ARTIGO – MOVIMENTO DAS FAMÍLIA DOS PADRES CASADOS

  Gentilmente fui convidada a enviar periodicamente uma contribuição para um boletim do Movimento das famílias dos padres casados. Confesso minha dificuldade em estabelecer temas quando não me pedem em especial um e quando não conheço pessoalmente ao menos algumas pessoas que serão meus leitores e leitoras. Nessa estranha situação acolhi o convite e começo a escrever o primeiro texto com prazer. Fiquei me perguntando sobre o que significa hoje a expressão ‘Padres casados’ e mais, o que significa ‘Famílias dos padres casados’ e ‘Movimento das mesmas famílias’. O que de fato estão buscando? A primeira palavra que me veio à mente foi “transgressão”. Por que essa incômoda palavra surgiu como primeira? Creio que a razão está no fato de que na Igreja Católica Romana juntar a palavra ‘padres’ com ‘casamento’ é uma inadequação canônica, isto é, uma transgressão ao direito canônico estabelecido. Em seguida me perguntei por que os homens ordenados sob um direito canônico em muitos aspectos anacrônico querem guardar a identidade de padres, querem expandi-la para suas famílias, querem torna-la um movimento de luta? Senti-me impotente em responder as perguntas que eu me fazia visto não estar vivendo nessa situação. Porém, teoricamente imaginei que talvez alguns membros desse movimento ainda acreditem no ‘sacerdócio eterno segundo a ordem de Melquisedec’. Em outras palavras acreditam que o sacramento da ordem é marcado pela noção de eternidade e sobretudo gostariam de conservá-la e serem reconhecidos pelos fiéis. Por quê? Não seria essa ainda uma teologia anacrônica que mereceria uma séria revisão crítica? Outros talvez queiram forçar a Igreja institucional a abrir-se para o pluralismo de escolhas sacerdotais e não estabelecer o celibato como norma para a ordenação de padres. Mesmo assim , fiquei me perguntando se esse seria um bom caminho para fazer reformas na Igreja Católica Romana, se era isso que as comunidades cristãs de fato estão precisando. Ordenar homens casados, solteiros, viúvos, mulheres, homossexuais, transsexuais etc., no mesmo modelo de Igreja hierárquica e com conteúdo que pouco fala aos corações. Seria talvez para alguns um desejo de abertura para o pluralismo do mundo atual e suas múltiplas reivindicações, porém sem a apresentação de mudanças teológicas nos conteúdos que sustentam essas rubricas não vejo reais possibilidades para isso. A segunda palavra que me surgiu para esse primeiro texto foi ‘ministério’. Me perguntei se no fundo alguns padres casados não gostariam ainda de dirigir uma paróquia, fazer parte das reuniões presbiterais nas diferentes dioceses, reunir-se com os bispos e viver num estilo semelhante ao dos pastores protestantes. Talvez ainda guardem a nostalgia de muitos aspectos de seu antigo sacerdócio. Mais uma vez, teoricamente me perguntei se isto traria de fato alguma mudança nas estruturas da Igreja Católica, na sua teologia idealista e cheia de categorias filosóficas abstratas. Fiquei me perguntando se apesar do matrimônio e da família haveria algo do ponto de vista da qualidade da vida cristã que se acrescentaria ao ministério dos homens casados, não mais celibatários canonicamente e que incluísse até uma proposta de vivências para suas famílias. Então surgiu a terceira palavra e essa foi ‘conversão’. Esta será a última da tríade que lhes apresento nesse breve artigo. A palavra conversão surge no contexto atual de nosso mundo eivado de violências, de destruição, de guerras, de usurpação de países e de poderes. O que é mesmo conversão? Conversão a que? Conversão a quem? Do ponto de vista ético a palavra conversão indica a necessidade de uma mudança de vida pessoal e coletiva, uma mudança que mostrasse o avesso no direito e o direito presente no avesso. Isto quer dizer uma mudança não apenas de palavras ou de algumas práticas litúrgicas, mas de algo que significasse uma mutação na própria pessoa e de tal forma que essa mudança repercutisse positivamente no seu entorno. Creio que a grande mudança é a percepção e a vivência de que de fato Jesus de Nazaré não era da classe sacerdotal do judaísmo de seu tempo, não tinha acesso livre ao Templo e às sinagogas e não se sabe com clareza se era celibatário ou não. A Igreja que se estabeleceu depois de sua morte copiou e justificou modelos imperiais colonialistas. Constituiu sua teologia de forma hierárquica e masculina. Excluiu estrangeiros, pobres, impuros, mulheres de uma comunhão igualitária e em seguida afirmou que tudo isso era segundo Jesus e segundo seu Pai, o Deus todo poderoso. Essa Igreja se expandiu com os impérios desse mundo. Julgou outras crenças, condenou-as para que se impusesse a limitada verdade dos colonizadores. Hoje estamos vivendo aspectos diferenciados desse colonialismo que perdura de outras formas. Talvez estejamos convencidos de que isso aconteceu apenas no passado e não mais no presente. Cuidado !Há que observar com atenção os acontecimentos da história dos diferentes países e o lugar das religiões. Tudo isso talvez já seja conhecido pelos leitores e leitoras, mas vale lembrar que a conversão é um convite sempre dirigido primeiro a cada pessoa em vista da acolhida dos caídos nas estradas da vida. É em primeiro lugar um processo pessoal interior ético, uma caída dos ‘cavalos’ que nos sustentam, uma acolhida da vida como ela se apresenta sem as máscaras e as rubricas eternas que queremos impor-lhe para torna-la sagrada. Todas as vidas são sagradas e não são as leis canônicas e os títulos distintivos que assim as tornam. Mas sua própria existência como vida plural, sua evolução contínua, sua beleza semeada nas pequenas e grandes coisas é que manifesta sua dimensão sagrada, isto é, sua dimensão de gratuidade e grandiosidade. Será que ainda valem as rubricas passadas para que nossa autoridade ética seja reconhecida? Não podemos esquecer que Jesus afirmava que ‘não podia ser assim entre seus discípulos e discípulas’ e que quem tivesse ouvidos para ouvir que ouvisse, e olhos para ver que visse, e corpos para sentir que sinta o palpitar da vida.