismo. Um sinal de idealismo consistia em participar do movimento de juventude católica, que sempre contava com a presença de um ‘assistente religioso’, um sacerdote. Aí pairava no ar, sem ser explicitada, a seguinte ideia: o ato supremo de idealismo consiste em optar pelo sacerdócio. Candidatar-se ao sacerdócio é o caminho para uma vida perfeita.

O seminário.

www Impulsionado por esse ‘idealismo’, entrei no Seminário diocesano, com a idade de 19 anos. Só fiquei um ano ali, pois fui selecionado para ir estudar na Universidade de Lovaina, por dois anos. Depois voltei ao seminário diocesano por quatro anos, entre 1951 e 1955, quando me ordenei sacerdote.

www Como acabei de escrever, minha vocação sacerdotal tinha aquele gosto do ‘idealismo’ acalentado nos anos de colégio. Havia a ideia vaga de doação da vida inteira, mas, pelo que me lembro, sem referência explícita a Jesus de Nazaré e ao seu evangelho. O Jesus que nos foi apresentado não era o Jesus de Nazaré, mas o Jesus do altar, da eucaristia, da missa, da liturgia. Simplifico um pouco quando digo que a formação no seminário, em grande parte, consistia em preparar os jovens a celebrar missa. Mas, pelo que me recordo hoje, a grande perspectiva dos seminaristas era mesmo poder celebrar, um dia, a Santa Missa. A missa envolvia o sacerdote numa auréola de santidade. Olhando hoje, percebo como era frágil a motivação que me levou a entrar no seminário, e como minha formação sacerdotal estava baseada numa teologia ultrapassada. Afinal, faltou a clareza que o evangelho traz.

www A igreja em que me engajei se baseava numa tradição de séculos de hegemonia sobre a cultura ocidental. O sistema do seminário provém das escolas beneditinas dos séculos IV e V, marcado por regras monásticas: o culto ao silêncio e a observância estrita de um horário fixo. Acordar muito cedo, meia hora de meditação, ajoelhado na capela, depois a missa, o café da manhã em silêncio. Ao longo do dia, um silêncio só interrompido em casos de necessidade. A partir das nove da noite, o silentium magnum (silêncio grande). Um paradigma monástico inconteste e indiscutível era o celibato. Não se discutia esse tema, pois o celibato era considerado parte normal da vida clerical. Todo o mundo sabia que estava se formando num internato onde você não era mais João ou Pedro, mas seminarista, candidato ao sacerdócio. Então, você era da igreja, não era mais da família, não era mais da cidade, não era mais da comunidade social e cultural em que se criou. Você era seminarista, aprendiz de uma nova cultura, a cultura clerical. Você não enxergava mais nada por trás da grande cortina que foi baixada sobre a história da igreja, no século IV, pelo Imperador Constantino. Você não percebia mais a igreja primitiva, as primeiras comunidades. A igreja que você enxergava era uma igreja de dioceses e paróquias, bispos e sacerdotes. A cortina descia sobre a história anterior. A igreja, tal qual estava organizada, nos parecia corresponder à vontade de Deus. Desafiada pela cultura moderna, ela reagiu, criando no clero uma mentalidade apologética. A teologia que cursei em Bruges estava toda ela permeada de espírito apologético, como se fosse necessário esgrimir, sem parar, contra um inimigo invisível e onipresente: o espírito da modernidade. ‘Nós temos razão, nossa tradição é autêntica, testada por séculos. O pensamento moderno é um desvio, uma aberração’.

O Colégio para a América Latina

www No dia 5 de março de 1955 fui ordenado sacerdote diocesano em Bruges, num tempo em que se articulou, dentro da igreja europeia, um forte movimento em prol da colaboração com a igreja latino-americana. Surgiram, em setores do clero diocesano na França, na Alemanha, na Itália, na Bélgica, na Holanda, nos Estados Unidos, no Canadá etc., movimentos em prol da ida de sacerdotes diocesanos à América Latina. Formaram-se diversas instituições de preparação a essas idas, como o ‘Colégio para a América Latina’ em Lovaina, na Bélgica, e seu homônimo em Verona na Itália. A maioria dos sacerdotes, que responderam ao apelo da América Latina, provinha de regiões onde se vivia um catolicismo de grande adesão popular, como Flandres na Bélgica, Limburg no sul da Holanda, Baviera no sul da Alemanha e a região de Verona-Bolonha no norte da Itália.

wwwCom a anuência do bispo de Bruges, me matriculei, em 1957, no ‘Colégio para a América Latina’ (COPAL), criado em 1953 pelos bispos belgas e ligado à Universidade de Lovaina. Esse colégio teve uma vida breve (fechou suas portas em 2000), mas fecunda: entre 1953 e 1967, registrou 133 partidas de sacerdotes belgas à América Latina. Eu não sabia nada acerca da América Latina. Vi fotos de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou México, ouvi falar do Rio Amazonas, do carnaval e do futebol. Pelo resto, ignorância completa. Olhei demoradamente para o globo terrestre em cima de minha mesa de trabalho. Avaliei a enorme distância geográfica e as diferenças em termos de cultura. Meditei, ponderei, rezei e me decidi: Vou para a América Latina.

wwwQuanto às motivações que nos levaram a nos candidatar no COPAL, só uma minoria se sentia motivada a viajar à América Latina por causa da ‘falta de sacerdotes’ ou da ‘necessidade’ de se lutar contra comunismo, protestantismo e espiritismo. A maioria percebeu que o ‘inimigo’ era outro: a fome, a pobreza, a marginalização social, o abandono. O que nos impressionava era a distância enorme, em termos de recursos financeiros, entre 20 % de privilegiados e 80 % de marginalizados, vigente na América Latina.

wwwPassei pouco mais de um ano no COPAL, numa época em que tudo ainda estava para fazer: o curso de línguas, a biblioteca, o centro de documentação sobre o continente latino-americano. Tudo novidade num ambiente costumeiramente centrado em culturas europeias. Um dos problemas a ser enfrentado pelo COPAL era o espírito de superioridade cultural, cultivado pelos europeus em relação à América Latina, o que tornava difícil um contato em maior profundidade. O português do Brasil, por exemplo, era uma língua fora dos radares belgas. Eu me recordo que, quando alguns de nós, dentro do COPAL, já tínhamos decidido de viajar ao Brasil e estávamos interessados em aprender a língua portuguesa, não encontramos ninguém, na universidade, que estivesse em condições de nos ensinar essa língua. Tivemos de recorrer ao Assimil, método de ensino por leituras daquela época.

wwwO colégio funcionava como trampolim entre a igreja católica na Bélgica e aqueles bispos latino-americanos que eventualmente pediram sacerdotes. Nesse sentido, o homem-chave daquele colégio era um padre belga que já estivera na América Latina, mantinha contatos com bispos latino-americanos e eventualmente recebia pedidos de envio de sacerdotes por parte daqueles bispos. Um belo dia (deve ter sido início de 1958), esse padre me chamou e disse que o bispo auxiliar da diocese de João Pessoa, Dom Manuel Pereira, solicitava um sacerdote que pudesse ensinar história no seminário daquela cidade, que carecia de professores. Como eu tinha estudado história antiga (latim e grego) na Universidade, entre 1950 e 1952, pensei: talvez possa ajudar no ensino da história.

wwwE assim finalmente viajamos, um colega e eu, em 03 de setembro de 1958. Embarcamos num avião da KLM (Companhia Aérea Holandesa), que fazia o trajeto Amsterdã - Santiago de Chile, com escalas em Bruxelas, Lisboa e Recife.

wwwEmbora não sabendo aonde íamos ‘cair’, não posso dizer que essa viagem foi, para nós, um ‘pulo no escuro’. Pois, em países do Ocidente, um sacerdote, ao viajar, nunca dá um pulo no escuro, já que participa de uma das corporações internacionais mais coesas do mundo, que é o clero católico. Ele pode contar com acolhimento, para onde for. Escrevo isso para explicar que nossa saída da terra natal não constituía uma aventura tão grande. Nós podíamos contar com uma corporação que se estende pelo mundo ocidental inteiro e que cultiva ‘ad intra’ as virtudes pré-capitalistas de fidelidade e confiança. Para conseguir me hospedar em conventos ou casas religiosas, por exemplo, eu nunca tive de apresentar documentos de identidade. Bastava a batina.

wwwUma segunda observação. Nos anos 1958-1960, o mundo estava à vésperas de importantes reviravoltas. Estava se gestando um clima de grandes mudanças, que, em 1962, ia desembocar no Concílio Vaticano II e em 1968 na revolta dos estudantes em Paris. Mas, ao viajar ao Brasil em 1958, eu não tinha consciência de nada disso.

Professor no Seminário de João Pessoa.

www No aeroporto ‘dos Guararapes’, em Recife, na manhã do dia 4 de setembro de 1958, um padre da Arquidiocese da Paraíba nos aguardava. Com gentileza e trato fino, ele foi a primeira pessoa a nos revelar a capacidade que o brasileiro tem em receber bem quem vem de fora. Então, um carro nos levou direto de Recife ao Seminário Diocesano de João Pessoa. Uma viagem longa, pois diversos trechos da estrada ainda não estavam asfaltados. Já era tarde quando chegamos.

wwwCom apenas um mês e quinze dias de permanência no Brasil, eu me tornei professor de História da Igreja no Seminário Maior de João Pessoa, que, naquele tempo, reunia estudantes da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, num número de quase cem. Dei a primeira aula em francês e recordo até o tema: ‘Saint François d’Assise’. Os estudantes fingiam entender o que o estrangeiro estava dizendo e até hoje guardo a memória da gentileza extraordinária desses seminaristas diante do professor ‘improvisado’, que vinha de fora. Gentileza misturada com curiosidade. Naquele tempo, pouca gente de fora visitava a Paraíba. De qualquer modo, esse acolhimento espontâneo me deixou muito à vontade e me ajudou muito nas primeiras semanas. Até hoje guardo uma memória grata desses estudantes, cujos nomes já se apagaram, desde muito, de minha memória. Aos poucos, arrisquei um português capenga nas aulas e, mais uma vez, pude contar com a compreensão da turma. O bispo veio até me oferecer um volumoso Dicionário Francês-Português, que uso até hoje e que guardo como preciosa memória desses primeiros tempos de gentileza e atenção.

wwwOptei por morar no velho prédio do Convento São Francisco, habitado por frades franciscanos entre o século XVI e o século XIX, quando passou às mãos do clero secular e passou a servir de seminário. Como os quartos estavam todos ocupados, me indicaram o ‘poleiro’, lá no andar superior do velho edifício, em baixo das telhas. Não foi um alojamento ideal, mas ganhei uma sala ampla e uma vista linda sobre o bairro. Aí, tive de me acostumar a uma ‘convivência pacífica’ com morcegos. Eu me protegia por meio de uma ampla tela em cima de minha mesa de trabalho e de um mosquiteiro em cima da cama, enquanto os bichinhos passavam os dias dormindo tranquilos, pendurados no alto telhado, e, ao cair da noite, voavam para fora e depois se acomodavam de novo, sem me incomodar. A morada no próprio prédio do seminário facilitou a convivência com professores e estudantes. Recordo com saudade os bons papos em baixo das mangueiras, depois do almoço, assim como os passeios e longas conversas na praia.

Para Recife.

www No ano 1963, tomei uma decisão que mudou o rumo de minha vida de professor. Na qualidade de ‘novato’, nas reuniões anuais de planejamento e distribuição de cursos a serem administrados no seminário da Paraíba, já estava acostumado a ter de enfrentar um organograma que, além de história da igreja, comportava as mais variadas matérias, em sua maioria sobre sacramentos. Pois a história, além de não ser considerada uma matéria importante, não preenchia uma agenda completa. Assim, ao longo de meus anos na Paraíba, tive de preparar as mais variadas matérias. Isso foi me cansando e, principalmente, me dificultando uma dedicação mais profunda em temas históricos.

www Aí tomei uma decisão. Numa reunião de planejamento de matérias, penso que foi no final de 1963, eu disse mais ou menos o seguinte: Fui contratado como professor de história. Portanto, doravante só aceito ensinar história. Peguei o ônibus e fui para Recife, falar com o Arcebispo Carlos Coelho. A viagem é relativamente curta, pois João Pessoa fica a uns 120 km. de Recife. O próprio arcebispo me atendeu. Identifiquei-me e disse: Eu estou disposto, se o Senhor aprovar, a ensinar História da Igreja no seminário de Recife. A resposta imediata de Dom Carlos me surpreendeu: Efetivamente, precisamos de um professor de história. Você é bem- vindo.

www Assim, por algum tempo, dividi meu tempo entre Recife e João Pessoa: três dias de aulas em Recife e dois em João Pessoa. Passava o fim-de-semana em João Pessoa e, nas segundas-feiras, às cinco horas da manhã, tomava o primeiro ônibus para Recife, voltando na tarde de quarta-feira.

www Em 1964, Dom Carlos faleceu e foi substituído por Dom Helder Camara. Isso fez com que me transferisse definitivamente para Recife. Entre 1968 e 1981, lecionei no Instituto de Teologia de Recife (ITER). Os estudantes vinham pela manhã e saíam ao meio-dia. De tarde não havia aula. Nós professores fomos morar no Palácio do Bispo dos tempos coloniais, na colina de Olinda. O que era novo no ITER era a reformulação das matérias: no currículo entraram a sociologia, a história e a psicologia. O prefeito de estudos entre 1965 e 1970, o padre José Comblin, fez a proposta de tal reprogramação, que foi recebida com entusiasmo. A presença de duas mulheres no professorado era um símbolo da reorientação: a Irmã Ivone Gebara, doutora em teologia, e a Irmã Maria Emília Ferreira, formada em psicologia. O Padre Humberto Plummen, formado em sociologia, deu o toque sociológico e eu fiquei com a história. Finalmente, em 1989, o ITER sucumbiu sob os golpes de Dom Cardoso, sucessor de Helder Camara. Criou-se o mito que o ITER teria sido uma sementeira de revolucionários ‘tipo Cuba’. Essa foi uma ideia construída, uma ideologia.

Como eu ensinava História da Igreja

www Como já disse, ensinei, durante aproximadamente trinta anos, a disciplina eclesiástica chamada ‘história da igreja’, em diversos seminários e institutos de teologia. Com o correr dos anos, essa ‘disciplina’ mudou de nome e conteúdo. Passou a ser chamada ‘história das igrejas’, ‘história do cristianismo’ e, ultimamente, ‘história dos cristianismos’, ‘história das religiões’. O importante, contudo, me parece estar no modo em que se aborda essas ‘disciplinas’. Pois a história dos diversos cristianismos está inserida na história política, social, econômica e cultural dos movimentos mutantes da humanidade e não pode ser considerada fora dessas relações vinculantes.

wwwMeu modo de ensinar história evoluiu com o tempo. Teço aqui umas considerações acerca de meu modo de ensinar história da igreja em Recife, entre 1964 e 1980.

wwwOs representantes do movimento de Jesus, num determinado momento de seu percurso histórico, cederam diante do apelo do poder, ou seja, se deixaram manipular pelo poder. A virada tem localização e data precisas: Niceia 325 dC. Nessa data se ‘inventou’ a igreja católica e se quebrou uma linha de fiel continuidade com o movimento de Jesus. Mas de trezentos bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, são acolhidos, com todas as honrarias, na própria Residência de Verão do Imperador Constantino em Niceia, na Ásia Menor, a uns 200 km. da nova metrópole Constantinopla, que está em plena construção, e que desfruta de um clima mais ameno. Constantino sabe o que faz quando recebe esses bispos, pessoas do interior, com tantas honrarias.

wwwO que ele tem na cabeça? Ao que tudo indica, Constantino percebe que a política de seu predecessor Diocleciano, que perseguia implacavelmente os cristãos, fracassou. Ele observa com apreensão o surgimento, em muitos setores da administração, um de um retrocesso a formas ditatoriais e totalitárias, além de muita corrupção. Então, ele procura forças vivas, de alto padrão ético, capazes de reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por falta de ética. É nesse sentido que ele resolve mudar radicalmente a política diante do cristianismo. Em vez de perseguição, ele opta pelo acolhimento. Constantino recebe os bispos com honrarias protocolares reservadas a senadores. Um dos bispos presentes relata suas impressões com as seguintes palavras: alguns (bispos) se sentavam à mesa junto com o Imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava, tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do Reino de Cristo, de um sonho, em vez da realidade (Eusébio de Cesareia, Vita Constantini, 3, 15). Eis um texto precioso, pois flagra o momento exato em que a igreja católica nasce. A coisa mais importante de Niceia 325 não é o Credo, mas o impacto psicológico causado nos bispos por aquela recepção na residência imperial. Os bispos mudam e se tornam suaves, polidos, civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar, aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Com Constantino, os bispos passam a desfrutar de residências melhores (palácios), meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas e igrejas. Mas a principal novidade consiste na aprendizagem das ‘regras da corte’. Podemos dizer que, em Niceia, a cúpula da igreja vira uma ‘sociedade de corte’ (Elias, N., A Sociedade de Corte, Zahar, Rio de Janeiro, 2001).

Para o Rio Grande do Sul.

www Em 1969, estando em Recife, recebi um convite no sentido de ensinar, por um semestre, a disciplina História da Igreja no Seminário Cristo Rei, mantido pelos padres jesuítas, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Foi uma experiência que me fez conhecer um Brasil bem diferente do nordestino, um Brasil marcado por imigrações alemãs e italianas no século XIX.

wwwSaí de ônibus comum e a viagem durou cinco dias. Pernoitamos em hospedarias ao longo da estrada e tive uma experiência inesquecível do modo em que o povo viajava naqueles tempos, com precariedades, privações e imprevisões. Chego exausto na hora em que a comunidade dos professores do Seminário Cristo Rei, todos padres jesuítas, se prepara para almoçar. O chimarrão quase me queima a boca, mas a acolhida é tão e calorosa que logo esqueço as agruras da longa viagem.

wwwEntre meus alunos encontro, com surpresa, o Frei dominicano Alberto Libânio Cristo, o Frei Beto, que está aí ‘escondido’, aguardando poder viajar para a França, pois em São Paulo é procurado pelos militares por causa de suas pretensas ligações com movimentos ‘subversivos’. É por causa da presença de Beto, entre meus alunos, que apresento em sala de aula o tema As perseguições contra os cristãos nos tempos do Império Romano. E peço que eles procurem na biblioteca informações em torno do tema.

wwwQue biblioteca! Difícil encontrar no Nordeste coisa parecida. Passei longas horas naquela biblioteca, conferindo dados históricos e anotando tudo em grandes fichas, uma prática que me acompanha desde meus tempos de colégio. Guardo comigo, até hoje, esse material, que não consulto mais, pois o mundo digital passou que nem uma avalanche em cima dele. Existia um diálogo fecundo entre o Cristo Rei católico e a Casa de Formação da igreja luterana, a pouca distância. São Leopoldo é o berço da colonização luterana no Brasil. Convido um estudante daquela Casa, Martin Dreher, para nos falar sobre vida e doutrina de Martin Luther. Estive no Cristo Rei no tempo da formatação da Unisinos. A memória é vaga, mas me lembro ter sido convidado a me encontrar com a diretoria dessa nascente Universidade.

wwwNo ano seguinte, 1970, passei de novo um semestre no Cristo Rei e assim essa experiência, que me enriqueceu muito, terminou.

No turbilhão do mundo.

www Ao mesmo tempo em que ensinava História da Igreja no Instituto de Teologia de Recife (ITER), assumi o pastoreio numa periferia de Recife chamada Alto do Pascoal. Aí morei nove anos. A lembrança que eu tenho do Alto do Pascoal é que a vida do pobre é uma vida de projetos inacabados e esperanças de vida melhor, no turbilhão do mundo. Minha amiga artista, a Irmã Adélia de Carvalho (1937-2022), pintou um painel, por ocasião do Congresso da Ameríndia, celebrada em Belo Horizonte no ano 2015, que mostra a emergência dos pobres no turbilhão do mundo.

(da esquerda à direita: pessoa não identificada, José Aparecido Moreira, Adélia Carvalho, eu).

wwwAinda guardo na memória a imensa ondulação de casas inacabadas, com telhados de Eternit. Algumas casas ainda de palha de coqueiro, paredes sem reboco, lajes em construção. Ao lado da casa, um monte de tijolos encostados, pedaços de madeira, por vezes algumas barras de ferro, telhas amontoados. Essa imagem evoca em mim o imenso apelo a uma vida melhor, uma vida de maior prosperidade, por parte daquela população. Ainda vejo ‘Pedro pedreiro’, no final da tarde, descer do ônibus, sempre segurando algo nas mãos ou em baixo do braço: uma prancha de madeira, uma barrinha de ferro, algum embrulho, algo na mochila. Encostado no muro da casinha de ‘Pedro pedreiro’ um monte de tijolos encostados, algumas telhas, madeira, ferro. Parece que estou ouvindo ‘Pedro pedreiro’ murmurar consigo mesmo: vou sentar uma janela, tirar o tabique que fecha a cozinha e sentar uma porta. Vou rebocar as paredes do quarto dos meninos. Talvez venha a bater uma laje, pois a família é grande. Já tenho as barras, falta comprar uns sacos de cimento.

www‘Pedro pedreiro’ tem fé em Deus. Ao pensar nas crianças, na mulher, na família, Pedro pedreiro pensa em Deus. Está convencido que Deus compartilha sua luta: Deus vai me dar sucesso na vida, Deus vai me ajudar. O Brasil é um país ‘inacabado’, um país em construção: eis a memória que eu guardo dos nove anos vividos no Alto do Pascoal. A fragilidade da vida, a luta nunca acabada, o apelo para um futuro melhor. O Brasil é um país em construção permanente, um país de tenacidade e paciência.

A Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).

www Está na hora de falar de uma experiência que marca minha vida até o presente momento: a ‘Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina’ (CEHILA).

wwwNo final de 1972 recebo em Recife uma carta, assinada pelo historiador argentino-mexicano Enrique Dussel, em que ele me convida a viajar ao Equador para participar da criação de uma ‘Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina’ (CEHILA), vinculada ao ‘Conselho Episcopal Latino-Americano’ (CELAM). Como ele me descobriu? Eu já tinha começado, desde o ano 1963, a publicar, na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) artigos de teor histórico, e parece que é isso que chamou a atenção de Enrique Dussel. Tomo o avião e me apresento em Quito no dia 3 de janeiro de 1973, na data combinada, para participar da reunião fundadora de Cehila.

wwwReunião fundadora da Cehila, Quito, 03/01/1973. Acima, da esquerda para a direita: Enrique Dussel, eu, Raul Vidales.

wwwEnrique Dussel falou e o que disse combinou perfeitamente com o que estava pensando e que constitui a base de meu ensino de história da igreja: não existem duas histórias (uma secular, outra religiosa), mas a história da igreja é parte integrante da única história humana.

wwwRecebo o encargo de formar, no Brasil, uma equipe de historiadores/as brasileiros/as dentro dos parâmetros traçados no decorrer do encontro fundador. Aí, vivenciei uma experiência que relatei em breves relatos, publicados na Revista Eclesiástica Brasileira entre 1973 e 1984. Consegui formar uma ‘equipe’ de umas cinco pessoas, com as quais me reuni no Rio de Janeiro, de início semestralmente e depois anualmente. Realço a atuação de duas mulheres, Marina Bandeira e Maria Luiza Marcílio. Diversos especialistas vieram nos ajudar. Menciono aqui alguns nomes: o historiador José Honório Rodrigues (1913-1987), o médico e sociólogo Thales de Azevedo (1904-1995), Darcy Ribeiro, Carlos Moreira Neto, Leonardo Boff, o norte-americano Ralph della Cava, Frei Betto, Ivo Lesbaupin e outros, cujos nomes não recordo mais. Leonardo Boff se mostrou particularmente entusiasmado e, tempos depois, abriu o Convento dos franciscanos em Petrópolis para nossos encontros.

A Cehila Popular.

www Por volta do ano 1980 passei a coordenar, dentro da Cehila latino-americana, um novo projeto, chamado Cehila Popular. O projeto suscitou iniciativas no Brasil, no México e talvez em outros países. O desafio consistia em tentar uma maior aproximação com a cultura popular O que hoje me fica mais na mente dessa experiência, que durou aproximadamente vinte anos, é o trabalho com poetas populares, talvez a iniciativa de Cehila Popular mais carregada de sementes para o futuro. Não guardo memórias precisas, mas me lembro de diversos ‘Encontros de Poetas populares’ em diversas localidades do Nordeste, e guardo com carinho alguns nomes de poetas e poetisas, principalmente de Jorge P. Lima, de Porto da Folha, Propriá, SE, que - num encontro em Olinda, PE - redigiu o poema-canção seguinte:

Eu acredito que o mundo será melhor / Quando o menor que padece / Acreditar no menor.

wwwCerta feita, Dom Helder Camara, no jeito que lhe era próprio, declamou esses versos diante do Papa Paulo VI. Hoje, continuo pensando que esses poetas populares, criadores da literatura de cordel, são verdadeiros intelectuais do povo. Eles se mostraram capazes de traduzir em termos populares tudo o que nós tínhamos de intuições, estudos e posicionamentos, de criar imagens e compor dramatizações. Guardo em casa um pequeno arquivo dessa experiência com poetas populares. Naqueles anos, eu consegui financiamento para esses encontros com poetas em minha terra natal, a Bélgica.

wwwO ponto negativo de experiências desse tipo consiste no fato que, minguando as doações financeiras, o movimento não consegue se sustentar. Foi o que aconteceu com a Cehila Popular, que expirou por volta do ano 2000. Eis uma memória que guardo com carinho.

wwwAlém disso, há dois nomes que me ficam na mente: Domingos Sávio Menezes Carneiro (1961-2014) e Adélia Carvalho (1939-2022). Dois ‘artistas da caminhada’ que ajudaram muito na tentativa de contatos com poetas populares, nosso grande desafio, por meio da arte. O artista expressa num só desenho o que o teólogo tenta expressar em muitas palavras. Dou aqui dos exemplos, o primeiro da autoria de Domingos, o segundo de Adélia.

www- Domingos, artista metido entre historiadores, se fez observar por suas observações críticas e suas sugestões, sempre na linha de uma maior organicidade com o mundo popular. Entrou na Ordem dos Franciscanos sem largar o domínio das artes, ilustrando cartazes para grupos populares, pastorais e ONGs ligadas à Teologia da Libertação. Eis como ele representou a ‘evangelização’ da América Latina.

www- Adélia, aos 22 anos, entrou na ordem das irmãs salesianas e hoje, anos depois de seu falecimento continua sendo uma referência no meio dos ‘artistas da caminhada’. Sua arte atrai por ‘misturar’ o religioso e o profano, o místico e o descritivo. Nela, a figura feminina, de olhares grandes e profundos, ganha destaque especial. Em 2015, num congresso da Ameríndia em Belo Horizonte, ela apresentou a ‘Ameríndia’ gravida, num quadro complexo e bonito, que merece ser olhado com atenção pelos detalhes.

O casamento.

www Eu era amigo de Martinho Groetelaars, um lazarista holandês casado com uma senhora cearense, Tereza Dias. Foi por causa dessa amizade que cheguei a me relacionar com Tereza, após a morte prematura de Martinho aos 49 anos. Um relacionamento que evoluiu para a decisão, por parte de ambos, de nos unir em casamento. Isso foi no início do ano 1982.

wwwFoi por causa de meu casamento que, como historiador, passei a me interessar por textos, dos primeiros séculos do cristianismo, que descrevem a experiência de cristãos casados. E assim encontrei o Pastor de Hermas, redigido no século II, que conta como o escravo liberto Hermas, um cristão, chega a reconhecer, com gratidão, o poder da sexualidade em sua vida. De início, ele sente vergonha com os sentimentos que o ‘assaltam’ ao ajudar sua ex-patroa Rosa a sair, nua, do banho no Rio Tibre (veja meu livro Hermas no topo do mundo, São Paulo, Paulus, 2002, pp. 42 sqq.). Mas a própria Rosa, falecida, lhe aparece do céu e o ajuda a superar os acanhamentos. Finalmente, o próprio Pastor (o líder-profeta da comunidade) lhe sugere passar uma noite inteira a dançar com moças no topo do mundo (pp. 70 sqq.).

wwwO Pastor de Hermas é um texto que se move na estreita vereda entre o rigorismo dos presbíteros, que o bom senso rejeita, e o risco não menos real de licenciosidade no grupo cristão. Hermas esta à procura de um espaço para casados no universo cristão. Mergulhado nos problemas corriqueiros que enchem a cabeça do comum pai de família, ele nem pode sonhar em deixar a família para trás e seguir os apóstolos itinerantes. Seu negócio tem de render, os filhos querem comer, a mulher solicita sua presença, ele tem de exercer as ‘pequenas’ e diárias virtudes do lar. Mesmo se sentindo pequeno diante dos heróis celibatários das estradas e das viagens, Hermas tem a coragem de fazer ouvir sua voz. Ele sabe que não pode ser modelo, pois modelos são os solteiros, os que deixam tudo para seguir a Jesus. Mesmo assim, Hermas pensa que há algum lugar, por modesto que seja, para ele e seus pares casados, na construção da igreja. Com o escrito Pastor de Hermas, estamos diante de um dos primeiros registros - nos anais da história do cristianismo - da voz própria dos casados, daqueles e daquelas que ‘sucumbem’ diante da pulsão de vida.

wwwNo mesmo ano 1982 me mudei para Fortaleza, onde Tereza morava com seus três filhos e ensinava música. Em 18 de dezembro de 1982, celebramos uma singela cerimônia de casamento, em casa.

Uma História da Igreja especificamente latino-americna?

www Esqueci-me de assinalar que, já nos primeiros anos como professor de História da Igreja em João Pessoa, entre 1958 e 1964, me defrontei com o fato de meus alunos não se interessar por nomes como Padre Cícero, Padre Ibiapina e Antônio Conselheiro, gente da terra, da história da região. Desde aquele tempo, me empenhei a conhecer melhor essas figuras e a inseri-las na História da Igreja.

wwwIsso me levou a estudar a especificidade da igreja latino-americana, e nisso encontrei eco no Cardeal Aloísio Lorscheider, na época arcebispo do Ceará. Tive a ideia de lhe apresentar um organograma da matéria ‘História da Igreja’ que progredisse pelos três seguintes pontos: em primeiro lugar, imersão no estudo da história local e regional da igreja católica (no caso, história da igreja no Ceará, com figuras como Antônio Conselheiro, Ibiapina e Cícero); em segundo lugar alargamento para horizontes latino-americanos e só em terceiro lugar a referência europeia.

wwwChegamos a matutar juntos acerca de uma reorganização da matéria ‘História da Igreja’ a ser ensinada nas casas de formação teológica. A ideia era mergulhar o estudante na história de sua região, e alargar o horizonte progressivamente: história do cristianismo no Brasil e na América Latina. Só depois passar para a história do cristianismo que nos veio da Europa e, finalmente, chegar ao cristianismo das origens. Eis uma nova periodização da história do cristianismo. Fiquei entusiasmado com a ideia e elaborei História do Cristianismo na América Latina, um livro de 445 páginas, editado pela Paulus em 1994, hoje esgotado. Num ponto importante, esse livro aborda a questão do ‘método Sahagun’, que consiste basicamente em auscultar a sabedoria, frequentemente enunciada em linguagem enigmática, anotá-la com cuidado e traduzi-la com maior cuidado ainda.

wwwO método Sahagun (México). Da direita à esquerda: o indígena fala na língua nahuatl e o escriba anota; um tradutor para passa a língua espanhola e o segundo escriba passa para Frei Sahagun, que, por sua vez, anota por escrito. O sinal na boca significa palavra falada, o papel simboliza palavra escrita (veja ‘A história de Sahagun’, no livro citado, pp. 394-420). O Cardeal se mostrou favorável a esse plano de estudos e me garantiu que ia apresentá-lo à Comissão de Estudos Eclesiásticos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Mais tarde, me comunicou, com pesar, que sua sugestão não foi acolhida por dita Comissão. Entrementes, eu tinha me metido a redigir um livro, intitulado História do Cristianismo na América Latina e no Caribe, de 443 páginas, ilustrada por meus colegas da Cehila-Popular, Domingos Sávio Carneiro e Adélia Carvalho, e primorosamente editada pela Paulus de São Paulo em 1994, pelos bons cuidados do Padre Solferino Tonon. A redação desse livro me ocupou durante uns bons anos, mas o livro ‘caiu no vazio’, já que a matéria ‘História do Cristianismo na América Latina’ não entrou no currículo de seminários e institutos de teologia católica.

Salvador.

www Em 1993, para facilitar à minha mulher Tereza a continuação de seus estudos em musicologia, a família se mudou para Salvador, onde estamos vivendo até agora. Eu tinha 63 anos e não fazia questão de permanecer em Fortaleza e, quando minha mulher Tereza manifestou seu desejo, não me opus. Os filhos de Tereza ainda eram crianças e eu, de minha parte, disse: onde estiver um computador, eu me viro. Eu vou com você. Ainda ensinei dois anos na Universidade Federal de Salvador, no setor de Pós-graduação em História, com uma bolsa do governo federal. Sem muitas novidades.

wwwO que me parece importante, na linha desta entrevista, é realçar que me aproximei de um grupo de historiadores/as que se empenhava em ‘desenterrar’ a memória de Canudos e se reunia em torno do Professor José Calasans. A história de Canudos começa com o peregrino Antônio Conselheiro (1830-1897).

wwwFigura desde os inícios controvertida, pelo menos na imprensa brasileira dos anos 1870-1880, Antônio Conselheiro nos obriga a cavar fundo na história do cristianismo nos sertões nordestinos. O beato peregrino começa a ganhar notoriedade em 1877, quando os sertões passam pela ‘Grande Seca’, uma das mais calamitosas de sua história. Levas de flagelados perambulam, famintos, pelas estradas em busca de socorro governamental ou de ajuda divina, enquanto bandos armados de criminosos e flagelados promovem ‘justiça social’ com as próprias mãos, assaltando fazendas e pequenos lugarejos. Movido pela compaixão, Antônio Vicente (ainda não é ‘Conselheiro’) reúne uma leva de flagelados em torno de si, promove mutirões em diversas propriedades e, desse modo, motiva algumas dezenas de famílias proprietárias, próximas à Fazenda Velha, às margens do Rio Vaza Barris, a acolher as cerca de oitocentas pessoas que o seguem. Oriunda de diversas partes do Nordeste, essa multidão, motivada por Antônio Conselheiro, está na origem de ‘Belo Monte’.

wwwBelo Monte não teria crescido tanto em tão pouco tempo – estudos falam em uma média de 15 a 20 mil pessoas, por volta de 1890 – e não teria resistido a quase um ano de ataques, se não houvesse um processo intenso de convivência com a caatinga. O conhecimento deste bioma foi determinante para resistir. É nesse sentido que se entende uma frase de Euclides da Cunha, que ficou famosa: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Com o aumento da comunidade, a pequena igreja do Bom Jesus já não suporta a quantidade de fiéis e então se decide construir uma maior. E o início dos problemas. Encomendam-se longos toros de madeira com uma casa comercial de Juazeiro da Bahia, às margens do Rio São Francisco. Ao demorar a entrega daquele material, que tem de vir da Amazônia, homens de Canudos vão pedir satisfação ao comerciante de Juazeiro. Sua presença assusta os moradores da pacata cidade e logo se cria o boato de que há um ‘fanático’ que planeja invadir Juazeiro. Isso é o estopim. Autoridades da cidade se comunicam com o Governo da recém-criada República, que logo ordena a primeira Expedição Militar. A primeira esfrega acontece em Uauá, em novembro de 1986. A confusão repercute na imprensa do Rio de Janeiro. O renomado escritor Machado de Assis ainda aconselha que se tente dialogar com o Conselheiro, mas ninguém dá atenção ao que ele escreve no jornal. Num momento de forte secularização da elite republicana do Rio de Janeiro, poucos entendem o que se passa nos sertões. Não se entende que Canudos, antes da confusão dos anos 1896-1897, é puro misticismo, pura devoção a Arcanjo Miguel, defensor de desvalidos e mal-aventurados, como realço em meu livro Os Anjos de Canudos, publicado pela Editora Vozes de Petrópolis, em 1997. Com Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, não é tanto um líder que aparece no horizonte sertanejo, antes um sonhador e místico (p. 18).

wwwA prédica do Beato, malgrado seu tom severo, está envolvida num clima de alegria, riso e festa. O povo, simplesmente, não se confessa penitente. Assiste aos sermões do Conselheiro antes por fascínio religioso que por convicção penitente. E o próprio Conselheiro entra no jogo: ele usa os livros devotos de praxe, imbuídos de penitencialismo, antes como manuais de cânticos e ladainhas nas alegres ‘Trezenas’ e ‘Novenas’, nas ladainhas de Nossa Senhora do mês de Maio, no ciclo natalino, na Festa do Padroeiro ou da Padroeira, quando os ‘noiteiros’ recebem a população inteiro e os fogueteiros, zabumbeiros e celebrantes, as moças que puxam os cânticos, todos e todas colaboram na alegria da festa. Em Canudos se labuta e se canta, se penitencia e se namora. O modelo de sociedade que se experimenta em Belo Monte passa a incomodar fazendeiros e coronéis da região, que estão perdendo mão de obra escrava, uma vez que muitas famílias se mudam para Canudos, chamadas pela possibilidade de viver sem patrão, não passar fome e viver na fé. Diversos ‘coronéis’ escrevem cartas aos governos, reivindicando medidas para combater Canudos. Belo Monte incomoda igualmente os militares, que, orgulhosos com a criação da República em 15 de novembro de 1889 (na realidade, trata-se de um golpe militar), não suportam o fato que o povo astuto do sertão perceba logo que essa tal de República oculta um plano para aumentar impostos e criar novos (‘Os anjos de Canudos’, p. 67 sqq.) e que o Conselheiro divulgue essa ideia em seus sermões. E, por acúmulo de má sorte, Belo Monte incomoda o Arcebispo de Salvador e o alto clero da Bahia, que vê com maus olhos uma parte do rebanho escapar do controle clerical. Então, proprietários de terras, militares e eclesiásticos se unem contra Canudos, que passa a ser visto como um reduto de perigosos ‘fanáticos’.

wwwDaí em diante são onze meses de intensos combates, num total de três expedições, sendo a última finalizada no dia 05 de outubro de 1897, com a destruição total de Canudos feito e a matança de todos seus habitantes, após o envio de uma tropa de quase dez mil soldados.

wwwDo acervo do Professor José Paulino da Silva, da Universidade Federal de Sergipe. Agora vem o mais grave: baixa, em relação a esse terrível episódio de estupidez e brutalidade, a cortina do silêncio. Ninguém comenta o acontecido em Canudos, nem as pessoas do povo (por medo), nem a mídia, nem a igreja. Um silêncio que ainda persiste hoje, pois a história de Canudos ainda é pouco estudada nas escolas e pouco se busca acerca do que ocorreu mesmo nessa tragédia. Há alguns olhares diferenciados, como o de José Benício, testemunha ocular do massacre, cujas observações estão na base de meu livro de 1992, acima citado. Após ler uma reportagem sobre Canudos na Revista ‘O Cruzeiro’, o professor e historiador José Calasans (1915-2001) se interessa pela temática e passa a utilizar a história oral como ponto de partida. Isso inova a historiografia sobre Canudos. Cortinas se abrem e o próprio povo de Canudos passa a falar. Na linha de Calasans se deve mencionar o jornalista e cineasta Antônio Olavo, produtor de vídeos como A Guerra de Canudos, um clássico, e que continua militando nos dias de hoje. Canudos é um tema ‘em andamento’.

Eduardo Hoornaert

wwwww Eduardo Hoornaert - Nasceu na Bélgica em 1930 e vive desde 1958 no Brasil. Formado em Línguas Clássicas e História Antiga pela Universidade de Lovaina (Bélgica), ensinou durante trinta anos História do Cristianismo em Institutos Teológicos Católicos: João Pessoa, Recife, Fortaleza. Entre 1993 e 1995 foi Professor na Universidade Federal da Bahia. Entre 1964 e 1980, no tempo em que Dom Helder Câmara era Arcebispo de Recife, assumiu uma paróquia na periferia da cidade.

wwwwwNesse período aproximou-se da Teologia da Libertação, foi co-fundador (1973) do Centro de Estudos da História da Igreja latino-americana (CEHILA) e escreveu aproximadamente trinta livros sobre a História do Cristianismo no Brasil e na América Latina, na perspectiva das populações indígenas e africanas. Desde 1984 está empenhado em estudar as origens do Cristianismo. Publicou diversos livros nesse sentido e o livro 'Origens do Cristianismo' é uma sedimentação, em breves capítulos, de muitos anos de ensino dessa matéria. Eduardo Hoornaert é casado com Maria Tereza Dias.