MUNDO – “Depois de duas guerras mundiais e da pandemia, continuamos sem conseguir valorizar a vida humana”. Entrevista com Imã Marwan Gill
A entrevista é de Clara Raimundo, publicada por 7Margens, 12-12-2024. Nasceu na Alemanha, estudou no Reino Unido e está em missão na Argentina. Tendo em conta estas coordenadas, talvez poucos adivinhassem que nos referimos a um imã. Mas para Marwan Gill, 34 anos, o fato de ter vivido sempre em países não-muçulmanos não foi motivo para se afastar do islã, pelo contrário. Na verdade, foram os seus pais que tiveram de fugir de um país de maioria muçulmana, o Paquistão, porque o grupo a que pertenciam – a comunidade muçulmana ahmadia – aí era (e continua a ser) considerada herética e, por esse motivo, perseguida. De passagem por Portugal para participar num encontro de bolseiros do Centro Internacional para o Diálogo (KAICIID), com sede em Lisboa, o atual presidente da Comunidade Muçulmana Ahmadia na Argentina falou ao 7MARGENS sobre a importância do diálogo inter-religioso, em particular entre muçulmanos e judeus, do qual tem sido protagonista. O programa de rádio que conduz semanalmente com o rabino Miguel Steuermann, intitulado Salam Shalom [as palavras árabe e hebraica para “paz”] despertou a atenção do Papa, que pediu para conhecê-los, e deu origem a um livro, que acabam de lançar (para já apenas em espanhol). Porque – como lhes disse Francisco – “agora é a altura de não desistir”. Eis a entrevista. Ser muçulmano em países de tradição cristã tem sido um desafio particularmente difícil? Como muçulmano que viveu sempre em sociedades ocidentais não-muçulmanas, devo confessar que não senti como um desafio construir a minha identidade como muçulmano. Viver nestas sociedades – que, no caso da Alemanha e da Inglaterra, não expressam tão fortemente a religiosidade… são sociedades mais laicas e que de alguma forma se orgulham do secularismo – permitiu-me alargar o meu horizonte, conhecer outras culturas e religiões, outras formas de interpretar a espiritualidade. Mas sinto que houve um “antes” e um “depois” do 11 de Setembro… Que idade tinha quando ocorreram os ataques? Tinha 11 anos. E esse acontecimento veio realmente alterar a vivência que eu tinha tido até então como muçulmano. Porque antes do 11 de Setembro, o islã era, para a maioria dos ocidentais, um mundo exótico… Um pouco como são hoje o hinduísmo e o budismo. As pessoas não sabiam muito sobre o islã, assumiam que era algo diferente, e quando queriam saber mais faziam algumas perguntas. Mas, depois do 11 de Setembro, deixaram de fazer perguntas: passaram a fazer afirmações com base em preconceitos, a dar opiniões com base em estereótipos e generalizações. E de repente eu, um adolescente, fui confrontado com a necessidade de explicar como nasceu a Al-Qaeda, o que é a Al-Qaeda, qual é a relação dos talibãs com o islã… Quando eu nunca tinha sequer ouvido falar deles na mesquita ou lido sobre eles no Alcorão! Para você também foi um choque… Completamente! Não conhecia a Al-Qaeda… E as expressões jihad [que em árabe significa “luta”, “esforço”] ou Allahu Akbar [que significa “Alá é grande”] já as conhecia, mas só eram usadas para orar, para santificar Deus e santificar toda a Sua criação. E afinal havia muçulmanos que, em nome de Allahu Akbar, matavam outras pessoas? Não conseguia encontrar ligação entre uma coisa e a outra. Não percebia porque é que me confrontavam com isso por eu ser muçulmano e muito menos sabia explicar como é que era possível usar Allahu Akbar para justificar qualquer tipo de violência. Foi a procura dessas respostas que o trouxe até aqui? Sim! Estava na Alemanha e senti que o islã passou a ser um bode expiatório para os mais variados problemas, porque a sociedade não queria aprofundar as verdadeiras causas desses problemas. Por exemplo, se havia homens muçulmanos que tratavam mal as mulheres, isso não era por causa do islã. Se havia famílias muçulmanas que não conseguiam integrar-se, não era por causa do islã. Mas via que o islã era muitas vezes debatido e alvo de acusações, e ainda por cima sempre sem a participação de um muçulmano à mesa… Isso para mim foi muito forte. Então, decidi que queria sentar-me à mesa, que queria dar voz ao islã onde ele fosse debatido. Queria que o Ocidente pudesse compreender a verdadeira essência e identidade do islã. E daí a minha decisão de entrar para o seminário islâmico para ser imã. Fonte: Site Instituto Humanitas Unisinos Matéria Completa: Acesse Aqui
MUNDO – Os EUA e Israel destruíram a Síria e chamaram isso de paz. Artigo de Jeffrey D. Sachs
Jeffrey D. Sachs é professor da Universidade de Columbia, é diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e presidente da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável da ONU. “A interferência dos Estados Unidos, a mando do regime de Netanyahu, deixou o Oriente Médio em ruínas, com mais de um milhão de mortos e guerras abertas desencadeadas na Líbia, no Sudão, na Somália, no Líbano, na Síria e na Palestina, e com o Irã à beira de um arsenal nuclear sendo empurrado contra as suas próprias inclinações para esta eventualidade”. A reflexão é de Jeffrey D. Sachs, em artigo publicado originalmente por Common Dreams, e reproduzido por La Haine, 17-12-2024. A tradução é do Cepat. Nas famosas palavras de Tácito, historiador romano: “Saquear, massacrar, usurpar, a estas coisas dão o falso nome de império; e onde criam um deserto, chamam isso de paz”. Em nossa época, são Israel e os EUA que criam um deserto e o chamam de paz. A história é simples. Em flagrante violação do direito internacional, o primeiro-ministro do regime israelense, Benjamin Netanyahu, e os seus ministros reivindicam o direito de governar mais de 7 milhões de árabes palestinos. Quando a ocupação israelense de terras palestinas gera uma resistência militante, Israel qualifica essa resistência de “terrorismo” e pede aos EUA que derrubem os governos do Oriente Médio que apoiam os “terroristas”. Os EUA, sob a influência do lobby israelense, vão à guerra em nome de Israel. A queda da Síria esta semana é a culminância da campanha israelense e estadunidense contra a Síria, que remonta a 1996, com a chegada de Netanyahu ao cargo de primeiro-ministro. A guerra israelo-estadunidense contra a Síria intensificou-se em 2011 e 2012, quando Obama encomendou secretamente à CIA a derrubada do governo sírio na Operação Timber Sycamore. Esse esforço finalmente deu frutos esta semana, depois de mais de 300 mil mortes na guerra síria desde 2011. A queda da Síria aconteceu rapidamente devido a mais de uma década de sanções econômicas esmagadoras, ao peso da guerra, ao roubo do petróleo da Síria por parte dos EUA, às prioridades da Rússia relativamente ao conflito na Ucrânia e, de forma mais imediata, aos ataques de Israel contra o Hezbollah, que foi o principal apoio militar do governo sírio. Sem dúvida, Assad nem sempre jogou bem as suas próprias cartas e enfrentou um certo descontentamento interno, mas o seu governo foi alvo de colapso ao longo de décadas por parte dos Estados Unidos e Israel. Antes da campanha EUA-Israel para derrubar Assad ter começado seriamente em 2011, a Síria era um país de renda média que funcionava e crescia, apoiado pelo seu povo devido à extensa rede de segurança social. Em janeiro de 2009, o Conselho Executivo do FMI afirmou o seguinte: “Os diretores executivos elogiaram o bom desempenho macroeconômico da Síria nos últimos anos, manifestado no rápido crescimento do PIB não petrolífero, no nível confortável das reservas cambiais e na dívida pública baixa e em declínio. Estes resultados refletem tanto a robusta demanda regional como os esforços de reforma das autoridades para mudar para uma economia mais voltada para o mercado”. Fonte: Site Instituto Humanitas Unisinos Matéria Completa: Acesse Aqui
ARTIGO – JESUS EM PERSPECTIVA MUNDIAL
“Nem sempre esse caráter potencialmente universal de movimentos religiosos é percebido por seus próprios praticantes”, escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Eis o artigo. Mesmo sendo empurrada pelas novas tecnologias, pelas viagens aéreas e pelo intenso comércio internacional, uma ampla perspectiva mundial hoje ainda não compenetrou nossos sistemas ideológicos, políticos, culturais e religiosos, como podemos constatar a cada dia. Em 1948, no reboque do trauma causado pela II Guerra Mundial, o filósofo alemão Karl Jaspers se imaginou um esquema interpretativo que seria válido para a humanidade toda. Em determinados momentos da história haveria movimentos, em determinados pontos do planeta, de novas percepções e novas práticas. Jaspers pensou detectar uma tal ´idade axial‘, por volta do século V aC, em Israel (os profetas), Grécia (Platão), China (Confúcio), Índia (Buda) e Irã (Zaratusta). A ideia é sugestiva, pois foca uma religião mundial, sem registro nem fronteira ou nome, secularmente vivida pela grande maioria das pessoas, uma religião universal que as instituições teimam em não reconhecer, mas que corresponde a intuições como as de Isaías, Platão, Confúcio, Buda e Zaratustra. Milhões e milhões de pessoas vivem sua religião dentro de quadros familiares, em todos os quadrantes do mundo, dentro ou fora das mais variadas institucionalizações. Em todas elas persistem atitudes semelhantes de procura de honestidade, dignidade, verdade e sabedoria. Certa feita, Leonardo Boff perguntou ao Dalai Lama: qual é a verdadeira religião? E este respondeu: a que faz de você uma pessoa melhor. Eis uma boa definição daquela ‘religião anônima’ universal. Daí decorre que não poucos textos religiosos, escritos dentro de determinados âmbitos institucionais, podem ser lidos com proveito por um amplo leque de leitores/as fora daqueles âmbitos, pois tratam de realidades vividas pela grande maioria dos que habitam este planeta: a vida em família, a luta por uma situação econômica melhor, a luta contra a fome, pela coerência, pela verdade, pela dignidade humana, pela superação de preconceitos sexuais. Uns vinte anos atrás, eu publiquei um comentário de um texto bem antigo da tradição cristã, intitulado O Pastor de Hermas, que pode ser lido com proveito por gente das mais variadas denominações religiosas, pelo fato de não ser um texto restritivo à instituição cristã, mas abordar questões universais em torno de casamento, escravidão, liberdade, sexualidade, utopia e educação (Hermas no Topo do Mundo, Paulus, São Paulo, 2002). Nem sempre esse caráter potencialmente universal de movimentos religiosos é percebido por seus próprios praticantes. Nas primeiras décadas do movimento de Jesus (entre os anos 30 e 50), por exemplo, os apóstolos mal percebem que, pensando bem, o universalismo pertence ao âmago da mensagem de Jesus de Nazaré. Aqui, há de se considerar que, nas palavras e nos gestos de Jesus, o universalismo entra como vislumbre, não impregna por inteiro o modo de falar e atuar. Jesus permanece fundamentalmente judeu, pensa em categorias judaicas e segue tradições judaicas. Então, é de se entender que os discípulos da primeira geração pensem que a mensagem de Jesus se restrinja ao mundo judaico e não compreendam como um não judeu possa participar do movimento.