ARTIGO – IMIGRAÇÃO E REFÚGIO NO BRASIL
Em 1887 a região da Bresser-Mooca, bairro de São Paulo, sediava a Hospedaria dos imigrantes, uma casa que recebia grande leva de estrangeiros que chegavam à cidade em busca de trabalho, sobretudo nas lavouras e indústrias paulistas. A hospedaria funcionou por 91 anos e hoje, no mesmo espaço, funciona o Museu da Imigração e o Arsenal da Esperança, uma casa que acolhe homens em situação de vulnerabilidade social. Um trabalho que é realizado há 28 anos. Em 2012, quando eu estava dirigindo o Caminho Novo, projeto educacional que sonhei e concretizei no Arsenal da Esperança, começaram a chegar a São Paulo centenas de haitianos. Eram sobreviventes do terremoto de 2010, que arrasou o Haiti. Um grande número deles foi acolhido no Arsenal da Esperança. Como só falavam francês, vi a impossibilidade de frequentarem as aulas com os demais alunos brasileiros. Propus então à coordenação do Arsenal a criação de uma sala especial de português para estrangeiros e assumi as aulas como professora voluntária. Logo em seguida, começaram a chegar ao Arsenal imigrantes provenientes de diversos países da África. Começava assim a minha história com aqueles homens que chegavam a um país estranho em busca de uma vida digna. Passei então a ouvir as histórias tristes de perdas, perseguições e separações, do sofrimento de quem está longe da pátria e sente-se “o hóspede indesejável, o não cidadão, o sem teto, o sem documento, aquele que veio tirar vagas de trabalho dos brasileiros. O meu contato com eles foi se intensificando, inicialmente na sala de aula. Empatia e sensibilidade foram primordiais. Entendi, através das narrativas deles, que muitos haviam passado por experiências traumáticas e desafiadoras em seus países de origem ou durante a jornada migratória. Logo percebi também que o acompanhamento dos alunos ia além da sala de aula. Saía com eles para entregar currículos, acompanhava-os nas consultas médicas e quando conseguiam um emprego, procurava visitá-los para verificar se não se tratava de trabalho escravo. Deixavam o Arsenal da Esperança assim que conseguiam um salário que lhes permitisse pagar um aluguel. Ia então visitá-los em suas casas e os recebia em nossa casa. Tornaram-se grandes amigos. Esses imigrantes estão em nosso país devido a circunstâncias dramáticas, alheias à sua vontade. Fogem da guerra, da fome, da violência, de perseguições políticas, religiosas ou étnicas. Chegam sozinhos, utilizando seus próprios recursos. No Brasil falta uma política de acolhida e integração. Organizações governamentais e não-governamentais, como a ACNUR ( Agência da ONU para Refugiados) e a Cáritas oferecem assistência inicial, incluindo abrigo, alimentação e apoio legal. Em São Paulo, centenas de imigrantes e refugiados encontraram acolhida na Missão Paz, de padres scalabrinianos e no Arsenal da Esperança, duas instituições católicas, dirigidas por italianos. A barreira linguística é uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos imigrantes. A maioria deles chega sem qualquer conhecimento da língua local, o que dificulta a integração, o acesso a serviços básicos, como saúde e educação assim como a inserção no mercado de trabalho. O desconhecimento do idioma muitas vezes limita suas oportunidades e aumenta a sensação de solidão. O futuro dos imigrantes em nosso país depende de muitos fatores, incluindo políticas de imigração, acesso à educação e emprego e o nível de aceitação da sociedade local. Aqueles que conseguem superar as barreiras iniciais podem construir uma vida estável e contribuir positivamente para a sociedade. Orientei um ex-aluno com formação acadêmica em seu país a frequentar uma escola supletiva desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio. Fez em seguida o exame do Enem e conseguiu uma bolsa de estudos no curso de automação industrial. Hoje está casado com uma brasileira, tem um filho de seis meses e trabalha numa das empresas mais conceituadas no ramo da automação. Entretanto, sem apoio adequado, muitos podem ficar presos num ciclo de pobreza e marginalização. Enfrentam a xenofobia, preconceito e desconfiança, lutando para encontrar estabilidade em um ambiente desconhecido. Trabalham em empregos informais, muitas vezes subvalorizados e mal remunerados. Apesar das dificuldades, a resiliência é a marca registrada desses imigrantes, na luta para construir uma nova vida. A distância da família é uma dor constante para muitos imigrantes. A saudade dos entes queridos e a preocupação com o bem-estar daqueles que ficaram, assim como a dificuldade de manter contato frequente, devido a limitações tecnológicas ou financeiras são desafios diários. Quando conseguem trabalho, enviam remessas financeiras para ajudar suas famílias. O meu relacionamento com essas pessoas que vieram de longe, deixando para trás suas raízes e tradições, trazendo sonhos, esperanças e culturas variadas fez-me constatar, ao vivo e a cores, não somente as dores do Haiti e da África, mas também a coragem desses imigrantes que aqui vieram para trabalhar e simplesmente viver.
ARTIGO – AS MUDANÇAS DE RUMO NA VIDA DE HELDER CÂMARA
Ao longo de sua vida, Helder Camara passa por três importantes mudanças de rumo, que descrevo aqui em breves palavras. Todas têm a ver com o tema Liberdade. 1. Quando, em 1931, aos 22 anos, Helder sai do Seminário de Fortaleza, ordenado sacerdote, ele mergulha imediatamente na vida política da cidade. Segue basicamente o catolicismo autoritário da época e se inquieta com o despontar de um pensamento ‘comunista’ em determinados grupos. Não hesita em escrever, em jornais da época, que os regimes de Hitler (na Alemanha) e Mussolini (na Itália) são modelos seguros a serem seguidos, ele veste a camisa dos integralistas de Plínio Salgado e anda com dois jovens militares pelos bairros da cidade para premunir o povo contra o ‘perigo vermelho’. Mas ele não é bem sucedido em sua cidade natal e, em 1936, Helder se transfere para o Rio de Janeiro, onde inicia um lento e doloroso processo de revisão de suas posturas políticas, marcado por leituras individuais, principalmente de autores cristãos franceses, como Jacques Maritain, que lhe abrem a compreensão dos valores da democracia. Ele sente-se ‘libertado’, graças a uma incomum tenacidade intelectual e por sua humildade em se dispor a rever posicionamentos. E, com o falecimento do Cardeal Leme em 1942 e o final da segunda guerra mundial em 1945, abre-se um novo caminho em sua vida, um caminho de libertação. Eis a primeira mudança de rumo na vida de Helder. 2. Anos depois, em 1955, já como bispo auxiliar de Rio de Janeiro, o doravante chamado ‘Dom’ Helder recebe a incumbência de ajudar a organizar o 36º Congresso Eucarístico Internacional, a ser sediado na Capital do Brasil. Esse congresso vira um sucesso enorme e põe o Brasil, pela primeira vez, em cenário mundial. Dom Helder se revela excelente organizador, empolgante orador, grande comunicador. Querido e admirado, ele passa por bons momentos. Mas acontece, no final daquele enorme sucesso, que o evangelho irrompe em sua vida. Dom Helder ‘descobre’ a pobreza reinante na cidade. No conto aqui os detalhes (que são interessantes e que você encontra em meu livro Helder Câmara, quando a vida se faz Dom, capítulo 4). Helder opta pelos pobres e isso muda tudo. Estava a caminho de se tornar um eclesiástico de grande sucesso e, de repente, muda o rumo de sua vida. Ele não é mais o mesmo. Ganha em termos de liberdade, mas, de outro lado, seu superior, o Cardeal Jaime, começa a desconfiar de seu auxiliar e o governador Carlos Lacerda entra numa relação tensa com ele. Enfim, seus relacionamentos mudam sensivelmente. Aí se inicia o período mais conhecido da vida de Helder, marcado por uma desejável liberdade em tempos difíceis. Em 1946, ele tinha unificado a Ação Católica em nível nacional, em 1952 consegue o mesmo com o episcopado, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em 1955 está na origem do ‘Consejo Episcopal Latino-Americano’ (CELAM). Grandes realizações em cima do princípio democrático. Entre 1962 e 1965, ele participa do Concílio Vaticano II, no final do qual articula o Pacto das Catacumbas. Seu renome internacional cresce exponencialmente a partir da década de 1960, com suas bem-sucedidas viagens internacionais, que fazem com que seu nome seja conhecido pelo mundo católico inteiro (o que suscita sentimentos de inveja no Vaticano). Em 1964, é nomeado arcebispo de Recife, lida com sucesso com o governo militar, sofre o assassinato de um de seus padres em 1969 e em 1970 pronuncia em Paris, diante um público de dez mil pessoas, um discurso em que acusa o governo brasileiro de cumplicidade em assassinatos e torturas de oponentes. 3. Com essas realizações, Helder adquire a imagem de ‘profeta’. Mas ele não para. A maior de suas contribuições está por vir. Nos primeiros dias do ano 1971 aparecem, nos cabeçalhos das Cartas Circulares que ele costuma mandar cada dia a grupos de mulheres que, no Rio e em Recife, acompanham suas ações e reflexões, e que representam frequentemente meditações feitas ao longo de suas vigílias noturnas, os dizeres Minorias Abraâmicas (Conto detalhes no capítulo 11 do livro acima assinalado). O que significam essas palavras? Significam que Helder, doravante, navega para novos horizontes, para além do temário democrático. Ele toma tal atitude por ter experimentado dolorosamente que a democracia só funciona por meio de politicagens e arranjos, que acabam tiram muito de seus intentos originais. Pois a democracia, concretamente, é feita de arranjos e só funciona quando larga propostas capazes de desafiar efetiva e diretamente o ‘sistema’. Como dizia Churchill: a democracia é um sistema ruim, mas não existe melhor. A experiência de longos anos ensinou a Helder que pequenos grupos, livremente reunidos, são capazes de realizar o que a ‘democracia’ não consegue. Ele conhece grupos que agem em favor de despossuídos, mulheres e crianças desamparadas, indígenas e quilombolas, gente sem terra ou sem casa, etc. Aliás, essa é a ideia de Jesus, quando compara o Reino de Deus a uma semente no chão, um fermento na massa, um sal na comida, uma luz na escuridão. . Para caracterizar sua intuição, Helder cava fundo na tradição bíblica e desenterra a figura de Abraão, o homem que se desinstala para ir livremente para onde Deus o chama. Considero a proposta de formar ‘minorias abraâmicas’ a principal contribuição de Helder Câmara em debates e reflexões cristãs, hoje, vinte e cinco anos após sua morte. Helder continua presente. Termino com uma sugestão: a de ler e reler suas Cartas Circulares, pois elas inspiraram suas ações e contêm a chave de compreensão de suas iniciativas.
ARTIGO – PAPA FRANCISCO E A QUESTÃO DAS MULHERES DIACONISAS: QUANDO A IGREJA ESTARÁ PRONTA?
Estamos perplexos e decepcionados. Mais uma vez, o avanço tão esperado para a inclusão plena das mulheres na hierarquia da Igreja Católica foi interrompido. O Papa Francisco, líder admirado por suas posturas progressistas em muitas áreas, pediu que o Sínodo dos Bispos no Vaticano suspenda as discussões sobre a ordenação de mulheres ao diaconato, afirmando que a questão “não está madura” o suficiente. Mas a pergunta que muitos de nós fazemos é: quando estará? A resposta soa vaga, e o problema maior é o quanto essa indefinição enfraquece a vitalidade da Igreja no mundo contemporâneo. Não estamos mais na Idade Média, e a Igreja precisa dialogar com o século XXI, com seus desafios e avanços em igualdade de gênero. A ausência de mulheres ordenadas e a persistência do celibato obrigatório para os padres são tabus que, em vez de preservar a tradição, contribuem para a estagnação de uma instituição que clama por renovação e relevância. A exclusão das mulheres do diaconato, e por extensão de outros ministérios, perpetua uma desigualdade que não reflete o espírito do Evangelho. Estamos falando de mulheres que, ao longo dos séculos, têm sido o coração pulsante da Igreja em suas comunidades, nas paróquias, em obras missionárias e nos serviços sociais. Elas são líderes espirituais, educadoras, assistentes sociais e vozes proféticas – mas permanecem à margem quando se trata de exercer plenamente seus dons no ministério ordenado. Se a ordenação de mulheres como diáconas “não está madura” agora, resta perguntar: quando estará? Estaremos condenados a esperar mais uma geração? E se assim for, quantos mais se afastarão da Igreja, desiludidos com sua incapacidade de evoluir? O risco de perda de vitalidade é real e já está em curso. O mesmo pode ser dito da questão do celibato dos padres. A realidade é que muitos homens que se sentem chamados ao sacerdócio são desencorajados por uma regra que, em muitos casos, torna-se um fardo desnecessário. Será que o celibato, como uma exigência absoluta, ainda serve aos propósitos da Igreja ou se tornou um empecilho à sua renovação? Papa Francisco, conhecido por sua humildade e seu desejo de uma Igreja “em saída”, uma Igreja que acolha os marginalizados, precisa ir além das palavras quando se trata de reformas estruturais. A Igreja deve refletir a realidade de seu povo e se abrir à possibilidade de que a liderança feminina ordenada possa revitalizar uma instituição que perde fiéis ano após ano. Portanto, ao barrar a discussão sobre mulheres diaconisas, a pergunta que surge é: o que mais precisa ser discutido? O que resta para amadurecer quando tantos já reconhecem o papel vital das mulheres na Igreja? Não se trata apenas de um debate teológico ou de preservar tradições que muitas vezes parecem mais ligadas ao controle do que à fé. Trata-se de justiça, equidade e reconhecimento do valor pleno de todos os membros da Igreja. A Igreja é composta de homens e mulheres, e ambos devem ser reconhecidos igualmente em todos os seus papéis. Chegará o dia em que essa verdade será inevitável. Mas, como muitos já estão se perguntando, quando isso acontecerá? A história já mostrou que esperar gerações para mudanças que já são óbvias aos olhos de muitos é um caminho perigoso. A questão não é se estamos prontos para discutir a ordenação de mulheres e a abolição do celibato obrigatório – mas se a Igreja está pronta para sobreviver às suas próprias resistências.
ARTIGO – GUSTAVO GUTIÉRREZ – 1928-2024
Gustavo Gutiérrez sacode o jugo da ‘leitura grega’, que até hoje pesa sobre o cristianismo ocidental, e vai resoluto a Jesus de Nazaré que, após deixar João Batista penitencial, volta à sua terra natal e se compromete a fundo com o povo pobre. O projeto de Jesus tem grande capacidade de congregar pessoas, pois atinge o povo que se encontra nos bairros populares das cidades, nos sítios onde vivem os camponeses, no cais do porto, no mercado, nas ruas e praças, mas principalmente no interior dos pátios habitacionais, onde diversas famílias moram juntas atrás de um mesmo portão de entrada. Na hora da comida em comum, as pessoas atualizam seus conhecimentos, ouvem falar de outros grupos, comentam os problemas, comem e bebem juntos, cantam hinos, ritualizam um encontro de fraternidade. É a comensalidade, a eucaristia: Damos graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos e ainda sobra para uma eventual visita. Aqui não há famintos. Nossa solidariedade elimina a fome. Em geral, não se alcança essa comensalidade, essa eucaristia, tal qual aparece, de modo um tanto eufórico, nos Atos dos Apóstolos. O resultado permanece bem mais modesto. Mas existem, por exemplo, indícios de que as comunidades ajudaram a pagar os impostos, na época um peso enorme sobre os ombros das pessoas. Desse modo, a ‘comensalidade’ pode ter uma dimensão financeira: colaboração no pagamento de dívidas. Para muitos, a comensalidade (e eventualmente a ‘comunhão de bens’) é exigente demais. Abordado por um jovem rico que quer segui-lo na missão, Jesus diz: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e os distribui entre os pobres: terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me (Mt 19, 21; Mc 10, 21). Ao ouvir essas palavras, o jovem rico vai embora. E Jesus pondera: o projeto é quase impossível a ser posto em prática. Falta quem queira colaborar. Mesmo assim, para Deus tudo é possível (Mt 19, 26; Mc 10, 27). É dentro desse contexto que aparece o famoso Dito de Jesus: É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. Gustavo não vai direto à comensalidade, pois o mundo atual tem uma complexidade própria e ela precisa ser destrinchada. Mas ele pode ser chamado de comunista, no sentido próprio do termo. Sei que, hoje, o termo costuma remeter ao ‘Manifesto Comunista’, publicado por Marx e Engels em 1848. Mas vale recordar uma lição básica dos linguistas: palavras atuam em diversos contextos e, nisso, assumem diversos significados. ‘Comunismo’, ‘comum’, ‘comunhão’, ‘comunidade’, ‘comungar’, ‘comunicação’, ‘comunicar’, ‘comunicativo’, etc., são termos impregnados de espírito cristão. O comunismo ‘bem entendido’ pertence, decerto, ao âmago do cristianismo, embora tenhamos de reconhecer que, ao longo da história, a experiência de uma convivência ‘comensal’ ou ‘comunista’ apenas vingou em ambientes restritos e de modo limitado. Na primeira frase deste breve texto, falei em ‘leitura grega’ do evangelho. O que se entende por essa expressão? Trata-se de uma reinterpretação do cristianismo a partir de parâmetros neo-platônicos. Ela passa a influenciar o pensar e o agir cristão a partir do século III e resulta numa espiritualização da vida cristã e num esquecimento do teor social da mensagem de Jesus. O tema é importante, pois a ‘leitura grega’ incide diretamente na fé até hoje praticada pelo povo cristão, mais que as questões organizatórias, devedoras de situações concretas e, portanto, de caráter passageiro, que costumam ganhar tanto espaço nas costumeiras apresentações do cristianismo. As questões organizatórias não devem ser dramatizadas. Nem a ruptura entre a igreja ocidental, centralizada em Roma, e a ortodoxia grega, centrada em Constantinopla, no decorrer do século XI, nem a quebra de braços entre catolicismo e luteranismo, no século XVI, nem a subida do pentecostalismo em nossos dias. Pois essas movimentações são todas decorrentes de situações e geografias particulares. Muita coisa pode mudar sem que isso afete, de modo decisivo, a vivência do evangelho por parte dos cristãos ‘anônimos’, que professam uma religião secularmente vivida sem registro nem fronteira nem nome, uma religião universal que as instituições teimam em não reconhecer. Milhões e milhões de pessoas vivem sua religião dentro de quadros familiares, em todos os quadrantes do mundo, dentro ou fora das mais variadas institucionalizações. Essas populações costumam ser influenciadas pela ‘leitura grega’, embora, em geral, desconheçam a expressão. Interessante observar que, indiretamente, a questão da ‘leitura grega’ foi abordada, no Concílio Vaticano II, por ocasião de discussões em torno do documento conciliar Gaudium et Spes. Nessas discussões, é possível detectar nitidamente uma diferença de posicionamentos entre ‘neo-agostinianos (espiritualistas), como Daniélou, de Lubac, Ratzinger e von Balthasar, que basicamente (e sem o mencionar) se apoiam na ‘leitura grega’, e, do outro lado, ‘neo-tomistas’ (‘realistas’), como Chenu, Congar, Rahner, Lohergan e Schilllebeeckx, que se distanciam da ‘leitura grega’ (Massimo Faggioli, Leituras e Releituras do Vaticano II em: Dicionário do Concílio Vaticano II, Décio e Sanchez, Paulus, São Paulo, pp. 536-539). Mas essa diferenciação não impediu que uma ‘sombra grega’ continuasse pairando sobre a teologia praticada na Europa, até hoje. É dentro desse quadro que se perfila a figura de Gustavo Gutiérrez que, sem participar do Concílio Vaticano II, respira um ar totalmente diferente em sua Teología de la Liberación (Editora CEP, Lima, Peru, 1972). Só encontrei, no referido livro, uma nota de pé de página em que Gutiérrez cita Agostinho, paraninfo do cristianismo espiritualizado, para discretamente tomar distância diante de seus posicionamentos (nota na p. 59) e, com isso, da ‘leitura grega’ em geral. Podemos dizer que, com Gustavo Gutiérrez, a teologia dos países emergentes diz ‘adeus’ à teologia baseada em pressupostos longamente cultivados na Europa e na América do Norte.
ARTIGO – A COMPLEXIDADE DO CRISTIANISMO
Passando um olhar panorâmico sobre a história do cristianismo, descobrimos que dois fatores, vindos de fora, o complexificam e dificultam descobrir nele a herança de Jesus de modo claro e inequívoco: a chamada ‘leitura grega’, que desde o século III dC influencia o movimento de Jesus, e o ‘fator iraniano’ (ou ‘zoroastra’), que, desde o século VI aC influencia o judaísmo e, indiretamente, o cristianismo, por meio da própria cosmovisão de Jesus. Vale a pena se aprofundar, mesmo superficialmente (como aqui) no tema da complexidade do cristianismo, pois ela dificulta e, em certos casos, impede uma visão clara das proposições de Jesus. A leitura grega. As sensacionais conquistas militares de Alexandre o Grande, da Macedônia, no Médio Oriente, no século III aC, fazem com que a cultura helênica se espalhe por grandes extensões de terras e culturas muito diversas e atinge cidades importantes da época, como Antioquia na Síria, Alexandria no Egito e mesmo a longínqua Roma, que desponta como centro virtual de um grande Império. Um sinal muito conhecido dessa avassaladora influência está no fato que os evangelhos, embora descrevam um movimento surgido numa cultura semita, estão redigidos em grego. É nesse contexto que o neo-platonismo, uma das mais significantes ‘ondas’ desse tsunami cultural, inunda o jovem movimento cristão, como descrevo em rápidas pinceladas. Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino Plotino de Licópolis (203-269) aparece em Roma, na época centro de um Império em rápido crescimento, e inaugura ali uma escola de filosofia neo-platônica para jovens da elite intelectual romana, ele alcança em poucos anos um renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da intelligentia do Império Romano, de modo convincente, um modo grego de se entender o homem e a história, especificamente uma interpretação platônica do ser humano e do sentido de sua existência. Essa filosofia, na realidade uma arte de viver, não deixa de penetrar no cristianismo letrado e intelectualizado da época, notadamente por meio dos chamados ‘Padres da Igreja’, que são os intelectuais cristãos do primeiro milênio do cristianismo. Através de seus numerosos escritos, os Padres da Igreja tentam fazer uma síntese entre o pensamento platônico e a visão evangélica do mundo. Com eles, o platonismo se ‘cristianiza’, ao mesmo tempo em que o cristianismo se ‘platoniza’. As ideias-mestres do platonismo são conhecidas: abaixo do mundo divino, não atingido pelo mal, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas. O corpo humano, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: pode deixar-se seduzir pelas formas vãs da matéria, ou deixar-se fascinar pela luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas é capaz de tornar-se trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, ou melhor, da purificação do amor. O homem precisa partir do mundo material e se encaminhar para o que é espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria. A maioria dos Padres da Igreja julga que o encontro entre neo-platonismo e cristianismo leva a um enriquecimento da mensagem de Jesus. Só alguns deles, como Basílio de Cesareia (330-379), percebem que, no processo da espiritualização, a perspectiva social, tão presente nos evangelhos, corre o perigo de desvanecer e que, por conseguinte, não se pode falar em ‘síntese’ entre cristianismo e neo-platonismo, já que os elementos da ‘fusão’ são heterogêneos. Seria antes um ‘amálgama’, um hibridismo, uma junção de elementos heterogêneos. Mas essa crítica não prevalece. Vence a ideia que o drama da vida cristã se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo têm de ser controlados e possivelmente eliminados,enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a êxtase, a contemplação de Deus. Pois, impregnado de um senso religioso agudo e místico, o neoplatonismo faz com que muitos confundam as coisas e não consigam mais distinguir com clareza a diferença entre ensinamentos de Jesus e ensinamentos de Platão. Há de se ressaltar aqui que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível, e nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos. Esse é o caso de Agostinho de Hipona (354-430). Ele faz parte de um grupo de amigos não cristãos, da África do Norte, que viajam de Cartago a Roma e depois a Milão, na companhia de Mônica, mãe de Agostinho, que é cristã. O grupo procura emprego na Itália, aos poucos renuncia a uma vida de prazeres e passa a procurar a sabedoria. É um grupo seleto, que cultiva altos ideais de vida, tem grandes intuições, formula excelentes orientações morais e segue um elevado modo de viver. Depois de tentar diversas filosofias de vida, o grupo entra em contato com a espiritualidade neoplatônica e, quase ao mesmo tempo, ao chegar a Milão, se impressiona com Ambrósio, bispo cristão, grande orador e figura de elevada estima moral. O grupo de amigos, então, se estabelece em uma propriedade rural num vilarejo nos arredores da cidade de Milão, chamado Cassiciacum. Ali, todos leem e trocam opiniões. São idealistas em busca de uma alma espiritual, que já deixaram para trás os prazeres da carne pecaminosa. A situação dos escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões (7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal, faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, mas dificulta o senso evangélico. Em suas Confissões, Agostinho afirma
ARTIGO – O ESPELHO COMO ELEMENTO PARA EXPLICAR A RELAÇÃO BEBÊ E MÃE
O primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe: o seu olhar, sorriso, expressões faciais, tom de voz… Mais adiante, ele completa com outra frase que traduz o possível, protopensamento da criança: ‘olho e sou visto, logo, existo’. Sem esse olhar reconhecedor da mãe, a criança cai num estado de desamparo, sendo que pior do que o espelho de uma mãe que distorce a imagem do filho quando ela responde e reflete mal as necessidades dele, é quando essa mãe comporta-se como um espelho embaçado, opaco, que nada reflete (Zimerman, p. 112). A convivência entre mãe e filho expressa no amor e cuidado, baseia-se em uma unidade inconsciente de intima e mútua relação. Os primeiros momentos de existência são marcantes na formação da personalidade. Por outro lado, o que acontece de ruim pode ser traumático, vejamos o que acontece com um bebê quando ainda nos primeiros meses de existência sofre com o abandono materno. Como diz Melanie Klein: Ao mesmo tempo, a frustração, o mal-estar e a dor, percebidos, segundo sugeri, como perseguição, entram também em seus sentimentos a respeito da mãe, por que os primeiros meses ela representa para a criança o todo do mundo externo; desse modo, tanto o que é bom como o que é mau chegam-lhe à mente provindo da mãe, e isto leva a uma atitude dúplice em relação a ela mesmo sob as melhores condições possíveis (KLEIN, Malainie. O sentimento de solidão, p. 4). Uma criança possui, embora de maneira inconsciente a capacidade de amar e odiar. Os impulsos destrutivos e seus concomitantes – tais como o ressentimento por frustração, o ódio que ela desperta, a incapacidade para se reconciliar, e a inveja do objeto todo poderoso, a mãe, de quem dependem sua vida e seu bem-estar – essas várias emoções despertam ansiedade persecutória na criancinha (KLEIN, p.4). Para a concepção freudiana existem dois tipos principais de angustia, a mais primitiva, conhecida como automática e a de sinal. Ambos os tipos de angustia, a automática e o sinal, são tidos como derivados do ‘desamparo mental da criança pequena, que equivale ao desamparo biológico’. A angústia automática ou primitiva denota uma espécie de ração espontânea ligada a um medo de destruição completa resultante da sensação de opressão total; não implica a capacidade de julgar ou perceber a origem dos estímulos irresistíveis e diferencia-se, assim, do sinal de angústia. A função do sinal de ‘angústia que a ansiedade primaria (automática) nunca seja sentida, ao permitir que o ego tome precauções de defesa’ (grifo meu). Portanto, estamos falando de uma situação em que aprendemos a distinguir os indícios ou sinais de aviso assimilados em experiências anteriores ruins, desagradáveis ou traumáticas, a fim de evita-los (EMANUEL, Ricky. Conceito de psicanálise – angustia, p. 16). Emanuel fundamenta a angustia como uma dor psíquica. Essa dor, embora cause profundo sentimento, é necessária para o desenvolvimento da criança. Tanto a demasia ou falta da dor impedem o desenvolvimento. O fundamental é que não falte a figura da mãe que o compreenda e esteja sintonizada com suas emoções. Os gritos do bebê atraindo e sendo acalentado pela mãe não são expressões consciente, mas são ações de conflito. Eles se traduzem em pedido por conforto levando a assimilar que a mãe representa segurança e que está sendo compreendida. Isso contribui para descoberta dos sentimentos e de seus significados. Quando a criança não encontra a mãe compreensiva em que projeta suas emoções, ocorre que esforçará ainda mais para livrar-se dos sentimentos ruim, piorados por não ser compreendida e atendida. Esta criança terá dificuldade em internalizar sobre seu eu. Dessa forma terá dificuldade para desenvolver um método de lidar com as emoções. Isso significa que procurará adicionar os mecanismos de defesas com mais intensidade. Lidar com o ser humano é um dos desafios mais incrível e também uma das experiências mais fantástica. Cada pessoa carrega uma capacidade de conhecimento e transformação inesgotável. Assim, enquanto mais conhecemos uma pessoa, mais descobrimos que precisamos conhece-la.