ARTIGO – OS SURPREENDENTES “ESCRITORES” DO NOVO TESTAMENTO
A biblista inglesa Cândida Moss publicou recentemente um livro instigante e intrigante, intitulado: God’s Ghostwriters: enslaved chistians and the making of the Bible (New York, Little Brown, 2024. Em tradução livre: “Os Ghostwriters de Deus: cristãos escravizados e a construção da Bíblia”), em que levanta uma questão nova: será que os autores reconhecidos dos textos do Novo Testamento, como Paulo, Pedro, Mateus, Lucas ou João (Marcos é um caso à parte, como se verá em seguida), efetivamente ‘escreveram’ seus textos, ou há quem escrevia por eles? Ou, de modo mais direto: interferiram, na escrita (e talvez até na redação) de textos fundantes do Novo Testamento, cristãos escravizados, contratados para escrever textos a serem posteriormente creditados aos que comumente consideramos autores do Novo Testamento? …………………………………………………………………….. Eis uma questão instigante, que nos leva a considerar a relação existente, em tempos de Jesus, entre alfabetização e escravidão. Na época do surgimento do cristianismo, apenas 5 a 10 % da população era alfabetizado. Os apóstolos, em geral, eram analfabetos, sendo Paulo de Tarso uma exceção. As sociedades, que viviam sob o comando do Império Romano, eram escravocratas. Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam os próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto. Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da moderna, atlântica, que mantinha os escravos no analfabetismo. Mas como, nos tempos do Império Romano, o ato de escrever era uma tarefa penosa, árdua e cansativa, havia casos de escravos alfabetizados que se punham a serviço de escritores analfabetos. A expressão ‘escritores analfabetos’ parece contraditória, mas ela expressa uma realidade. Estamos falando de uma época em que não existiam óculos (hoje, 40 % da população mundial dispõem [ou pode dispor] de óculos), em que a prolongação no ato de escrever provocava artrite, ou seja, desgaste das cartilagens dos dedos, uma época sem eletricidade, sem imprensa, sem meios de copiar textos mecânica ou digitalmente. A tese de Cândida Moss implica em admitir que, ao longo dos primeiros duzentos anos da tradição cristã, os textos, salvo raras exceções, tenham sido escritos por cristãos escravizados ou ‘libertos’. Só a partir do século IV, tarefas como escrever, copiar e recopiar textos do Novo Testamento, foram assumidas por monges, nos mosteiros. …………………………………………………………………….. O caso de escravos ‘escritores’ fica patente nas Cartas de Paulo. Mesmo alfabetizado e muito culto, Paulo não costumava escrever suas cartas. No final de diversas delas se encontra uma frase escrita por ele do próprio punho (em grego: ‘tè emè cheiri’, ‘com minha mão’) (2 Tess. 3, 17-18; Col. 3, 13; Gal. 6, 11; 1Cor. 16, 21; Filêmon, 19), como se fosse uma ‘assinatura’ a garantir a autoria intelectual de Paulo. No final da Carta aos Gálatas (6, 11), Paulo insiste: essas palavras, escritas em GRANDES LETRAS, são a prova que a carta é minha. E, no final da Segunda Carta aos Tessalonicenses (3, 18), ele lembra: eu deixo um sinal (em grego: ‘sèmeion) em cada carta. Isso permite afirmar que Paulo tinha, então, à sua disposição, ‘discípulos de Jesus’, provavelmente escravos ou libertos, que executavam a tarefa de escrever suas cartas. Mas será que esses ajudantes eram apenas ‘copistas’ a anotar textos ditados pelo apóstolo? Há uma frase, no final da Carta aos Romanos, que nos faz duvidar. Em Romanos 16, 22, o ‘secretário’ Tértio envia uma saudação pessoal aos/às leitores/as da Carta, em que declara: eu, Tértio, que escrevi esta Carta, os saúdo no Senhor. Tértio, reconhecidamente, é nome de escravo. Então, surge a dúvida: Tértio só taquigrafou palavras ditadas por Paulo, ou teve um papel mais criativo na redação da carta? Não o sabemos. A mesma dúvida paira sobre o Evangelho de João. No final (21, 24), se lê a seguinte frase: Este é o discípulo (em grego ‘mathètès’) que dá testemunho destas coisas e as pós por escrito (em grego: ‘ho grapsas tauta’). Quem é esse discípulo? A frase ganha peso quando lemos os versículos seguintes: Ora, Jesus fez ainda muitas coisas. Se todas elas fossem escritas, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros. Um texto como esse faz crer que houve, ao longo dos setenta anos entre a morte de Jesus e a redação do Evangelho de João, um intenso intercâmbio, entre comunidades do discipulado de Jesus, de histórias oralmente contadas e recontadas. Que rol cabia a cristãos escravizados nesse intercâmbio? …………………………………………………………………….. A hipótese de Cândida Moss nos ajuda a refletir sobre a transmissão da mensagem cristã nos primeiros anos do movimento de Jesus. Em culturas orais costuma vigorar o ditado: quem conta um conto, aumenta um ponto. É de se supor que, ao longo das transmissões, de boca em boca, histórias (como a da transformação de água em vinho, nas Bodas de Caná, por exemplo, ou de Jesus andando sobre as águas) tenham assumido feições sempre mais impressionantes. Os patentes exageros, recorrentes em relatos evangélicos, nos levam a fazer algumas perguntas: que relação existe entre essas histórias, oralmente transmitidas durante um período de pelo menos quarenta anos (entre a morte de Jesus e a redação do primeiro evangelho, o de Marcos, por volta do ano 70), e os escritos evangélicos que hoje lemos? Que papel coube a discípulos escravizados no ato de transmitir essas histórias? Qual a relação entre o texto que hoje lemos e a tradição oral anterior? …………………………………………………………………….. Enfim, a tese de Cândida Moss nos instiga a estudar com maior profundidade a relação entre cristianismo emergente e escravidão. O caso de Marcos evangelista nos faz refletir nesse sentido. Se acreditarmos numa informação do escritor cristão Papias de Hierápolis, por volta dos anos 120 dC, então é provável que Marcos tenha sido um escravo. Papias escreve: Marcos tornou-se intérprete de Pedro. Ele escreveu com precisão tudo o que Pedro se lembrava. Imaginamos Pedro, apóstolo analfabeto, sendo acompanhado por Marcos, escravo ou ‘liberto’, que sabia escrever e se tornou o primeiro evangelista. Marcos gozava de certa liberdade, ao escrever,
RELIGIÃO – Papa aos médicos: “Cuidar sempre, nenhuma vida deve ser descartada”
O Papa elogiou o legado da Universidade e a tradição de excelência que remonta ao imperador Frederico II, seu fundador, que deu origem a uma das mais antigas universidades do mundo. Nesta sexta-feira, 29 de novembro, Francisco dirigiu uma saudação aos profissionais da Universidade de Nápoles Federico II, a mais antiga universidade laica do Ocidente, por ocasião do 800º aniversário de sua fundação. O Santo Padre destacou a importância histórica da instituição e sublinhou os valores que devem guiar aqueles que trabalham na área da saúde, inspirados por uma rica tradição ética e cristã. O Papa Francisco recebeu em audiência, nesta sexta-feira, 29 de novembro, a comunidade acadêmica da Universidade de Nápoles Federico II, composta por reitores, professores e estudantes do setor de medicina odontológica, e proferiu sua saudação relembrando a fundação da universidade, que, há oito séculos, continua sendo um marco histórico na educação e na ciência. Ao iniciar seu discurso, o Papa elogiou o legado da Universidade e a tradição de excelência que remonta ao imperador Frederico II, seu fundador, que deu origem a uma das mais antigas universidades do mundo. O Santo Padre destacou a importância do lema hipocrático que une a lição do grego Hipócrates à autoridade do latino Scribônio: “primum non nocere, secundum cavere, tertium sanare” -“primeiro, não prejudicar; segundo, cuidar; terceiro, curar”. Segundo Francisco, estas máximas continuam a ser um guia indispensável para a prática médica: “Não prejudicar. Isso pode parecer algo óbvio, mas, na verdade, responde a um saudável realismo: antes de tudo, trata-se de não acrescentar mais danos e sofrimentos àqueles que o paciente já está vivendo.” Francisco durante a audiência Sobre o cuidado, Francisco ressaltou que esta é a ação evangélica por excelência, como a do bom samaritano, e que deve ser realizada com o “estilo de Deus”: “E qual é o estilo de Deus? Proximidade, compaixão e ternura. Não esqueçam: Deus é próximo, compassivo e terno. O estilo de Deus é sempre este: proximidade, compaixão e ternura.” Em seguida, o Papa compartilhou uma experiência pessoal: “Eu me recordo de quando, aos vinte anos, tiveram que retirar parte do meu pulmão, que estava doente. Sim, me davam os medicamentos, mas o que mais me dava força era a mão dos enfermeiros que, após aplicar as injeções, seguravam minha mão… Esta ternura humana faz tanto bem!” Fonte: Site VaticanNews Matéria Completa: Acesse Aqui