ARTIGO – PÁSCOA

Páscoa, abandono e desolação. Marcos evangelista conta que, no terceiro dia após a terrível morte de Jesus, ou seja, após o término da tradicional Páscoa judaica, não se encontra nenhum discípulo, nenhuma discípula dele, em Jerusalém. É o que consta no capítulo 14, vv. 45-52 de seu Evangelho, onde se lê que, quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e o prenderam, todos os seus discípulos o abandonaram. Marcos escreve literalmente: todos fugiram (em grego: ‘efugon pantes’: v. 50). O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse desenlace: Vocês se dispersarão, cada um de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Provavelmente, os discípulos e as discípulas fugiram da cidade de Jerusalém, pois não só as autoridades, mas igualmente a população local lhes era hostil. É verdade que Simão Pedro ainda teimou acompanhar de longe a tragédia, mas não aguentou nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente do Grande Sacerdote: Não o conheço, não sei de que você está falando (Mc 14, 68). Ele acabou fugindo da Cidade e empreendeu a viagem de cinco dias à terra natal, a região da Galileia pesqueira, em torno do Mar de Genesaré. Talvez na companhia de alguns companheiros, igualmente pescadores e discípulos de Jesus. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou pescar’. Os outros dizem: ‘Vamos como você’ (Jo 21, 3). Mas nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago e João, os filhos de Zebedeu. Embora eles digam entre si: ‘Isso acabou. Foi bonito, mas acabou’, a memória persiste. A figura de Jesus não deixa os apóstolos em paz e, quando vão à sinagoga nos sábados e escutam leituras de Isaías, dos Salmos, dos Profetas, que falam em Servo sofredor, Servo de Ihwh, Ungido pelo Sopro do Senhor, não conseguem deixar de recordar Jesus. Para eles, Jesus é esse Ungido de Deus enviado ao mundo, o Enviado do Pai, o Servo Sofredor. Essa situação dura meses, talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Enfrentar uma população que gritou, diante de Pilatos: ‘Acabe com ele, crucifique’? Nem pensar. &&&& Grita-se: Cristo! A memória de Jesus ronda o movimento, que se espalha rapidamente por grandes espaços. Temos um vislumbre de como funciona por volta de 20 anos após a morte de Jesus, por meio do primeiro texto, cronologicamente falando, do Novo Testamento, que é a Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses, do ano 49. Aí se lê, no versículo 5 do primeiro capítulo, uma observação do missionário Paulo de Tarso: não foi por palavra que a mensagem se espalhou entre vocês, mas por Força, por Sopro Santo, por Plenificação’ (em grego:‘plèroforia’). O que significa essa ‘Plenificação’? Em primeiro lugar, significa que a imagem clássica de um apóstolo pregando diante de um ‘auditório’ não corresponde ao que acontece em Tessalônica. Não há ‘pregador’, não há ‘auditório’, há Plenificação. Temos uma ideia mais precisa do que significa isso quando lemos o capítulo 14 da Primeira Carta aos Coríntios, de Paulo. O grupo que se evoca aí não se mostra disposto a escutar o que o apóstolo tem a dizer. Pelo contrário, entramos num ambiente barulhento e agitado. Todos (todas?) falam ao mesmo tempo, alguns (algumas?) emitem sons sem sentido, ou seja, falam em línguas (em grego: ‘Glôssais lalein’). Eles/elas emitem sons, que aparentemente não têm nenhum sentido, mas que são acolhidos com exaltação, como se possibilitassem, por meio de uma língua misteriosa, um contato direto com Deus. Parece que todos/as acreditam que esses sons incompreensíveis expressem uma língua misteriosa de contato direto e informal com Deus. Quem fala em línguas não se dirige à gente, mas a Deus (v. 2), escreve o apóstolo. Assistimos a um momento intenso de encantamento coletivo. Alguns entram em transe, outros gritam (em grego: ‘kèrussô’). Esse verbo evoca o grito do arauto do rei (kèruks), que pede que se livre o caminho para que o cortejo do rei possa passar. Todos gesticulam. Mas, ao lado desse entusiasmo, há o medo. O movimento de Jesus, nos primeiros anos após a morte cruel de Jesus, enfrenta condições extremamente duras: incompreensões por todo canto, tanto por parte das autoridades quanto por parte da população em geral; perseguições e hostilizações; até condenações à morte, como é o caso de Estêvão no capítulo sete dos Atos dos Apóstolos. O movimento vive sob a constante ameaça de ser varrido do mapa por intervenções por parte das autoridades, com a conivência da população majoritária, como acontece com não poucos movimentos populares da época. Mas os seguidores de Jesus não desistem. Eles compartilham a mesma convicção: ‘não se pode perder a memória do Senhor’. Todos e todas estão convencidos/as da necessidade de guardar e difundir a memória do profeta Jesus de Nazaré. Eis a base de uma tradição extremamente resistente, penetrante e inovadora, que se espalha rapidamente pela Galileia e alcança, em poucos anos, a Síria, a Macedônia e a Ásia Menor, até penetrar nos três centros urbanos mais importantes do Império Romano: Antioquia, na Síria, Alexandria, no Egito, e Roma, na Itália. É nesses ambientes de entusiasmo permeado de medo que ressoa, pois, o grito: Cristo! (1 Cor 15, v. 12). Em grego: Xpistos kèrussetai, literalmente: ‘Grita-se: Cristo‘. Pois repito: ‘Kèrussô‘ significa ‘gritar‘, enquanto o substantivo ‘kèrugma‘ [querigma] significa ‘grito‘. &&&& Os discípulos de Emaús. Encontrei outras abordagens de tradições orais da época em torno do tema da ressurreição. Aqui cito duas. No Evangelho de Lucas, que é dos anos 80, ou seja, 50 anos após a morte de Jesus, encontro o episódio Os discípulos de Emaús (Lc 24, vv. 13-35). Lucas conta que, após o triste fim da vida de Jesus em Jerusalém, dois discípulos voltam para a aldeia Emaús, decepcionados. Acontece que um caminhante, que se dirige à mesma localidade, se junta a eles e logo entabula uma conversa: ‘O que estão conversando?‘ Cleófas responde: ‘Você é o único que não sabe o que aconteceu em Jerusalém nestes dias? (v. 18). Nós esperávamos que fosse Jesus que