ARTIGO – A POLÍTICA DE JESUS COMO PROVOCAÇÃO

Para clarear o tema, convido vocês a imaginar comigo uma cena dos anos 70 dC, apenas 40 anos após a morte de Jesus, no tempo da redação do primeiro Evangelho, o de Marcos. Alguns grupos de imigrantes judeus, que vieram a Roma em busca de emprego, optaram por seguir os ensinamentos de Jesus, o nazareno. Eles falam grego, a língua ‘franca’ do Império Romano, mas conservam usos e costumes de origem aramaica. Eles constituem uma sinagoga dissidente, não aceita pela oficialidade judaica, mas autêntica, baseada num profundo sentimento de fraternidade. Esses primeiros discípulos de Jesus seguem, pois, a tradição judaica de reunir-se uma vez por semana, nos sábados, para momentos de comensalidade, audição de algum texto bíblico e reza. É normal supor que, nesses momentos, o assassinato extremamente cruel do líder galileu tenha vindo à tona, num clima de muita emoção. Seus grandes feitos também. A memória de Jesus vai acompanhada de manifestações de exaltação, gritos, exclamações, gestos e pulos, como Paulo assinala na Primeira Carta aos Coríntios. O clima de entusiasmo e o gosto pelo ‘maravilhoso’, por milagres e feitos sensacionais, faz com que emerja, com o tempo, um Jesus hierático, que só pronuncia verdades eternas, é sempre sério e ocupa sempre o centro da cena. Esses primeiros discípulos são, em sua quase totalidade, analfabetos. Os raros alfabetizados, entre eles, costumam ser escravos ou libertos da escravidão, como a historiadora inglesa Cândida Moss vem nos revelar recentemente num estudo inovador. Ela comenta a relação existente, nos tempos em que surge o cristianismo, entre alfabetização e escravidão. Na época, apenas 5 a 10 por cento da população era alfabetizado. Os apóstolos, em geral, eram analfabetos, sendo Paulo de Tarso uma exceção. As sociedades, que viviam sob o comando do Império Romano, eram escravocratas. Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam seus próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto. Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da moderna, atlântica, que mantinha os escravos no analfabetismo. Mas como, nos tempos do Império Romano, o ato de escrever era uma tarefa penosa, árdua, cansativa e desgastante, acontecia que escravos se alfabetizaram para depois poder estar a serviço de comunidades analfabetas. É de se supor, pois, que foram escravos ou libertos cristãos, que liam relatos acerca da vida de Jesus diante de ouvintes analfabetos. É de se compreender que, nessas circunstâncias, não haja muito interesse em investigar historicamente a vida concreta de Jesus de Nazaré. Do processo emerge um Jesus narrativo. A impressão que temos é que os primeiros, que se metem a escrever, estão interessados em apresentar uma imagem de Jesus que possa animar a fé dos/das colegas. Impulsionados por ondas crescentes de uma tradição oral que se cria a partir da horrível morte do líder de Nazaré, e que já se consolida ao longo de 40 a 70 anos (40 anos no caso de Marcos, pelo menos 50 anos no caso de Mateus e Lucas e 70 anos no caso de João), o interesse desses evangelistas parece consistir em apresentar um Jesus que anime e sustente a fé dos discípulos e das discípulas em meio à hostilidade, incompreensão, desprezo e mesmo perseguição aberta (com perigo de vida), por parte da sociedade e das autoridades. Uma luminosa auréola passa a envolver a figura de Jesus, que cresce com o tempo. Jesus não só expulsa sopros maus, cura leprosos, socorre necessitados, mas passa a andar sobre as águas, acalmar tempestades, multiplicar pães. Ele torna-se um novo Elias, o grande profeta da memória popular judaica, que multiplicava pão para a viúva de Sarepta, lançava seu manto sobre as águas e as separava, ressuscitava mortos. Torna-se um novo Moisés, libertador do povo hebreu escravizado no Egito. Esse Jesus, fazedor de milagres e feitos impressionantes, sustenta a fé dos primeiros seguidores. Combatidas, desprezadas e mal interpretadas, as comunidades de discípulos e discípulas visam, antes de tudo, manter e avivar a imagem de um Jesus que, ressuscitado e divino, demonstra a mais tenaz resiliência, a mais viva resistência, a mais forte persuasão. E eles têm sucesso. Pois, enquanto diversos movimentos proféticos e messiânicos da época sucumbem aos golpes da perseguição por parte da oficialidade, o movimento de Jesus resiste. Os/as discípulos/as seguidores/as sabem descobrir algo diferente em seu líder, algo que o destaque. Para tanto, eles/elas abandonam a memória histórica em benefício de uma imaginação mitológica, em grande parte fundamentada em textos das Escrituras Sagradas. Na realidade, misturam história e mito. Só por ocaso, em flashes esporádicos, tomamos conhecimento de fatos históricos acerca de Jesus. Dou uns exemplos: o evangelista Marcos, no sexto capítulo de seu Evangelho, nos informa ‘de passagem’ que Jesus tem quatro irmãos e pelo menos duas irmãs. E, no quarto capítulo de seu Evangelho, Lucas conta que os nazarenos estranham o comportamento do conterrâneo Jesus e o rejeitam. Mas esses raros dados históricos não são sistematicamente trabalhados, não se enquadram num esquema historiográfico. As raras cenas historiográficas flutuam como destroços de um naufrágio em meio a discursos de cunho narrativo e metafórico. Temos de recordar também um dado de ordem política: no ano 70, os romanos destroem o Templo de Jerusalém. Nessas circunstâncias, as lideranças do movimento de Jesus, já ameaçadas por hostilidades de todo tipo, não devem ter achado prudente abordar o tema de Jesus provocativo. Conclusão: para alcançar a política provocativa de Jesus, temos de ‘desvendar’ Jesus de Nazaré, ou seja, retirar a venda que nos impede enxergar claramente sua pessoa, tal qual andou pela Galileia, vinte séculos atrás. Paradoxalmente, foram os evangelhos que colocaram essa venda em nossos olhos. No fundo, temos de voltar ao questionamento dos escolásticos medievais: fides quaerens intellectum: ‘a fé em busca de inteligência’. Pois, em muitos casos, a fé concreta, praticada pelo povo, até nossos dias, é cega, enxerga mal os reais intentos de ações e palavras de Jesus. Três episódios em que Jesus se revela provocativo: as bodas

ARTIGO – JESUS EM PERSPECTIVA MUNDIAL

“Nem sempre esse caráter potencialmente universal de movimentos religiosos é percebido por seus próprios praticantes”, escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Eis o artigo. Mesmo sendo empurrada pelas novas tecnologias, pelas viagens aéreas e pelo intenso comércio internacional, uma ampla perspectiva mundial hoje ainda não compenetrou nossos sistemas ideológicos, políticos, culturais e religiosos, como podemos constatar a cada dia. Em 1948, no reboque do trauma causado pela II Guerra Mundial, o filósofo alemão Karl Jaspers se imaginou um esquema interpretativo que seria válido para a humanidade toda. Em determinados momentos da história haveria movimentos, em determinados pontos do planeta, de novas percepções e novas práticas. Jaspers pensou detectar uma tal ´idade axial‘, por volta do século V aC, em Israel (os profetas), Grécia (Platão), China (Confúcio), Índia (Buda) e Irã (Zaratusta). A ideia é sugestiva, pois foca uma religião mundial, sem registro nem fronteira ou nome, secularmente vivida pela grande maioria das pessoas, uma religião universal que as instituições teimam em não reconhecer, mas que corresponde a intuições como as de Isaías, Platão, Confúcio, Buda e Zaratustra. Milhões e milhões de pessoas vivem sua religião dentro de quadros familiares, em todos os quadrantes do mundo, dentro ou fora das mais variadas institucionalizações. Em todas elas persistem atitudes semelhantes de procura de honestidade, dignidade, verdade e sabedoria. Certa feita, Leonardo Boff perguntou ao Dalai Lama: qual é a verdadeira religião? E este respondeu: a que faz de você uma pessoa melhor. Eis uma boa definição daquela ‘religião anônima’ universal. Daí decorre que não poucos textos religiosos, escritos dentro de determinados âmbitos institucionais, podem ser lidos com proveito por um amplo leque de leitores/as fora daqueles âmbitos, pois tratam de realidades vividas pela grande maioria dos que habitam este planeta: a vida em família, a luta por uma situação econômica melhor, a luta contra a fome, pela coerência, pela verdade, pela dignidade humana, pela superação de preconceitos sexuais. Uns vinte anos atrás, eu publiquei um comentário de um texto bem antigo da tradição cristã, intitulado O Pastor de Hermas, que pode ser lido com proveito por gente das mais variadas denominações religiosas, pelo fato de não ser um texto restritivo à instituição cristã, mas abordar questões universais em torno de casamento, escravidão, liberdade, sexualidade, utopia e educação (Hermas no Topo do Mundo, Paulus, São Paulo, 2002). Nem sempre esse caráter potencialmente universal de movimentos religiosos é percebido por seus próprios praticantes. Nas primeiras décadas do movimento de Jesus (entre os anos 30 e 50), por exemplo, os apóstolos mal percebem que, pensando bem, o universalismo pertence ao âmago da mensagem de Jesus de Nazaré. Aqui, há de se considerar que, nas palavras e nos gestos de Jesus, o universalismo entra como vislumbre, não impregna por inteiro o modo de falar e atuar. Jesus permanece fundamentalmente judeu, pensa em categorias judaicas e segue tradições judaicas. Então, é de se entender que os discípulos da primeira geração pensem que a mensagem de Jesus se restrinja ao mundo judaico e não compreendam como um não judeu possa participar do movimento.  

ARTIGO – OS SURPREENDENTES “ESCRITORES” DO NOVO TESTAMENTO

  A biblista inglesa Cândida Moss publicou recentemente um livro instigante e intrigante, intitulado: God’s Ghostwriters: enslaved chistians and the making of the Bible (New York, Little Brown, 2024. Em tradução livre: “Os Ghostwriters de Deus: cristãos escravizados e a construção da Bíblia”), em que levanta uma questão nova: será que os autores reconhecidos dos textos do Novo Testamento, como Paulo, Pedro, Mateus, Lucas ou João (Marcos é um caso à parte, como se verá em seguida), efetivamente ‘escreveram’ seus textos, ou há quem escrevia por eles? Ou, de modo mais direto: interferiram, na escrita (e talvez até na redação) de textos fundantes do Novo Testamento, cristãos escravizados, contratados para escrever textos a serem posteriormente creditados aos que comumente consideramos autores do Novo Testamento? …………………………………………………………………….. Eis uma questão instigante, que nos leva a considerar a relação existente, em tempos de Jesus, entre alfabetização e escravidão. Na época do surgimento do cristianismo, apenas 5 a 10 % da população era alfabetizado. Os apóstolos, em geral, eram analfabetos, sendo Paulo de Tarso uma exceção. As sociedades, que viviam sob o comando do Império Romano, eram escravocratas. Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam os próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto. Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da moderna, atlântica, que mantinha os escravos no analfabetismo. Mas como, nos tempos do Império Romano, o ato de escrever era uma tarefa penosa, árdua e cansativa, havia casos de escravos alfabetizados que se punham a serviço de escritores analfabetos. A expressão ‘escritores analfabetos’ parece contraditória, mas ela expressa uma realidade. Estamos falando de uma época em que não existiam óculos (hoje, 40 % da população mundial dispõem [ou pode dispor] de óculos), em que a prolongação no ato de escrever provocava artrite, ou seja, desgaste das cartilagens dos dedos, uma época sem eletricidade, sem imprensa, sem meios de copiar textos mecânica ou digitalmente. A tese de Cândida Moss implica em admitir que, ao longo dos primeiros duzentos anos da tradição cristã, os textos, salvo raras exceções, tenham sido escritos por cristãos escravizados ou ‘libertos’. Só a partir do século IV, tarefas como escrever, copiar e recopiar textos do Novo Testamento, foram assumidas por monges, nos mosteiros. …………………………………………………………………….. O caso de escravos ‘escritores’ fica patente nas Cartas de Paulo. Mesmo alfabetizado e muito culto, Paulo não costumava escrever suas cartas. No final de diversas delas se encontra uma frase escrita por ele do próprio punho (em grego: ‘tè emè cheiri’, ‘com minha mão’) (2 Tess. 3, 17-18; Col. 3, 13; Gal. 6, 11; 1Cor. 16, 21; Filêmon, 19), como se fosse uma ‘assinatura’ a garantir a autoria intelectual de Paulo. No final da Carta aos Gálatas (6, 11), Paulo insiste: essas palavras, escritas em GRANDES LETRAS, são a prova que a carta é minha. E, no final da Segunda Carta aos Tessalonicenses (3, 18), ele lembra: eu deixo um sinal (em grego: ‘sèmeion) em cada carta. Isso permite afirmar que Paulo tinha, então, à sua disposição, ‘discípulos de Jesus’, provavelmente escravos ou libertos, que executavam a tarefa de escrever suas cartas. Mas será que esses ajudantes eram apenas ‘copistas’ a anotar textos ditados pelo apóstolo? Há uma frase, no final da Carta aos Romanos, que nos faz duvidar. Em Romanos 16, 22, o ‘secretário’ Tértio envia uma saudação pessoal aos/às leitores/as da Carta, em que declara: eu, Tértio, que escrevi esta Carta, os saúdo no Senhor. Tértio, reconhecidamente, é nome de escravo. Então, surge a dúvida: Tértio só taquigrafou palavras ditadas por Paulo, ou teve um papel mais criativo na redação da carta? Não o sabemos. A mesma dúvida paira sobre o Evangelho de João. No final (21, 24), se lê a seguinte frase: Este é o discípulo (em grego ‘mathètès’) que dá testemunho destas coisas e as pós por escrito (em grego: ‘ho grapsas tauta’). Quem é esse discípulo? A frase ganha peso quando lemos os versículos seguintes: Ora, Jesus fez ainda muitas coisas. Se todas elas fossem escritas, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros. Um texto como esse faz crer que houve, ao longo dos setenta anos entre a morte de Jesus e a redação do Evangelho de João, um intenso intercâmbio, entre comunidades do discipulado de Jesus, de histórias oralmente contadas e recontadas. Que rol cabia a cristãos escravizados nesse intercâmbio? …………………………………………………………………….. A hipótese de Cândida Moss nos ajuda a refletir sobre a transmissão da mensagem cristã nos primeiros anos do movimento de Jesus. Em culturas orais costuma vigorar o ditado: quem conta um conto, aumenta um ponto. É de se supor que, ao longo das transmissões, de boca em boca, histórias (como a da transformação de água em vinho, nas Bodas de Caná, por exemplo, ou de Jesus andando sobre as águas) tenham assumido feições sempre mais impressionantes. Os patentes exageros, recorrentes em relatos evangélicos, nos levam a fazer algumas perguntas: que relação existe entre essas histórias, oralmente transmitidas durante um período de pelo menos quarenta anos (entre a morte de Jesus e a redação do primeiro evangelho, o de Marcos, por volta do ano 70), e os escritos evangélicos que hoje lemos? Que papel coube a discípulos escravizados no ato de transmitir essas histórias? Qual a relação entre o texto que hoje lemos e a tradição oral anterior? …………………………………………………………………….. Enfim, a tese de Cândida Moss nos instiga a estudar com maior profundidade a relação entre cristianismo emergente e escravidão. O caso de Marcos evangelista nos faz refletir nesse sentido. Se acreditarmos numa informação do escritor cristão Papias de Hierápolis, por volta dos anos 120 dC, então é provável que Marcos tenha sido um escravo. Papias escreve: Marcos tornou-se intérprete de Pedro. Ele escreveu com precisão tudo o que Pedro se lembrava. Imaginamos Pedro, apóstolo analfabeto, sendo acompanhado por Marcos, escravo ou ‘liberto’, que sabia escrever e se tornou o primeiro evangelista. Marcos gozava de certa liberdade, ao escrever,

ARTIGO – AS MUDANÇAS DE RUMO NA VIDA DE HELDER CÂMARA

Ao longo de sua vida, Helder Camara passa por três importantes mudanças de rumo, que descrevo aqui em breves palavras. Todas têm a ver com o tema Liberdade. 1. Quando, em 1931, aos 22 anos, Helder sai do Seminário de Fortaleza, ordenado sacerdote, ele mergulha imediatamente na vida política da cidade. Segue basicamente o catolicismo autoritário da época e se inquieta com o despontar de um pensamento ‘comunista’ em determinados grupos. Não hesita em escrever, em jornais da época, que os regimes de Hitler (na Alemanha) e Mussolini (na Itália) são modelos seguros a serem seguidos, ele veste a camisa dos integralistas de Plínio Salgado e anda com dois jovens militares pelos bairros da cidade para premunir o povo contra o ‘perigo vermelho’. Mas ele não é bem sucedido em sua cidade natal e, em 1936, Helder se transfere para o Rio de Janeiro, onde inicia um lento e doloroso processo de revisão de suas posturas políticas, marcado por leituras individuais, principalmente de autores cristãos franceses, como Jacques Maritain, que lhe abrem a compreensão dos valores da democracia. Ele sente-se ‘libertado’, graças a uma incomum tenacidade intelectual e por sua humildade em se dispor a rever posicionamentos. E, com o falecimento do Cardeal Leme em 1942 e o final da segunda guerra mundial em 1945, abre-se um novo caminho em sua vida, um caminho de libertação. Eis a primeira mudança de rumo na vida de Helder. 2. Anos depois, em 1955, já como bispo auxiliar de Rio de Janeiro, o doravante chamado ‘Dom’ Helder recebe a incumbência de ajudar a organizar o 36º Congresso Eucarístico Internacional, a ser sediado na Capital do Brasil. Esse congresso vira um sucesso enorme e põe o Brasil, pela primeira vez, em cenário mundial. Dom Helder se revela excelente organizador, empolgante orador, grande comunicador. Querido e admirado, ele passa por bons momentos. Mas acontece, no final daquele enorme sucesso, que o evangelho irrompe em sua vida. Dom Helder ‘descobre’ a pobreza reinante na cidade. No conto aqui os detalhes (que são interessantes e que você encontra em meu livro Helder Câmara, quando a vida se faz Dom, capítulo 4). Helder opta pelos pobres e isso muda tudo. Estava a caminho de se tornar um eclesiástico de grande sucesso e, de repente, muda o rumo de sua vida. Ele não é mais o mesmo. Ganha em termos de liberdade, mas, de outro lado, seu superior, o Cardeal Jaime, começa a desconfiar de seu auxiliar e o governador Carlos Lacerda entra numa relação tensa com ele. Enfim, seus relacionamentos mudam sensivelmente. Aí se inicia o período mais conhecido da vida de Helder, marcado por uma desejável liberdade em tempos difíceis. Em 1946, ele tinha unificado a Ação Católica em nível nacional, em 1952 consegue o mesmo com o episcopado, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em 1955 está na origem do ‘Consejo Episcopal Latino-Americano’ (CELAM). Grandes realizações em cima do princípio democrático. Entre 1962 e 1965, ele participa do Concílio Vaticano II, no final do qual articula o Pacto das Catacumbas. Seu renome internacional cresce exponencialmente a partir da década de 1960, com suas bem-sucedidas viagens internacionais, que fazem com que seu nome seja conhecido pelo mundo católico inteiro (o que suscita sentimentos de inveja no Vaticano). Em 1964, é nomeado arcebispo de Recife, lida com sucesso com o governo militar, sofre o assassinato de um de seus padres em 1969 e em 1970 pronuncia em Paris, diante um público de dez mil pessoas, um discurso em que acusa o governo brasileiro de cumplicidade em assassinatos e torturas de oponentes. 3. Com essas realizações, Helder adquire a imagem de ‘profeta’. Mas ele não para. A maior de suas contribuições está por vir. Nos primeiros dias do ano 1971 aparecem, nos cabeçalhos das Cartas Circulares que ele costuma mandar cada dia a grupos de mulheres que, no Rio e em Recife, acompanham suas ações e reflexões, e que representam frequentemente meditações feitas ao longo de suas vigílias noturnas, os dizeres Minorias Abraâmicas (Conto detalhes no capítulo 11 do livro acima assinalado). O que significam essas palavras? Significam que Helder, doravante, navega para novos horizontes, para além do temário democrático. Ele toma tal atitude por ter experimentado dolorosamente que a democracia só funciona por meio de politicagens e arranjos, que acabam tiram muito de seus intentos originais. Pois a democracia, concretamente, é feita de arranjos e só funciona quando larga propostas capazes de desafiar efetiva e diretamente o ‘sistema’. Como dizia Churchill: a democracia é um sistema ruim, mas não existe melhor. A experiência de longos anos ensinou a Helder que pequenos grupos, livremente reunidos, são capazes de realizar o que a ‘democracia’ não consegue. Ele conhece grupos que agem em favor de despossuídos, mulheres e crianças desamparadas, indígenas e quilombolas, gente sem terra ou sem casa, etc. Aliás, essa é a ideia de Jesus, quando compara o Reino de Deus a uma semente no chão, um fermento na massa, um sal na comida, uma luz na escuridão. . Para caracterizar sua intuição, Helder cava fundo na tradição bíblica e desenterra a figura de Abraão, o homem que se desinstala para ir livremente para onde Deus o chama. Considero a proposta de formar ‘minorias abraâmicas’ a principal contribuição de Helder Câmara em debates e reflexões cristãs, hoje, vinte e cinco anos após sua morte. Helder continua presente. Termino com uma sugestão: a de ler e reler suas Cartas Circulares, pois elas inspiraram suas ações e contêm a chave de compreensão de suas iniciativas.

ARTIGO – GUSTAVO GUTIÉRREZ – 1928-2024

Gustavo Gutiérrez sacode o jugo da ‘leitura grega’, que até hoje pesa sobre o cristianismo ocidental, e vai resoluto a Jesus de Nazaré que, após deixar João Batista penitencial, volta à sua terra natal e se compromete a fundo com o povo pobre. O projeto de Jesus tem grande capacidade de congregar pessoas, pois atinge o povo que se encontra nos bairros populares das cidades, nos sítios onde vivem os camponeses, no cais do porto, no mercado, nas ruas e praças, mas principalmente no interior dos pátios habitacionais, onde diversas famílias moram juntas atrás de um mesmo portão de entrada. Na hora da comida em comum, as pessoas atualizam seus conhecimentos, ouvem falar de outros grupos, comentam os problemas, comem e bebem juntos, cantam hinos, ritualizam um encontro de fraternidade. É a comensalidade, a eucaristia: Damos graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos e ainda sobra para uma eventual visita. Aqui não há famintos. Nossa solidariedade elimina a fome. Em geral, não se alcança essa comensalidade, essa eucaristia, tal qual aparece, de modo um tanto eufórico, nos Atos dos Apóstolos. O resultado permanece bem mais modesto. Mas existem, por exemplo, indícios de que as comunidades ajudaram a pagar os impostos, na época um peso enorme sobre os ombros das pessoas. Desse modo, a ‘comensalidade’ pode ter uma dimensão financeira: colaboração no pagamento de dívidas. Para muitos, a comensalidade (e eventualmente a ‘comunhão de bens’) é exigente demais. Abordado por um jovem rico que quer segui-lo na missão, Jesus diz: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e os distribui entre os pobres: terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me (Mt 19, 21; Mc 10, 21). Ao ouvir essas palavras, o jovem rico vai embora. E Jesus pondera: o projeto é quase impossível a ser posto em prática. Falta quem queira colaborar. Mesmo assim, para Deus tudo é possível (Mt 19, 26; Mc 10, 27). É dentro desse contexto que aparece o famoso Dito de Jesus: É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. Gustavo não vai direto à comensalidade, pois o mundo atual tem uma complexidade própria e ela precisa ser destrinchada. Mas ele pode ser chamado de comunista, no sentido próprio do termo. Sei que, hoje, o termo costuma remeter ao ‘Manifesto Comunista’, publicado por Marx e Engels em 1848. Mas vale recordar uma lição básica dos linguistas: palavras atuam em diversos contextos e, nisso, assumem diversos significados. ‘Comunismo’, ‘comum’, ‘comunhão’, ‘comunidade’, ‘comungar’, ‘comunicação’, ‘comunicar’, ‘comunicativo’, etc., são termos impregnados de espírito cristão. O comunismo ‘bem entendido’ pertence, decerto, ao âmago do cristianismo, embora tenhamos de reconhecer que, ao longo da história, a experiência de uma convivência ‘comensal’ ou ‘comunista’ apenas vingou em ambientes restritos e de modo limitado. Na primeira frase deste breve texto, falei em ‘leitura grega’ do evangelho. O que se entende por essa expressão? Trata-se de uma reinterpretação do cristianismo a partir de parâmetros neo-platônicos. Ela passa a influenciar o pensar e o agir cristão a partir do século III e resulta numa espiritualização da vida cristã e num esquecimento do teor social da mensagem de Jesus. O tema é importante, pois a ‘leitura grega’ incide diretamente na fé até hoje praticada pelo povo cristão, mais que as questões organizatórias, devedoras de situações concretas e, portanto, de caráter passageiro, que costumam ganhar tanto espaço nas costumeiras apresentações do cristianismo. As questões organizatórias não devem ser dramatizadas. Nem a ruptura entre a igreja ocidental, centralizada em Roma, e a ortodoxia grega, centrada em Constantinopla, no decorrer do século XI, nem a quebra de braços entre catolicismo e luteranismo, no século XVI, nem a subida do pentecostalismo em nossos dias. Pois essas movimentações são todas decorrentes de situações e geografias particulares. Muita coisa pode mudar sem que isso afete, de modo decisivo, a vivência do evangelho por parte dos cristãos ‘anônimos’, que professam uma religião secularmente vivida sem registro nem fronteira nem nome, uma religião universal que as instituições teimam em não reconhecer. Milhões e milhões de pessoas vivem sua religião dentro de quadros familiares, em todos os quadrantes do mundo, dentro ou fora das mais variadas institucionalizações. Essas populações costumam ser influenciadas pela ‘leitura grega’, embora, em geral, desconheçam a expressão. Interessante observar que, indiretamente, a questão da ‘leitura grega’ foi abordada, no Concílio Vaticano II, por ocasião de discussões em torno do documento conciliar Gaudium et Spes. Nessas discussões, é possível detectar nitidamente uma diferença de posicionamentos entre ‘neo-agostinianos (espiritualistas), como Daniélou, de Lubac, Ratzinger e von Balthasar, que basicamente (e sem o mencionar) se apoiam na ‘leitura grega’, e, do outro lado, ‘neo-tomistas’ (‘realistas’), como Chenu, Congar, Rahner, Lohergan e Schilllebeeckx, que se distanciam da ‘leitura grega’ (Massimo Faggioli, Leituras e Releituras do Vaticano II em: Dicionário do Concílio Vaticano II, Décio e Sanchez, Paulus, São Paulo, pp. 536-539). Mas essa diferenciação não impediu que uma ‘sombra grega’ continuasse pairando sobre a teologia praticada na Europa, até hoje. É dentro desse quadro que se perfila a figura de Gustavo Gutiérrez que, sem participar do Concílio Vaticano II, respira um ar totalmente diferente em sua Teología de la Liberación (Editora CEP, Lima, Peru, 1972). Só encontrei, no referido livro, uma nota de pé de página em que Gutiérrez cita Agostinho, paraninfo do cristianismo espiritualizado, para discretamente tomar distância diante de seus posicionamentos (nota na p. 59) e, com isso, da ‘leitura grega’ em geral. Podemos dizer que, com Gustavo Gutiérrez, a teologia dos países emergentes diz ‘adeus’ à teologia baseada em pressupostos longamente cultivados na Europa e na América do Norte.

ARTIGO – A COMPLEXIDADE DO CRISTIANISMO

  Passando um olhar panorâmico sobre a história do cristianismo, descobrimos que dois fatores, vindos de fora, o complexificam e dificultam descobrir nele a herança de Jesus de modo claro e inequívoco: a chamada ‘leitura grega’, que desde o século III dC influencia o movimento de Jesus, e o ‘fator iraniano’ (ou ‘zoroastra’), que, desde o século VI aC influencia o judaísmo e, indiretamente, o cristianismo, por meio da própria cosmovisão de Jesus. Vale a pena se aprofundar, mesmo superficialmente (como aqui) no tema da complexidade do cristianismo, pois ela dificulta e, em certos casos, impede uma visão clara das proposições de Jesus. A leitura grega. As sensacionais conquistas militares de Alexandre o Grande, da Macedônia, no Médio Oriente, no século III aC, fazem com que a cultura helênica se espalhe por grandes extensões de terras e culturas muito diversas e atinge cidades importantes da época, como Antioquia na Síria, Alexandria no Egito e mesmo a longínqua Roma, que desponta como centro virtual de um grande Império. Um sinal muito conhecido dessa avassaladora influência está no fato que os evangelhos, embora descrevam um movimento surgido numa cultura semita, estão redigidos em grego. É nesse contexto que o neo-platonismo, uma das mais significantes ‘ondas’ desse tsunami cultural, inunda o jovem movimento cristão, como descrevo em rápidas pinceladas. Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino Plotino de Licópolis (203-269) aparece em Roma, na época centro de um Império em rápido crescimento, e inaugura ali uma escola de filosofia neo-platônica para jovens da elite intelectual romana, ele alcança em poucos anos um renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da intelligentia do Império Romano, de modo convincente, um modo grego de se entender o homem e a história, especificamente uma interpretação platônica do ser humano e do sentido de sua existência. Essa filosofia, na realidade uma arte de viver, não deixa de penetrar no cristianismo letrado e intelectualizado da época, notadamente por meio dos chamados ‘Padres da Igreja’, que são os intelectuais cristãos do primeiro milênio do cristianismo. Através de seus numerosos escritos, os Padres da Igreja tentam fazer uma síntese entre o pensamento platônico e a visão evangélica do mundo. Com eles, o platonismo se ‘cristianiza’, ao mesmo tempo em que o cristianismo se ‘platoniza’. As ideias-mestres do platonismo são conhecidas: abaixo do mundo divino, não atingido pelo mal, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas. O corpo humano, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: pode deixar-se seduzir pelas formas vãs da matéria, ou deixar-se fascinar pela luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas é capaz de tornar-se trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, ou melhor, da purificação do amor. O homem precisa partir do mundo material e se encaminhar para o que é espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria. A maioria dos Padres da Igreja julga que o encontro entre neo-platonismo e cristianismo leva a um enriquecimento da mensagem de Jesus. Só alguns deles, como Basílio de Cesareia (330-379), percebem que, no processo da espiritualização, a perspectiva social, tão presente nos evangelhos, corre o perigo de desvanecer e que, por conseguinte, não se pode falar em ‘síntese’ entre cristianismo e neo-platonismo, já que os elementos da ‘fusão’ são heterogêneos. Seria antes um ‘amálgama’, um hibridismo, uma junção de elementos heterogêneos. Mas essa crítica não prevalece. Vence a ideia que o drama da vida cristã se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo têm de ser controlados e possivelmente eliminados,enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a êxtase, a contemplação de Deus. Pois, impregnado de um senso religioso agudo e místico, o neoplatonismo faz com que muitos confundam as coisas e não consigam mais distinguir com clareza a diferença entre ensinamentos de Jesus e ensinamentos de Platão. Há de se ressaltar aqui que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível, e nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos. Esse é o caso de Agostinho de Hipona (354-430). Ele faz parte de um grupo de amigos não cristãos, da África do Norte, que viajam de Cartago a Roma e depois a Milão, na companhia de Mônica, mãe de Agostinho, que é cristã. O grupo procura emprego na Itália, aos poucos renuncia a uma vida de prazeres e passa a procurar a sabedoria. É um grupo seleto, que cultiva altos ideais de vida, tem grandes intuições, formula excelentes orientações morais e segue um elevado modo de viver. Depois de tentar diversas filosofias de vida, o grupo entra em contato com a espiritualidade neoplatônica e, quase ao mesmo tempo, ao chegar a Milão, se impressiona com Ambrósio, bispo cristão, grande orador e figura de elevada estima moral. O grupo de amigos, então, se estabelece em uma propriedade rural num vilarejo nos arredores da cidade de Milão, chamado Cassiciacum. Ali, todos leem e trocam opiniões. São idealistas em busca de uma alma espiritual, que já deixaram para trás os prazeres da carne pecaminosa. A situação dos escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões (7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal, faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, mas dificulta o senso evangélico. Em suas Confissões, Agostinho afirma