ARTIGO – DA ESTUPIDEZ COMO PROGRAMA EDUCATIVO DE TEMPO INTEGRAL

(notas filosóficas sobre a magna didática do capital e a derrota do pensamento) – José Alcimar de Oliveira* De um lado, os inimigos de sempre, alojados em instâncias do Estado e das redes antissociais, atacam de frente a Universidade e a Escola, porque sua mera existência é uma ameaça ao ressentimento e ao ódio de que se locupletam em estado de parasitismo e inanição intelectual. Eles, sim, os grandes ideólogos do nada, tão ruidosos em sua vacuidade de mente e alma. Simples pregoeiros do mercado da morte (Francisco Foot Hardman) 01. Em acréscimo à celebre observação de Marx sobre Hegel, de que é como farsa que fatos e grandes personagens da história costumam se repetir, permito-me dizer que é sob forma de escárnio que o repetível pode ocorrer pela terceira e muitas vezes mais. Afinal, mais do que o bom senso e a crença no poder emancipatório do iluminismo, a razão no século XXI, presidida pelo capitalismo em sua atual fase (derradeira? muitoprovavelmente) de colapso ambiental e barbárie social, opera por cinismo e estupidez. A estupidez, aliada ao medo, ao ódio e à ignorância, converteram-se em instrumentos de dominação e armas de destruição sob o férreo controle da necrocracia capitalista. 02. Há método e racionalidade na estupidez como cinismo e escárnio. E apostar na estupidez é hoje um programa ideológico, que requer e mobiliza elevado aporte técnico e científico, e sua execução não está nas mãos de curiosos ou amadores. Diferentemente da sociedade disciplinar, sob o capitalismo digital, do cada um por si e ninguém por todos, a repressão, mesmo a mais heteronômica, é assumida como cultivo reificado de si mesmo. É o reino da meritocracia, do indivíduo empreendedor de si mesmo, como forma de autonomia reversa. E nada é barato. Para pensar com o educador brasileiro Anísio Teixeira, assim como não é possível uma guerra barata, menos ainda é barata a manutenção de um projeto racional de difusão da estupidez. Se a ditadura mata, mata muito mais a ditadura da estupidez. 03. A grande diferença, mais perversa e cruel, é que hoje a extrema direita (contida até então pela direita, dita democrática ou menos incivilizada) desinibiu-se de vez, converteu a estupidez em arma de guerra contra o conhecimento e o bom senso, passou a engajar corações e mentes de forma miliciana e a fidelizar seguidores com a força de uma seita religiosa. O regime da razão iluminista cedeu lugar ao poder da crença. O que em tese diferencia a crença do procedimento da filosofia e da ciência é que nessas o sujeito elabora um processo de apropriação do objeto, enquanto naquela, é o objeto (da crença) que se apossa do sujeito. Trata-se de um sujeito possuído. O que pode o bom senso diante da força e do êxito do ridículo quando o conhecimento se torna o alvo preferido da ridicularização? 04. O pensamento, a consciência ou espírito não conhecem vácuo ou vazio cognitivo. Os ideólogos da extrema direita sabem como tirar proveito dessa condição humana, mobilizando preconceito e mentira de forma programática e monolítica, o que deixa a esquerda, por ser muito analítica (e pouco dialética) sempre acuada, imobilizada, sem condições de conter ou neutralizar o poder maquínico da estupidez. Na guerra contra a estupidez já não basta ao materialismo ser histórico e dialético, deve ser bélico e armar a classe trabalhadora com as armas da crítica. Não confundir com a crítica das armas promovida pelo sistema do capital. O belicismo dialético se faz com o método da organização, da consciência e da luta de classes. 05. Armada com eficientes dispositivos digitais, a estupidez cínica da grande burguesia produz e fideliza verdadeiras milícias de estúpidos digitais e utilmente inocentes. Meu santo de profana devoção, Walter Benjamin, haverá de concordar comigo que a barbárie da civilização industrial se torna primitiva quando comparada à produzida pelo capitalismo digital. Sem as armas teóricas do belicismo dialético o chamado pobre de direita nunca se reconhecerá como pobre de direitos, nem fará a transição epistêmica da alienação cognitiva para a consciência de classe. 06. O que pode a razão analítica ou dialética, conceitual, diante da ignorância e da estupidez promovidas pela magna didática capitalista, a verdadeira escola de tempo integral, sempre online, maximamente inclusiva e reconhecidamente exitosa em seu projeto de manter sob o regime da alienação o trabalho e a consciência da classe trabalhadora? Se para o sábio materialismo de Epicuro a filosofia é uma espécie de saúde da alma, para o materialismo histórico e dialético (por que não bélico?) a filosofia deve ser antes de tudo luta de classes, compreendida essa como fato social, como categoria epistêmica de objetivação social, como chave de leitura da história e, não menos importante, como estratégia de organização política da classe trabalhadora. 07. Estamos diante da derrota da educação, do pensamento, da formação. Falar em pensamento dialético quando pontificam a ignorância e a estupidez pode configurar crime cognitivo. Em reversa referência a Wittgenstein, nesses tempos regressivos, de ódio ao conhecimento, de afronta à cultura, de falsificação da história, de destruição da memória, os limites da sensação passam a demarcar os limites da verdade. É a epiderme que define, por toques digitais, o trabalho de cognição. Há cerca de três décadas, antes do atual poder da estupidez digital, Darcy Ribeiro afirmava que o fracasso da educação brasileira produzido por nossa elite (do atraso, diga-se) já se afigurava como um projetocom método, hoje potencializado em intensidade e extensão pela extrema direita, no Brasil e no mundo. A tragédia política do processo educacional brasileiro, sempre refratário à práxis, é também não reconhecer as consequências políticas e sociais dessa tragédia. Há mais de dois mil anos o profeta Oseias denunciava: meu povo perece por falta de conhecimento. *José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, onde cursou e concluiu o mestrado e doutorado. É teólogo heterodoxo e sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA, Seção Sindical, e filho orgulhoso do cruzamento dos rios Solimões (Manacapuru – AM) e Jaguaribe (Jaguaruana – CE). Em Manaus,

ARTIGO – O QUE PODE O BOM SENSO DIANTE DA ESTUPIDEZ GLOBALIZADA?

Por favor, alguém que me faça estas contas, dêem-me um número que sirva para medir, só aproximadamente, bem o sei, a estupidez e a maldade humana (José Saramago). 01. Em rápida visita ao Brasil no dia 16 de março de 2025, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, instigado por Goya a verificar que o “sono da razão” também se veste de verde e amarelo e 388 anos depois de ter publicado o seu Discurso do método, Descartes reconsiderou as palavras de abertura de seu clássico escrito e solicitou aos impressores considerar a errata: onde se lê “o bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada”, leia-se: “a estupidez, e não o bom senso, é a coisa do mundo melhor partilhada”. 02. O que pode o bom senso diante da velocidade da estupidez, a cada dia mais globalizada e a pôr ao rés do chão, pisoteado, o alegado poder da filosofia, conforme o dito heideggeriano, de estabelecer-se como “guarda da ratio”? O século XXI, malmente iniciado, já deu sobejas mostras de que a humanidade já caminha sob o guia automático da estupidez e, em ritmo de cegueira, segue, como gado para o matadouro, rumo ao abismo iluminado pelas luzes suicidáriasdo capital. 03. Não há redenção à vista. José Saramago, uma das mais iluminadas mentes literárias que passou entre nós, ateu humanista, para quem “ser comunista ou ser socialista é um estado de espírito”, escreve sem meias medidas ou concessão à felicidade burguesa: “Qualquer observador imparcial reconheceria que nenhum deus de outra galáxia teria feito (um mundo) melhor. Porém, se a olharmos de perto, a humanidade (tu, ele, nós, vós, eles, eu) é, com perdão da grosseira palavra, uma merda”. 04. Em 2011, Oscar Niemeyer, aos 103 anos de idade, com uma lucidez a mais acutilante, e igual estado comunista de espírito do mestre Saramago, desabafou numa entrevista: “Eu acho a vida uma merda, apesar de seus encantos. Já nascemos condenados a desaparecer”. Tivesse o Criador levado em conta o testemunho humano, honesto e ateu de seus filhos Niemeyer e Saramago, expulsos do Paraíso, mais do que arrepender-se de ter criado a humanidade, teriaabortado no nascedouro o Projeto Arca de Noé. 05. Sem redenção à vista, como apostar na Parusia? Conhecendo como ninguém a condição humana, sabendo que não há limite para a estupidez humana, vendo por dentro o mundo hipócrita dos fariseus de seu tempo e tanto mais a violência estúpida da extrema direita mundial e brasileira, porque, como relata o evangelista João, não necessitava recorrer aos esquemas cristalizados pela religião para saber “o que havia no coração do homem”, que razões teria Jesus de Nazaré para voltar ao inferno de 2025? 06. A humanidade seria bem outra se o ser humano tivesse para o conhecimento e a sabedoria a mesma disponibilidade que devota à estupidez e à ignorância. Como soam atuais as palavras dos Provérbios: “até quando, óinsensatos, amareis a tolice, e os tolos odiarão a sabedoria?” Sob a globalizada gramática do capital, a envenenar corações e mentes com “a peste emocional da humanidade” (Reich) e uma subjetividade submetida à heteronomia cognitiva, o que resta ao ser humano senão afundar na barbárie? 07. A gravidade maior da estupidez promovida pela voracidade do capital reside, hoje, no primeiro quartel do século XXI, no patente e irreversível esgotamento da natureza diante do padrão de produção e consumo insustentável e requerido pela necrocracia do sistema do capital, com declarado prazo de validade, e jamais admitido pela burguesia suicidária. Haverá freio para a lógica do lucro acima da vida, para o colapso ambiental e para a barbárie social, ecocida, promovida pela burguesia? José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde concluiu e defendeu seu mestrado e doutorado. É também teólogo heterodoxo e sem cátedra, ocupa a segunda vice-presidência da Associação dos Docentes da UFAM (ADUA – Seção Sindical) e é filho orgulhoso do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus – AM, março de 2025.

ARTIGO – A ESTUPIDEZ DIGITAL E O FIM DA RAZÃO DIALÉTICA

A Primeira Lei Fundamental da Estupidez Humana declara sem ambiguidade que “Todo mundo subestima, sempre, o número de indivíduos estúpidos em circulação” (Carlo M. Cipolla). 01. A epígrafe deste breve artigo foi extraída do livro As leis fundamentais da estupidez humana, escrito pelo historiador da economia italiano Carlo M. Cipolla (1922-2000) e sobre quem um conhecido físico, Carlo Rovelli, também italiano, escreveu: “o humor sutil de Cipolla fez deste livro um clássico na Itália. Hoje, com as tendências mundiais atuais, lê-se como humor negro” (sic). Quanto a mim, a verdadeira cor do humor reside em seu poder filosófico, como escreve Nietzsche, de subtrair à estupidez sua “boa consciência”, inclusive a de extração religiosa, como a da piedosa velhinha que trouxe lenha para alimentar a santa fogueira a que foi condenado Jan Huss que, impotente, exclamou: sancta simplicitas! 02. O senso comum no qual estamos todos enraizados é o espaço da disponibilidade para a estupidez humana. Não dispomos de mecanismos de objetivação científica, menos ainda de fundamentação filosófica, para concluir sobre o aumento ou decréscimo do coeficiente da estupidez humana. Sim, humana, porque não há registros conhecidos de estupidez entre os mamíferos não humanos. Contrariando o alegado e tido por bem partilhado bom senso cartesiano, a estupidez humana nunca perdeu força ao longo da história e tem razões que atravessam credos, raças e classes. Como escreve Cipolla, “a possibilidade de determinada pessoa ser estúpida independe de qualquer outra característica dessa pessoa”. 03. Nos dias que correm a sociedade digital conferiu à figura estúpida um poder sem par na história humana. Anticartesiana, e mais ainda antidialética, a estupidez digital como um tipo de infopolvo deita globalmente seus tentáculos, flexíveis, ventosos, sobre corações e mentes, e num alcance e velocidade como jamais imaginou a razão humana. Para aqui recorrer à linguagem paulina, a estupidez digital é hoje a materialização consumada do “príncipe do poder do ar” descrito em Ef 2,2. Segundo Cipolla, “a pergunta que pessoas sensatas fazem com frequência é como e por que pessoas estúpidas conseguem alcançar posições de poder e relevância”. 04. No parorama filosófico atual Alain Badiou, marxista, seria o pensador mais indicado para retomar o tema paulino do “príncipe do poder do ar” associado à universalização da estupidez digital. Ele, que se reconhece como “hereditariamente ateu”, desde os “quatro avós preceptores”, “educado no desejo de esmagar a infâmia clerical”, descobriu mais tarde nas epístolas paulinas “textos curiosos, cuja poética impressiona”. Ao atribuir a São Paulo a fundação do universalismo, Badiou arrisca a comparação que faz de Paulo “um Lênin, do qual o Cristo teria sido o Marx equívoco”. Se esse desafio chegar às mãos e mentes filosóficas de Badiou, poderia ser o tema de um seu possível (e desejável) Terceiro manifesto pela filosofia. 05. Comum aos mamíferos humanos, o senso comum, que abriga o universo da ignorância, e pior, da estupidez, é aquele constructo que na linguagem do materialismo histórico e dialético Marx denomina de nosso “ser genérico”. Na ausência de mediações críticas, que possibilitam a transição do senso comum (ser genérico) ao bom senso (consciência crítica) o ser humano é facilmente, sem resistência cognitiva, capturado pelo estúpido pensamento de rebanho. Ou, para trocar a questão em miúdos, é encurralado pela gadificação cognitiva. A férrea lógica da estupidez costuma afrontar e desestabilizar todos os princípios da razão. 06. É exatamente nessa terra de ninguém e sempre disponível que a extrema direita faz com êxito a letal semeadura da ignorância e da estupidez. O perigo maior nesse processo é subestimar o poder da ignorância e da estupidez e o quanto esse poder ganha em intensidade e extensão ao se apropriar dos dispositivos digitais. O velho Francis Bacon ao afirmar, em seu otimismo epistêmico, que “conhecimento é poder” não levou em conta o poder da ignorância e da estupidez socialmente produzidas. A razão humana, por maior que seja sua capacidade de prever e proteger-se do erro, muito pouco pode diante da ação imprevisível de um indivíduo estúpido. 07. Falar hoje em “mal-estar na cultura” soa eufemístico. Segundo Byung-Chul Han, “Freud poderia ter afirmado então que o capitalismo representa a forma econômica na qual o ser humano, na condição de besta selvagem, pode viver e aproveitar melhor sua agressividade”. Para aqui recorrer ao irredento Wilhelm Reich, o mundo capitalista da estupidez digital, inseparável da barbárie social e da catástrofe ambiental, é hoje a verdadeira “peste emocional da humanidade”. Seu livro Escuta, Zé Ninguém merece ser lido e discutido em grupo. É uma leitura a mais atual nesses tempos de regressão cognitiva potencializada pelos dispositivos digitais.   *José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde concluiu e defendeu seu mestrado e doutorado. É também teólogo heterodoxo e sem cátedra, ocupa a segunda vice-presidência da Associação dos Docentes da UFAM (ADUA – Seção Sindical) e é filho orgulhoso do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus – AM, março de 2025.

ARTIGO – SETE BREVES TESES SOBRE VERDADE E MENTIRA

O caminho da verdade é lento, mas sempre termina por prevalecer. Ainda que rápida, a mentira tem pernas curtas e pouco fôlego. É muito cedo para concluir que a extrema direita voltará ao poder em 2026. O brilho do fogo das aparências é enganador, efêmero, como a palha levada pelo vento. Os artifícios da extrema direita, de falsificação da história e de destruição da memória, não podem resistir à força ontológica da verdade. Como escreve Bonhoeffer numa de suas cartas: reclamar o futuro para si, jamais entregá-lo ao inimigo.   Enquanto houver a resistência dos justos, haverá esperança, porque o futuro pertence a quem não se demite do presente.   *José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento das águas dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Janeiro do ano de 2025.

ARTIGO – BREVES TESES FILOSÓFICAS SOBRE CRENÇA E CIÊNCIA

Segundo Roger Bacon, teólogo e filósofo franciscano do Medievo, a ignorância “é um animal particularmente feroz, que devora e destrói todas as razões” 01. Mais do que do denominado pobre de direita é preciso falar do pobre de direitos, daquele (endinheirado ou não) cuja consciência é prisioneira das crenças. Quem só crê e de nada duvida tende a criminalizar a Filosofia. Segundo o filósofo Cassirer, o verdadeiro inimigo da fé é a superstição, não a dúvida. 02. As crenças, tão bem manipuladas pela extrema direita e disseminadas nos esgotos das redes ditas sociais, também funcionam como forma de prisão cognitiva. Nunca se deve menosprezar o poder da estupidez. As sombras da ignorância são mais velozes do que podem imaginar as luzes do iluminismo. Desistir de suas luzes? Jamais. 03. Estudante de Filosofia e Teologia, cedo compreendi a diferença entre o regime da crença (tendente a dispensar mediações) e o regime da Ciência (que implica o filtro filosófico da crítica). Para Anselmo de Aosta, mais teólogo que filósofo, e célebre pelo esforço de provar a existência de Deus pela razão, a teologia era uma forma de “inteligência da fé”. 04. Sob o regime da crença o sujeito torna-se possuído pelo objeto que domina sua cognição. É um ser possuído. Kant chamaria a isso de consciência heteronomizada. Uma consciência sem a posse de si, caracterizada por Adorno como um tipo de sujeito sujeitado, a dedicar-se “à conservação de si mesmo sem si mesmo”. 05. No evangelho mesmo há muitos casos de mentes possuídas que foram libertadas por Jesus de Nazaré, um filósofo sem cátedra (conforme Morin) e desvinculado da Atenas socrática. Na Ciência, dá-se o contrário da crença: é o sujeito que se apropria do objeto. É o que, na epistemologia, denominamos de (penoso) processo de objetivação da realidade. 06. A extrema direita é hábil em manipular o sentimento e as categorias do mundo religioso para fanatizar consciências incautas. Ainda por volta de 17 anos, numa carta dirigida a seu pai, o jovem Marx admitia ser impossível penetrar no mundo do conhecimento e da Ciência sem a contribuição da Filosofia, que é mais porto de saída do que de chegada. 07. O poder tirânico, ontem e hoje, odeia a crítica, afronta à cultura, destrói a memória, falsifica a história, despreza a arte e tende a se refugiar no patriotismo que, segundo Samuel Johnson “é o último refúgio do canalha”. No Brasil é o primeiro, completou Millôr Fernandes, um dos meus santos de profana devoção. Longa e fecunda vida à Filosofia!   *José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento das águas dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Janeiro do ano de 2025.

ARTIGO – BREVES TESES FILOSÓFICAS SOBRE CRENÇA E CIÊNCIA

Segundo Roger Bacon, teólogo e filósofo franciscano do Medievo, a ignorância “é um animal particularmente feroz, que devora e destrói todas as razões” 01. Mais do que do denominado pobre de direita é preciso falar do pobre de direitos, daquele (endinheirado ou não) cuja consciência é prisioneira das crenças. Quem só crê e de nada duvida tende a criminalizar a Filosofia. Segundo o filósofo Cassirer, o verdadeiro inimigo da fé é a superstição, não a dúvida. 02. As crenças, tão bem manipuladas pela extrema direita e disseminadas nos esgotos das redes ditas sociais, também funcionam como forma de prisão cognitiva. Nunca se deve menosprezar o poder da estupidez. As sombras da ignorância são mais velozes do que podem imaginar as luzes do iluminismo. Desistir de suas luzes? Jamais. 03. Estudante de Filosofia e Teologia, cedo compreendi a diferença entre o regime da crença (tendente a dispensar mediações) e o regime da Ciência (que implica o filtro filosófico da crítica). Para Anselmo de Aosta, mais teólogo que filósofo, e célebre pelo esforço de provar a existência de Deus pela razão, a teologia era uma forma de “inteligência da fé”. 04. Sob o regime da crença o sujeito torna-se possuído pelo objeto que domina sua cognição. É um ser possuído. Kant chamaria a isso de consciência heteronomizada. Uma consciência sem a posse de si, caracterizada por Adorno como um tipo de sujeito sujeitado, a dedicar-se “à conservação de si mesmo sem si mesmo”. 05. No evangelho mesmo há muitos casos de mentes possuídas que foram libertadas por Jesus de Nazaré, um filósofo sem cátedra (conforme Morin) e desvinculado da Atenas socrática. Na Ciência, dá-se o contrário da crença: é o sujeito que se apropria do objeto. É o que, na epistemologia, denominamos de (penoso) processo de objetivação da realidade. 06. A extrema direita é hábil em manipular o sentimento e as categorias do mundo religioso para fanatizar consciências incautas. Ainda por volta de 17 anos, numa carta dirigida a seu pai, o jovem Marx admitia ser impossível penetrar no mundo do conhecimento e da Ciência sem a contribuição da Filosofia, que é mais porto de saída do que de chegada. 07. O poder tirânico, ontem e hoje, odeia a crítica, afronta à cultura, destrói a memória, falsifica a história, despreza a arte e tende a se refugiar no patriotismo que, segundo Samuel Johnson “é o último refúgio do canalha”. No Brasil é o primeiro, completou Millôr Fernandes, um dos meus santos de profana devoção. Longa e fecunda vida à Filosofia!  

ARTIGO – NATAL É AFIRMAÇÃO DA VIDA CONTRA AS FORÇAS DA MORTE

Como escreve São Leão Magno, não pode haver tristeza quando nasce a vida inocente. Que a celebração memorial do nascimento de Jesus de Nazaré, que possivelmente nasceu no pequeno e mal afamado povoado de Nazaré, e não em Belém, fortaleça em cada um de nós os laços de solidariedade, de bons afetos, de cuidado e de compaixão diante do sofrimento humano. Ele veio para que todas e todos, sem nenhum preconceito e discriminação, tenham direito a viver com dignidade. De Jesus de Nazaré temos no Evangelho o registro de suas palavras: “Em verdade vos digo: todo o bem que fizestes a um desses meus irmãos pequeninos e em sofrimento, foi a mim mesmo que o fizestes” (Mt 25,40). Foi na periferia do mundo e a partir da vida negada e agredida que o Verbo de Deus se fez gente e história na frágil criança de Nazaré: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). Um bom e alegre Natal neste 2024 que se encerra. Nira e Alcimar

AMAZÔNIA, FILOSOFIA E CATÁSTROFE EM SETE NOTAS MARGINAIS

Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a natureza. A cada uma dessas vitórias humanas, ela exerce a sua vingança (F. Engels). 01. A vingança contra a brutalidade da catástrofe ambiental em curso virá das próprias entranhas da natureza da Amazônia, agredida, saqueada e predada pela venalidade do sistema do capital. Como a natureza é o nosso corpo inorgânico (conferir os Manuscritos do Mouro de Trier), a vingança da natureza recairá indiferentemente sobre todos os seres sociais. Se é verdade que natura non facit saltus, menos ainda pode anistiar seus abusadores. A hipoteca recairá sobre inocentes e culpados. 02. O ser natural da Amazônia voltar-se-á com fúria a mais desmedida contra o sistema de predação promovido pela ganância capitalista e converterá em cinzas o lucro assassino e feitor do ecocídio que se pretendia perpetuar acima da vida.Se houver uma palavra final, será inevitavelmente a do valor de uso, jamais a do valor de troca. Toda a cultura produzida pelo trabalho do ser social, por mais sofisticada que seja, desde a dita inteligência artificial do mundo digital, tudo voltará ao domínio do ser natural. 03. A fumaça das queimadas criminosas que cobrem a imensa planície amazônica, numa espécie de luta de classes de modalidade reversa, já começa a subir os Alpes sem permissão da eficiente vigilância fronteiriça de países que se julgam neutros e acima do bem e do mal. Como as esquerdas estão sem rumo e em ritmo de autofagocitose ideológica, o protagonismo da Cabanagem Amazônica do século XXI caberá às forças da natureza. Água, Ar, Terra e Fogo retomarão a dialética natural e heraclítica. 04. Por força do aquecimento global (que desconhece fronteiras e é indiferente a estatutos de neutralidade política) as belas geleiras alpinas, reservadas para o deleite conspícuo das classes dominantes, já estão em fase de irreversível derretimento. Sob a ordem do capital insano as cinzas das queimadas criminosas da floresta amazônica salpicarão a nívea brancura do paraíso condominial da autocracia burguesa. Nuvens cinzentas tornarão fronteiriças Basileia (na Suíça) e Brasileia (na Amazônia). 05. Não haverá água limpa para a ablução das mãos invisíveis do mercado, invariavelmente sempre sujas de sangue, cuja moeda de troca avilta o valor da vida e converte o trabalho da classe trabalhadora na mais venal mercadoria. Segundo Kant, quando tudo tem preço não há espaço para a dignidade. Por falta de ação humana diante do imperativo criminoso do valor de troca a natureza dá o troco e entra em irreversível estado de vingança. Que direitos pode esperar a Amazônia do Contrato Natural capitalista? 06. Vem do genial Walter Benjamin a tese de que o capitalismo não morrerá de morte natural e que toda a natureza pôr-se-ia em lamento se lhe fosse concedido o poder da linguagem.Tenha ou não ouvidos a insana cultura capitalista, a natureza já começou a falar por gritos e a converter em códigos e sinais materiais de vingança natural o regime de morte que a arrogância da cultura imaginou impor à sua milenar existência. A vitória final será da natureza, que subsistirá à cultura. 07. O que o insustentável e predatório modo de produção capitalista, com seu padrão de vida consumista e perdulário, agregou ou pode agregar à vida do ser natural da Amazônia? Como escreve Ailton Krenak, a vida (natural e humana) não é útil. Não há comensurabilidade possível entre o regime de simbiose do mundo natural e o parasitismo inerente ao pragmatismo capitalista. A máquina do capital não tem freio de mão e diminuem a cada dia as possibilidades do ser humano desviar-se do abismo.

ARTIGO – LUIZA ERUNDINA 90

1934 – 30 de novembro – 2024: a Deputada Federal Luíza Erundina (PSoL) completa hoje 90 anos. Nas veias e artérias do coração amoroso e  militante dessa mulher irredenta, nascida na pequena cidade de Uiraúna, na Paraíba, corre sangue vermelho em forma de utopia, corre luta, corre tenacidade, correm projetos de emancipação social e de  educação libertadora, construídos coletivamente com a parceria de mãos e mentes solidárias como as de Paulo Freire, o Patrono da Educação Brasileira, por ela convocado para assumir a Secretaria de Educação da cidade-estado de São Paulo durante o seu mandato de Prefeita no período de 1989-1993.   Nordestina como Paulo Freire (este de Pernambuco), Luíza Erundina, formada em Serviço Social, governou para todos a partir da periferia de São Paulo e nunca se dobrou ao preconceito (inclusive de setores da esquerda), à misoginia, ao machismo, ao racismo, à intolerância, à discriminação e à criminalização da política, sobretudo de parte da arrogância financeira da parte mais abjeta e majoritariamente branca da burguesia paulistana. Luíza Erundina, viva, plena de lucidez, generosa, sábia, é sobrevivente de um Brasil que em pleno século XXI continua atravessado e assolado pela mais degradada desigualdade social.   Luíza Erundina, aos 90 anos, mulher de mil lutas, é o que há de mais saudável e ético nesse Brasil em que o Estado (por meio das instâncias governantes) trama contra o Estado Democrático de Direito. Luíza Erundina não se dobra, é cipó de aroeira em meio a uma casa parlamentar ocupada pelo que existe de mais reacionário e regressivo na política brasileira. Luíza Erundina merece lugar de honra no Panteão das Mulheres Irredentas, ao lado de tantas outras, indígenas, pretas, brancas, de todas as cores, mulheres da estatura de Elizabeth Teixeira (viva e a caminho de completar 100 anos em 13 de fevereiro de 2025) e Carolina Maria de Jesus, para aqui me ater a uma Trindade Paradigmática.   LUÍZA ERUNDINA, guerreira do povo brasileiro!

ARTIGO – CAPITAL POLÍTICO, POLÍTICA DO CAPITAL E POBRE DE DIREITA

Quanto aos pobres – a permanecer o reino do capital (acréscimo nosso), vós sempre os tereis convosco (Jesus de Nazaré, Jo 12,8). 01. Consciência de classe, consciência política, consciência crítica ou capacidade de discernir por meio daquele estágio de autonomia cognitiva designado por Immanuel Kant como esclarecimento, jamais podem resultar de geração natural, menos ainda de miséria social. Se miséria social gerasse consciência de classe os por volta de 800 milhões de pessoas no mundo que vivem abaixo do que se define como Limiar Internacional da Pobreza já estariam em estado de insurreição social. 02. Quando reina a política do capital o capital político do pobre é expropriado pela burguesia e por não se reconhecer como classe explorada, o pobre (submetido à consciência de rebanho) passa a integrar o crescente exército social do (aparentemente) contraditório pobre de direita. Aparentemente contraditório para quem nunca leu uma linha do velho Marx: numa sociedade de classes a ideologia dominante é necessária e inevitavelmente a ideologia da classe dominante. Nem mais, nem menos. 03. O grande pensador da hermenêutica no século XX, Gadamer, ao refletir sobre o caráter oculto da saúde (título de um livro homônimo), assegura que o verdadeiro objetivante é a doença e não a saúde. Tivesse Gadamer por Marx o mesmo interesse que devotou a Heidegger, veria que a doença por si mesma não tem poder de gerar no doente nenhuma consciência ou objetivação sobre o mal que lhe compromete a saúde. Sem consciência de classe a natureza social da doença que acomete o doente tende a se naturalizar. 04. A miséria da doença termina por conferir normatividade social à patologia que subtrai vida ao doente. Somente em Marx é possível discernir o que diferencia a busca heideggeriana pelo ser do ente da objetivação social (marxiana) do ser doente numa sociedade apartada em classes. Não é possível superar a abstração metafísica heideggeriana do esquecimento do ser sem que o ser seja pensado, como o faz o materialismo histórico e dialético, a partir de suas determinações concretamente históricas e sociais. 05. A sociedade de classes gera a apartação social da miséria e da doença. A política do capital determina a consciência do pobre e do doente e sabe como produzir e manter tanto o pobre quanto o doente de direita. O doente não se revolta porque é doente e é doente porque não se revolta. O pobre (de consciência) não se revolta porque é pobre e é pobre de consciência porque não se revolta. Existirá sistema (?) de saúde mais doentio, perverso e excludente do que o mantido pela maior potência capitalista do mundo? 06. Essa aporia patológica (ou beco sem saída doentio) já havia, noutros termos, sido formulada por George Orwell ao afirmar que os pobres não têm consciência porque não se rebelam e não se rebelam porque não têm consciência. Adicionando Marx a Orwell, podemos dizer: consciência e rebeldia passam pelo método da luta de classes, sem o que não é possível nem organização nem consciência de classe. Vem da pátria do capital (idolatrada pela extrema direita) a lição de que o capital empobrece e adoece. 07. Nada mais doentio e distópico do que ver nos dias que correm, num mundo em decomposição, a bandeira da rebeldia nas mãos (sujas e cheias de sangue) da extrema direita. Em lugar de liberdade, vamos construir saídas. O que só é possível pela esquerda, classista, e que não teme chamar-se pelo nome de consciência de classe. Apostar no protagonismo e na luta da classe trabalhadora rumo ao desafio da construção de uma sociedade sem classes, verdadeiramente livre e radicalmente humana.