ARTIGO – AH! FRANCISCO!
Francisco você é esquisito, não parece que é líder de uma religião. Eu rezo por você e lamento por você estar tão doente. Você é tão estranho. Respeita as religiões diferentes, parece até um tal Jesus que dialogava com a samaritana e atendeu a um pedido da Cananéia. Você acolhe os homossexuais que são tão perseguidos pela sociedade como eram os epiléticos, os aleijados do tempo de um tal Jesus. Você respeita as mulheres e até as convida para assumirem cargos importantes, parece um tal Jesus que confiou à Maria Madalena o anúncio da ressurreição. Você critica a hipocrisia dos religiosos e é tão criticado por isso, também me lembra um tal Jesus que esculhambou os negociantes do templo e não media palavras para denunciar os doutores da lei. Você enfrenta os opressores, os poderosos como fazia um tal Jesus que chamou Herodes de raposa e não permitiu que César desfigurasse a imagem e semelhança de Deus. Ah Francisco, como você é esquisito, faz parecer que Deus se fez humano e que toda teologia é uma antropologia. Você acolhe divorciados, homoafetivos, pobres, mulheres, o humano como ele é tal qual fazia um tal Jesus que andava com pecadoras e publicanos, curava em dia de sábado. Você não aceita a violência contra a natureza, é intolerante com os abusadores de menores, feito um nazareno que dizia deixai vir a mim as crianças porque delas é o Reino dos Deus. Francisco meu bom Francisco você é esquisito se parece com um tal Jesus de Nazaré; você é um outro Francisco, o tal de Assis. AUTORIA: Padre Enio Marcos de Oliveira. Autor de As orações dos Franciscos. Ed Vozes. Via Marcia Friggi
ARTIGO – O PAPA DO FIM DO MUNDO
Ao ser empossado bispo de Roma em 19 de março de 2013, há doze anos, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio adotou o nome de Francisco para carimbar seu pontificado como favorável aos excluídos e à saúde do Planeta, e declarou: “Como vocês sabem, o dever do Conclave era dar um bispo a Roma. Parece que os meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo.” Como ressalta o professor Fernando Altemeyer Junior, a preocupação de Francisco é “o cuidado pastoral dos empobrecidos e o rompimento claro do clericalismo que fez da Igreja uma instituição autocentrada e distante do evangelho de Jesus.” Francisco puniu com severidade bispos e padres pedófilos, acolheu as vítimas, enfrentou a ultradireita católica dos EUA e da África e, em 2019, excluiu do cardinalato e do sacerdócio o estadunidense Teodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington, por prática de pedofilia e, em 2023, o Tribunal Penal do Vaticano condenou a cinco anos de prisão o cardeal italiano Giovanni Angelo Becciu, de 75 anos, por peculato e fraude financeira. Francisco não esconde seu descontentamento com Trump e sua simpatia por Lula, apoia a causa palestina e, em janeiro deste ano, nomeou a religiosa Simona Brambilla prefeita do Vaticano. Democrata, já convocou seis sínodos no intuito de renovar a Igreja, inclusive pôr fim ao celibato obrigatório para o clero do Ocidente. No entanto, muitos bispos e cardeais são oriundos da safra conservadora dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que levantam o freio de mão enquanto o papa acelera. Francisco é o cabeça de uma comunidade que congrega 1 bilhão 390 milhões de fiéis (pouco mais de 17% da população mundial). Fez 47 viagens internacionais e visitou 60 países, mas não retornou à Argentina. Quando o papa Francisco falecer, será convocado um novo Conclave (como mostra o filme de mesmo nome dirigido por Edward Berger). Os atuais cardeais eleitores são 138, de 71 países. Os cardeais não eleitores, por terem ultrapassado 80 anos, são 114. Os cardeais nomeados por Francisco somam 79,7% do atual colégio eleitoral. São 18 eleitores na África, 18 na América do Sul (entre os quais 7 brasileiros), 20 na América do Norte e América Central, 24 na Ásia, 54 na Europa, e 4 na Oceania. Neste mês de fevereiro, a editora Fontanar/Companhia das Letras lançou a autobiografia de Francisco, “Esperança”, a primeira de um papa, redigida em parceria com Carlo Musso. Tive dois encontros pessoais com Francisco, no Vaticano, em abril de 2014, e em agosto de 2023. No primeiro, falei-lhe da importância das Comunidades Eclesiais de Base (escanteadas pelos dois papas que o precederam), e pedi-lhe manter o diálogo com a Teologia da Libertação, sempre defender os povos indígenas e reabilitar meus confrades Mestre Eckhart, que teve vários de seus escritos condenados pela Cúria Romana, e Giordano Bruno, queimado vivo como herege em uma praça de Roma, em 1600. Francisco reagiu às minhas solicitações: “Ore por isso.” Ao final, me dirigi a ele, primeiro, em latim, e logo traduzi para o espanhol: “Extra pauperes nulla salus – Fora dos pobres não há salvação.” O papa sorriu: “Estou de acordo”, disse ao se afastar. No segundo encontro, Francisco me abraçou, beijou e permitiu que fosse filmado por Roberto Mader, que prepara documentários sobre minha trajetória. Dei-lhe de presente meu livro “Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes) e, em espanhol, a cartilha popular, redigida por mim, e traduzida para o espanhol, do Plano de Soberania e Educação Nutricional de Cuba, que assessoro desde 2019. Expliquei-lhe que o “Jesus militante” defende a tese de que o Nazareno veio nos trazer um novo projeto político, civilizatório, que denominava Reino de Deus, em oposição ao reino de César, no qual viveu e pelo qual foi assassinado na cruz devido à ousadia de anunciar um outro reino possível que não era o de César… Insisti para que participe da COP 30, a conferência mundial do clima, a ser realizada em Belém, em novembro próximo. Ele disse que pensava nessa possibilidade. Pedi que interviesse junto a Joe Biden, que se considera católico, para suspender ou, ao menos, flexibilizar o criminoso bloqueio dos EUA a Cuba. Obama, que não é católico, havia minorado as duras medidas do bloqueio imposto desde 1962 à ilha revolucionária do Caribe. E repeti o pedido feito em nosso primeiro encontro: a reabilitação de meu confrade Giordano Bruno, cujas “heresias” estão hoje integradas à teologia e às ciências ou foram descartadas como anacrônicas. Deus conceda a ele longa vida, pois ainda há muito a reformar na Igreja e Francisco é, hoje, uma das raras lideranças a criticar a hegemonia capitalista (globocolonização), apontar as causas da degradação socioambiental e defender os refugiados vítimas da secular exploração da Europa aos países africanos, asiáticos e latino-americanos. Colunista Colaborador – Frei Betto
ARTIGO – JESUS DO MITO E JESUS DA HISTÓRIA.
O termo grego ‘muthos’ (mito) significa ‘narrativa, história contada’. Quando afirmamos que os evangelhos são de caráter narrativo, dizemos, em outras palavras, que eles são ‘mitológicos’. Pois a narração não é um relato frio de algum evento, mas vai carregada da emoção do momento e tem uma intencionalidade própria. O Jesus ‘das narrativas’ (ou ‘do mito’) é diferente do ‘Jesus histórico’, pois, enquanto esse último é resultado de uma investigação que siga regras ‘heurísticas’ próprias da historiografia, o primeiro dispensa essas regras. Neste texto, distingo entre uma aproximação mitológica e uma aproximação historiográfica da figura de Jesus. Há complexidade, sem dúvida, mas uma boa distinção traz clareza, como nos ensina o velho mestre Tomás de Aquino, que, ao enfrentar um problema, repetia: distinguo! Distinguir para não separar, mas para entender melhor as coisas. Destrinchar para não criar oposição. E, como sei, por exemplo, que termos como ‘mitologia’ e ‘mitológico’ costumam soar pejorativamente, faço questão de dizer, logo de início, que não é num sentido negativo que os utilizo aqui, como fica claro em seguida. &&&& Apologia da mitologia. Uma narrativa não costuma ser um relato frio de acontecimentos, mas carrega consigo emoções vividas no momento de sua enunciação, além de outros condicionamentos. Assim, as primeiras narrativas acerca de Jesus, além de carregar marcas indeléveis de um rico imaginário semita, expressam, ao seu modo, emoções vividas por seus discípulos nos primeiros anos do movimento. Esses discípulos, nos primeiros anos após a morte cruel de Jesus, enfrentam condições extremamente duras: incompreensões por todo canto, tanto por parte das autoridades quando por parte da população em geral; perseguições e hostilizações; até condenações à morte, como é o caso de Estêvão no capítulo sete dos Atos dos Apóstolos. O movimento de Jesus vive com uma ameaça constante: a iminência de varrido do mapa por intervenções por parte das autoridades, com a conivência da população majoritária, como acontece com não poucos movimentos populares da época, como nos lembra R. A. Horsley em seu livro Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no Tempo de Jesus (Paulus, São Paulo, 1995). Mas os seguidores de Jesus não desistem. Eles compartilham a mesma convicção: ‘essa memória não se pode perder’. Todos estão convencidos da necessidade de guardar e difundir a memória do profeta Jesus de Nazaré. Eis a base de uma tradição extremamente resistente, penetrante e inovadora, que se espalha rapidamente pela Galileia e alcança, em poucos anos, a Síria, a Macedônia e a Ásia Menor, até penetrar nos três centros urbanos mais importantes do Império Romano: Antioquia, na Síria, Alexandria, no Egito, e Roma, na Itália. Veiculada, nos primeiros quarenta anos, por agentes anônimos e, a partir dos anos 70, por evangelistas e redatores de Atos, Cartas e Apocalipses, essa primeira ‘apresentação’ de Jesus trabalha basicamente com dados mitológicos, ou seja, com narrativas transmitidas. Eles não são ‘historiadores’. Na realidade, os evangelistas demonstram pouco interesse em descrever como foi mesmo a vida concreta de Jesus. Seu interesse é outro: impulsionados por ondas crescentes de uma tradição que se cria a partir da horrível morte do líder de Nazaré, e que já se consolida ao longo de 40 a 50 anos (40 anos no caso de Marcos, pelo menos 50 anos no caso de Mateus e Lucas), seu interesse consiste em apresentar um Jesus que anime e sustente a fé dos discípulos e das discípulas em meio à hostilidade, incompreensão, desprezo e mesmo perseguição aberta (com perigo de vida), por parte das autoridades e também da sociedade. Daí a luminosa auréola, que passa a envolver a figura de Jesus e o distingue do comum dos mortais. Ele não só expulsa sopros maus, cura leprosos, socorre necessitados, mas vira – com o tempo – uma figura excepcional: anda sobre as águas, acalma tempestades, multiplica pães. Torna-se um novo Elias, o grande profeta da memória popular judaica, que multiplica pão para a viúva de Sarepta, lança seu manto sobre as águas e as separa, ressuscita mortos. Torna-se um novo Moisés, libertador do povo hebreu escravizado no Egito. Esse Jesus, fazedor de milagres e feitos impressionantes, sustenta a fé dos primeiros seguidores. Combatidas, desprezadas e mal interpretadas, as comunidades de discípulos e discípulas visam, antes de tudo, manter e avivar a imagem de um Jesus que, ressuscitado e divino, demonstra a mais tenaz resiliência, a mais viva resistência, a mais forte persuasão. E eles têm sucesso. Pois, enquanto diversos movimentos proféticos e messiânicos da época sucumbem aos golpes da perseguição, isso não acontece com o movimento de Jesus. Os discípulos e demais seguidores sabem descobrir algo diferente em seu líder, algo que o destaque. Para tanto, eles abandonam a memória histórica em benefício de uma imaginação mitológica, em grande parte fundamentada em textos das Escrituras Sagradas do judaísmo. Determinados setores do movimento, já na primeira geração, passam a demonstrar mais interesse no Senhor ressuscitado que em Jesus histórico e isso repercute nos quatro evangelhos, que são pensados e programados no contexto da fé no ‘Cristo’ (denominação criada por Paulo no início dos anos 50). Empreende-se um trabalho intenso de releitura de tradições bíblicas milenares em função da figura de Cristo. Gente letrada, ao se juntar ao movimento de Jesus, procura em textos bíblicos, principalmente salmos e profecias, provérbios, sabedorias e histórias, sinais e previsões da figura de Cristo. O evangelista Marcos, por exemplo, encontra a figura de Jesus em textos do profeta Daniel, do século V aC (como comento adiante). Ele enxerga em Jesus um ‘novo Elias’. Vira costume, entre os evangelistas, apresentar os sofrimentos de Jesus à luz de textos do profeta Isaías e daí nascem os impressionantes textos da Paixão. Enfim, já nos primeiros decênios após sua morte, a figura de Jesus é submetida a uma releitura bíblica, num trabalho paciente e insistente, que conseguimos detectar em diversos pontos do primeiro universo cristão: Antioquia da Síria, Macedônia, cidades ribeirinhas da Ásia Menor, Alexandria, Roma. O movimento resulta numa imagem multifacetada de Jesus, posteriormente absorvida numa tradição multissecular. O que acabo de descrever só é uma parte da primeira tradição.