www Em 1993, para facilitar à minha mulher Tereza a continuação de seus estudos em musicologia, a família se mudou para Salvador, onde estamos vivendo até agora. Eu tinha 63 anos e não fazia questão de permanecer em Fortaleza e, quando minha mulher Tereza manifestou seu desejo, não me opus. Os filhos de Tereza ainda eram crianças e eu, de minha parte, disse: onde estiver um computador, eu me viro. Eu vou com você.
Ainda ensinei dois anos na Universidade Federal de Salvador, no setor de Pós-graduação em História, com uma bolsa do governo federal. Sem muitas novidades.
wwwO que me parece importante, na linha desta entrevista, é realçar que me aproximei de um grupo de historiadores/as que se empenhava em ‘desenterrar’ a memória de Canudos e se reunia em torno do Professor José Calasans.
A história de Canudos começa com o peregrino Antônio Conselheiro (1830-1897).
wwwFigura desde os inícios controvertida, pelo menos na imprensa brasileira dos anos 1870-1880, Antônio Conselheiro nos obriga a cavar fundo na história do cristianismo nos sertões nordestinos.
O beato peregrino começa a ganhar notoriedade em 1877, quando os sertões passam pela ‘Grande Seca’, uma das mais calamitosas de sua história. Levas de flagelados perambulam, famintos, pelas estradas em busca de socorro governamental ou de ajuda divina, enquanto bandos armados de criminosos e flagelados promovem ‘justiça social’ com as próprias mãos, assaltando fazendas e pequenos lugarejos. Movido pela compaixão, Antônio Vicente (ainda não é ‘Conselheiro’) reúne uma leva de flagelados em torno de si, promove mutirões em diversas propriedades e, desse modo, motiva algumas dezenas de famílias proprietárias, próximas à Fazenda Velha, às margens do Rio Vaza Barris, a acolher as cerca de oitocentas pessoas que o seguem. Oriunda de diversas partes do Nordeste, essa multidão, motivada por Antônio Conselheiro, está na origem de ‘Belo Monte’.
wwwBelo Monte não teria crescido tanto em tão pouco tempo – estudos falam em uma média de 15 a 20 mil pessoas, por volta de 1890 – e não teria resistido a quase um ano de ataques, se não houvesse um processo intenso de convivência com a caatinga. O conhecimento deste bioma foi determinante para resistir. É nesse sentido que se entende uma frase de Euclides da Cunha, que ficou famosa: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Com o aumento da comunidade, a pequena igreja do Bom Jesus já não suporta a quantidade de fiéis e então se decide construir uma maior. E o início dos problemas. Encomendam-se longos toros de madeira com uma casa comercial de Juazeiro da Bahia, às margens do Rio São Francisco. Ao demorar a entrega daquele material, que tem de vir da Amazônia, homens de Canudos vão pedir satisfação ao comerciante de Juazeiro. Sua presença assusta os moradores da pacata cidade e logo se cria o boato de que há um ‘fanático’ que planeja invadir Juazeiro. Isso é o estopim. Autoridades da cidade se comunicam com o Governo da recém-criada República, que logo ordena a primeira Expedição Militar. A primeira esfrega acontece em Uauá, em novembro de 1986.
A confusão repercute na imprensa do Rio de Janeiro. O renomado escritor Machado de Assis ainda aconselha que se tente dialogar com o Conselheiro, mas ninguém dá atenção ao que ele escreve no jornal.
Num momento de forte secularização da elite republicana do Rio de Janeiro, poucos entendem o que se passa nos sertões. Não se entende que Canudos, antes da confusão dos anos 1896-1897, é puro misticismo, pura devoção a Arcanjo Miguel, defensor de desvalidos e mal-aventurados, como realço em meu livro Os Anjos de Canudos, publicado pela Editora Vozes de Petrópolis, em 1997. Com Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, não é tanto um líder que aparece no horizonte sertanejo, antes um sonhador e místico (p. 18).
wwwA prédica do Beato, malgrado seu tom severo, está envolvida num clima de alegria, riso e festa. O povo, simplesmente, não se confessa penitente. Assiste aos sermões do Conselheiro antes por fascínio religioso que por convicção penitente. E o próprio Conselheiro entra no jogo: ele usa os livros devotos de praxe, imbuídos de penitencialismo, antes como manuais de cânticos e ladainhas nas alegres ‘Trezenas’ e ‘Novenas’, nas ladainhas de Nossa Senhora do mês de Maio, no ciclo natalino, na Festa do Padroeiro ou da Padroeira, quando os ‘noiteiros’ recebem a população inteiro e os fogueteiros, zabumbeiros e celebrantes, as moças que puxam os cânticos, todos e todas colaboram na alegria da festa. Em Canudos se labuta e se canta, se penitencia e se namora.
O modelo de sociedade que se experimenta em Belo Monte passa a incomodar fazendeiros e coronéis da região, que estão perdendo mão de obra escrava, uma vez que muitas famílias se mudam para Canudos, chamadas pela possibilidade de viver sem patrão, não passar fome e viver na fé. Diversos ‘coronéis’ escrevem cartas aos governos, reivindicando medidas para combater Canudos. Belo Monte incomoda igualmente os militares, que, orgulhosos com a criação da República em 15 de novembro de 1889 (na realidade, trata-se de um golpe militar), não suportam o fato que o povo astuto do sertão perceba logo que essa tal de República oculta um plano para aumentar impostos e criar novos (‘Os anjos de Canudos’, p. 67 sqq.) e que o Conselheiro divulgue essa ideia em seus sermões. E, por acúmulo de má sorte, Belo Monte incomoda o Arcebispo de Salvador e o alto clero da Bahia, que vê com maus olhos uma parte do rebanho escapar do controle clerical. Então, proprietários de terras, militares e eclesiásticos se unem contra Canudos, que passa a ser visto como um reduto de perigosos ‘fanáticos’.
wwwDaí em diante são onze meses de intensos combates, num total de três expedições, sendo a última finalizada no dia 05 de outubro de 1897, com a destruição total de Canudos feito e a matança de todos seus habitantes, após o envio de uma tropa de quase dez mil soldados.
wwwDo acervo do Professor José Paulino da Silva, da Universidade Federal de Sergipe. Agora vem o mais grave: baixa, em relação a esse terrível episódio de estupidez e brutalidade, a cortina do silêncio. Ninguém comenta o acontecido em Canudos, nem as pessoas do povo (por medo), nem a mídia, nem a igreja. Um silêncio que ainda persiste hoje, pois a história de Canudos ainda é pouco estudada nas escolas e pouco se busca acerca do que ocorreu mesmo nessa tragédia.
Há alguns olhares diferenciados, como o de José Benício, testemunha ocular do massacre, cujas observações estão na base de meu livro de 1992, acima citado. Após ler uma reportagem sobre Canudos na Revista ‘O Cruzeiro’, o professor e historiador José Calasans (1915-2001) se interessa pela temática e passa a utilizar a história oral como ponto de partida. Isso inova a historiografia sobre Canudos. Cortinas se abrem e o próprio povo de Canudos passa a falar. Na linha de Calasans se deve mencionar o jornalista e cineasta Antônio Olavo, produtor de vídeos como A Guerra de Canudos, um clássico, e que continua militando nos dias de hoje. Canudos é um tema ‘em andamento’.