ARTIGO – MÍRIAM – QUANTAS MULHERES PARA FAZER UM MOISÉS?
Exôdo 1-2,10 e Num 12 A memória de Agar atravessou os séculos e aparece viva e forte na história de resistência às ordens de morte do faraó do Egito. Conhecemos muito bem as narrativas sobre Moisés e sua história de libertador e líder, que atravessa o mar e conduz o povo pelo deserto, rumo à terra de leite e de mel. Mas vamos continuar o exercício de buscar pegadas aparentemente escondidas, mas que não podem ser ignoradas e estão registradas no começo do livro do Êxodo. No início eram as mulheres: duas parteiras, uma mãe, uma irmã e até a filha do Faraó do Egito com suas servas. Todas elas ignoram a ordem de morte do Faraó contra os recém-nascidos, primogénitos do sexo masculino do povo judeu.(Ex 1) Esta primeira intuição profética e teológica, pois revela algo sobre Deus, vem das mulheres e se torna, nelas, ação concreta: Faraó não é Deus; a sua vontade não é a vontade de Deus. Para estas mulheres, como para Deus, o que importa é a vida, especialmente a vida dos pequenos. Por isso são capazes de desobedecer, colocando até a vida delas em risco. Temiam a Deus mais que ao faraó, por isso, transgredem a ordem de morte e mentem para poder salvar os meninos. Para elas Deus é o Deus da vida. Eram parteiras egípcias, como nos dizem seus nomes, que “temiam a Deus” e não obedeciam ao faraó. A bênção de Deus sobre ela é: dar-lhes uma família (Ex 1,17-21). Parteiras, mãe, irmã, princesa e servas: é graças à sua coragem e desobediência que Deus age e a vida de Moisés é salva. De diferentes raças e povos, de diferentes grupos sociais – há até uma princesa – todas escolhem salvar a vida de um pequeno e desobedecem a ordem do rei. Esta é e será sempre a essência da profecia: ser fiéis ao Deus da vida, especialmente quando a vida ameaçada é a dos pequenos e dos pobres, colocando-nos, como Ele, ao serviço e em defesa destas vidas. Miriam tem um papel decisivo nesta breve memória: é ela quem, junto com a mãe, leva a criança até a margem do rio. É ela quem fica ali, escondida, mas seus olhos nunca se desviam do irmãozinho. Os olhos de Miriam recordam-nos o olhar de Deus que “viu” o filho de Agar e que “ouviu o seu choro”, tal como a princesa escuta o choro do menino e o leva consigo, mesmo sabendo que ele é judeu. Estas mulheres fazem história de salvação, uma história conduzida por um Deus que vê, um Deus que escuta o grito, mesmo que seja apenas o grito fraco dos pequenos, e que intervém para salvar. Um Deus que age como essas mulheres, através das ações dessas mulheres. É novamente Miriam, a irmã que se oferece para procurar uma ama de leite entre as judias para amamentar o irmãozinho e vai chamar a mãe, que, para isso, entrará e ficará no palácio. Até o palácio do faraó se torna lugar de vida para a criança graças à ação dessas mulheres. Quando, mais tarde, Moisés terá que enfrentar a opressão do faraó contra o povo judeu, encontrará, no deserto, em Madiã, no monte Horebe, o Deus destas mulheres que o salvaram: Deus que vê, Deus que ouve, Deus que sabe, Deus que desce ao lado dos oprimidos. Deus que agora envia ele Moisés, para que o povo viva (Ex 3,7-10). Moisés que deve ter ouvido muitas vezes a história de como foi salvo pela sua mãe, pela irmã, pela princesa, aprendeu com elas que Deus age assim. Caberá a ele, não sem esforço e relutância, fazer o mesmo. Mais tarde, atravessado o mar de juncos, o povo já libertado do Faraó, será Miriam, a “profetisa”, quem conduzirá a celebração com todas as mulheres, numa dança festiva, ao som de pandeiros, repetindo com elas o refrão da vitória: “Cantai ao Senhor, porque ele se tornou verdadeiramente grande: lançou ao mar cavalo e cavaleiro” (Êx 15,20-21). A profecia não é adivinhar o futuro, mas como Miriam e sua mãe, como as parteiras egípcias, é reconhecer a verdadeira face de Javé, nosso Deus, é saber do lado de quem está e se manifesta salvando os pequenos, os fracos, os pobres e abatendo aqueles que ameaçam as suas vidas. Esta é a memória que não poderá desaparecer e que será assumida, ao longo dos séculos, por outras mulheres, como Ana (1Sm 2,1-10), como Ester (Est 4,17m-17s), como Judite (Jdt 9,8-14), como Miriam de Nazaré que também canta: Ele viu minha humilhação, fez grandes coisas, dispersou os orgulhosos, exaltou os humilhados, derrubou os poderosos, saciou os famintos, esvaziou os ricos. Ele é fiel! E isso é misericórdia! (Lc 1,46-55) Mulheres que celebram e cantam, como Miriam, que souberam defender a vida, contra o poder do palácio, do templo, do mercado, do império militarista e mercantilista e contra qualquer patriarcalismo opressor e excludente. A memória de Miriam continua aparecendo, durante a viagem no deserto, no capítulo 12 do livro de Números, capítulo relido e posteriormente retocado com claros interesses do grupo sacerdotal que nos deixou a redação final. O contexto deste livro de memórias é a controvérsia a respeito do exercício da profecia. O capítulo 11 de Números nos remete ao espírito de profecia que desce sobre os 70 homens escolhidos que estavam na tenda com Moisés, mas também desce sobre outros dois que permaneceram no acampamento, junto com todos. A Josué, que gostaria de proibi-los de profetizar, Moisés responde: “Tens ciúmes de mim? Quem pode dar profetas a todo o povo do Senhor? É o Senhor quem lhes dá o seu espírito” (Nm 11,29). Esta memória de uma profecia que poderia pertencer a todo o povo, poderia questionar o poder sagrado de sacerdotes e sua corte e por isso, precisa ser controlada e negada e isso acontecerá com as reformas de Esdras e Neemias, até ser exclusiva do Sumo Sacerdote. É importante questionar e buscar autoria de alguns relatos posteriores. É legitimo
ARTIGO – AGAR: TEOLOGIA NO DESERTO E NAS TENDAS PATRIARCAIS
Agar aparece nos textos pois tem um problema na tenda do patriarca Abraão. O problema de Abraão era a falta de “primogênito”. Apesar da promessa de Deus, o filho não chegou e a idade avançada de Sara parece encerrar as esperanças. Sem primogênito o clã não tem futuro. Seguindo os costumes do clã, Sara toma Agar, sua serva egípcia e a entrega a Abraão. Este a “possuiu” e Agar engravidou. Agar era estrangeira, de outra fé, de outro povo, escrava de Sara mulher de Abraão. Abraão deixa a Sara, a decisão sobre a vida da escrava, quando o ciúme explode e torna impossível a convivência das duas mulheres, na mesma tenda. Abraão, que não tinha escolhido ter filho com Agar, não se mete no conflito entre as duas mulheres. Deixa Sara decidir sobre a vida da escrava dela. E Agar foge por causa dos maus tratos de Sara. Foge para o único lugar possível: o deserto, lugar inóspito, onde se pode morrer, ainda mais sendo mulher e grávida. Nós aprendemos que o deserto é também lugar onde o povo encontra e experimenta a presença de Deus que o conduz. Isso acontece com Agar, escrava, estrangeira, fugitiva, oprimida. Agar, antes do povo, experimenta o deserto como lugar do encontro com um Deus que se preocupa com ela e com a vida que ela carrega e lhe ordena de voltar. Deus lhe confirma que terá um filho e será ela, a mãe a dar o nome ao menino: Ismael, porque “Javé ouviu tua aflição”. Mais ainda: Agar recebe a mesma promessa feita a Abraão: uma descendência que ninguém poderá contar! Agar decide voltar para a tenda de Sara, mas antes faz outro gesto: ela dá o nome ao poço onde o encontro com a divindade aconteceu e mudou seu destino e do filho. “E ela chamou o nome de Iahweh com quem ela falava: “Tu és Deus que me vê; por que disse: Aqui eu vi aquele que me vê (Gn 16,13). Dar o nome é tomar posse. Agar, aqui, se torna chefe de um grupo e dona de poço e revela quem é o Deus que a encontrou: Aqui eu vi aquele que me vê! Resumindo e destacando: Agar recebe a promessa de uma descendência; Agar sabe que Deus escutou sua aflição; Agar aceita Deus que a manda voltar, para que o menino viva e tenha futuro, mas será ela a decidir sobre o menino. Agar sabe que Deus a viu e a visão é recíproca: Deus e Agar se “veem”. O poço, indispensável à vida de um grupo, no deserto, se torna lugar sagrado pelo nome que Agar dá, testemunha do encontro dela com Deus! Deserto, poço, promessa, mãe, filho, Deus que vê e escuta quem era na opressão. Todos estes elementos fazem de Agar, escrava, estrangeira, de outra fé, na beira da morte, uma matriarca do mesmo tamanho de Abraão e Sara! Esta a memória que o livro registra. As memórias de Agar e seu menino continuam: mais tarde, para que Ismael não ameace a primogenitura e a herança de Isaac, Abraão vai afastar Agar e o filho, dando-lhes somente um odre de água e um pouco de pão. Em Bersabeia (extremo Sul de Canaã) ela, mais uma vez, experimenta que “Deus ouve o grito do pequeno” (Gn 21,17): o grito que ela não teve coragem de ouvir. “E ouviu Deus a voz do menino, e bradou o anjo de Deus a Agar desde os céus, e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do menino desde o lugar onde está” (Gn 21,17). Mais uma vez Agar, esta mãe na beira da morte, ganha a estatura das grandes figuras do povo de Deus, capaz de reconhecer e acreditar no Deus que vê, Deus que ouve o grito, mesmo que seja o choro frágil de um menino que está morrendo de fome e de sede. Quem nos revela isso é Agar. Séculos mais tarde, essa verdade será assumida pelo Êxodo (2,22; 3,7), no relato do encontro de Moisés com Deus no deserto, ao redor de uma sarça. Gosto de pensar e afirmar que a memória da vida e da história de Agar resistiu às areias do tempo, à dureza de muitas opressões e, quando o povo está no sofrimento e na morte, aflora de novo: “Os egípcios nos maltrataram e nos afligiram e impuseram sobre nós uma dura servidão. Então clamamos a Iahweh Deus de nossos pais; e Iahweh ouviu a nossa voz e atentou para a nossa miséria e para o nosso trabalho e para a nossa opressão. E Iahweh nos tirou do Egito com mão forte e com braço estendido e com grande espanto, com sinais e com milagres” (Dt 26,6-8). Esta era a memória e motivação profunda que devia garantir uma nova sociedade (Dt 5,15) e que devia ser ensinada, de pai para filho, de geração em geração (Dt 6,20-24). Para que o povo não voltasse nunca mais à terra da servidão. O conhecimento de Iahweh veio de fora, veio das últimas, veio das e dos que foram excluídos da tenda de Abraão: veio de Agar que o transmitiu a Ismael. Antes de ser o Deus de Israel, Iahweh foi o Deus de Ismael e depois de Esaú, ambos afastados para longe para não atrapalhar a bênção dos eleitos; assim como foi afastado Madiã, o meio irmão de Ismael, filho de Abraão e de Quetura, outra concubina de Abraão (Gn 25, 1-6). E será justamente nas terras de Madiã, ao sul do deserto de Farã, que Moisés, escutará e aprenderá que o nome de Deus é o que Agar já tinha revelado: Deus que me viu, Deus que ouviu o lamento do menino: Javé! (Ex 3,6s). Mas não vamos antecipar a história e compactar os séculos. Quero ficar com Agar e deixar uma suspeita: quantas jovens mulheres, vendidas, escravizadas, usadas e descartadas Agar representa? As duas memórias que o livro nos traz, me fazem pensar que,