Mário – Já soube que o celibato não é um dogma original da Igreja Católica (Pedro era casado), mas se tornou regra no século XI. Por que a Igreja é tão renitente nesse ponto ?
João Tavares – Nunca foi dogma, não tem fundamentação natural, nem bíblica, nem filosófica nem teológica. Foi uma triste invenção da hierarquia da Igreja católica.A hierarquia (Igreja é o Povo de Deus, do qual também faz parte a hierarquia – cf. Lumen Gentium, cap. II) é tão renitente porque é bem mais fácil dirigir um padre ou um grupo de padres sem família do que um padre ou um grupo de padres com mulher e filhos: è uma questão estratégica, de organização e de poder. Inclusive econômico, para não ter preocupações com a manutenção da família do padre.
Se bem que são argumentos fracos. Há bons padres católicos de rito oriental, bons padres ortodoxos e bons pastores protestantes. E essas Igrejas lidam bem com esse “problema” das famílias dos seus ministros.
Há também, mais profundamente, um certo medo, ou mesmo aversão, à sexualidade, nunca bem resolvido pela hierarquia católica ocidental, desde suas origens muito ligada ao platonismo, onde o corpo é um mal e a alma é prisioneira do corpo do qual anseia por se libertar. Só se libertará pela ascese, subindo, degrau a degrau, para formas mais espiritualizadas de ser…
Mário – O que pensa o movimento dos Padres Casados sobre a exclusão das mulheres quando se trata do sacerdócio e da hierarquia eclesial ?
João Tavares – A maioria de nós pensa que já está na hora de a Igreja católica enfrentar com coragem este problema de deixar a metade de seus membros, as mulheres, que são as verdadeiras colunas das comunidades cristãs, mundo afora, sem direito igual ao dos homens, com se fossem seres humanos de segunda categoria.
Já pensou mulheres sacerdotisas, bispas e cardealas? Como a Igreja seria diferente? Com certeza não haveria essa imensa onda de pedofilia e de homossexualidade na hierarquia católica e nos colégios religiosos… E haveria muito mais bom senso, mais eficiência e muito mais ternura.
Não há argumentos bíblicos e teológicos sérios para deixar as mulheres fora do Sacramento da Ordem em todos os seus graus. Só teimosia de velhos homens (gerontocracia) com medo de perderem seu poder oligárquico até agora reservado ao gênero masculino.
Mário – O celibato não agrava a situação das mulheres no catolicismo, ao estigmatizá-las como fonte do pecado, a ponto de considerar que um padre não tem condições de exercer o sacerdócio “contaminado” pela presença conjugal de uma mulher ?
João Tavares – Já falei disso acima. Essa “pureza ritual” é coisa do Antigo Testamento. Jesus diz claramente que a pureza que importa é a do coração, das intenções, do amor ao próximo. Repetindo, a Igreja, sobretudo de Agostinho para cá, um donjuan mulherengo que depois se converteu, quando já era platônico, nunca mais fez as pazes ou soube lidar com simplicidade e naturalidade com a sexualidade.
Enquanto isso, e como consequência disso, o tsunami de homossexualidade e de pedofilia que vem arrasando a hierarquia católica. Males que sempre existiram, mas sempre foram muito bem abafados até quando, com os meios de comunicação atual, foi impossível continuar a encobri-los.
João Paulo II e o cardeal Ratzinger têm muita culpa nesse triste quadro, como acobertadores-mores. Bento XVI, quando não era mais possível esconder, tentou começar a consertar, mas já era muito tarde.
Mário – Um Papa latino-americano abre novas perspectivas para mudanças na IC em relação ao celibato e à exclusão das mulheres ?
João Tavares – Não necessariamente. Mas pode ser que esse papa Francisco, homem prático, pastor, muito sensível ao sofrimento dos pobres e de uma sólida formação espiritual e humana, se abra para esses dois graves e urgentes problemas. Esse papa sul-americano tem mais chances de ser sensível a isso do que um europeu. A sensibilidade humana aqui é bastante diferente da da Europa e da América do norte.
Quanto ao casamento dos padres antes da ordenação ou ao aproveitamento, na pastoral, dos atuais padres casados, o povo estaria bastante aberto para isso. O problema está na cabeça dos bispos (não todos!) e da Cúria romana.
Mário – E a atual situação (perda de fiéis, expansão de novas religiões, posições da IC se chocando com realidades sociais como conquistas femininas e dos LGBT) não seria uma pressão suficiente para tais mudanças ?
João Tavares – Se vai ser suficiente, não sei. Mas sou a favor da pressão popular na Igreja. Se bem que casamentos gays, por exemplo, a Igreja nunca vai aceitar. Mas pode e deve respeitar as leis dos países onde vive e não pensar que tem poder de impedir leis sobre esses assuntos. A Igreja não foi feita por Jesus Cristo para ser um Poder civil. Nem religioso, pois Jesus veio trazer o Serviço a quem precisa, não o Poder para dominar. Tanto fora como dentro da Igreja. E convida a Igreja a ser luz, sal e fermento no mundo, a partir da vivência real, pessoal e comunitária, da mensagem de Jesus.
A partir de Constantino, quando os bispos foram feitos príncipes e senhores de terras, castelos, etc., a Igreja fundada por Jesus, na sua hierarquia, se deixou seduzir pelo poder, pelas honras, pelos palácios, pelo luxo: ouro, mitras, báculos, roupas vistosas (e ridículas!), grandes anéis e cruzes peitorais de ouro… E ainda não desceu do pedestal. Em vez, de luz, sal, fermento, preferiu ser massa, poder, número, vaidade, grandes catedrais, dominadora de consciências…
Mário – Gostaria de contar um pouco da sua trajetória pessoal (quando e porque veio de Portugal ao Brasil, quando e como se deu a decisão de casar e deixar o sacerdócio, o que o levou ao movimento dos Padres Casados e o que espera ainda da Igreja Católica).
João Tavares – Vim para o Brasil aos 26 anos, já formado, para trabalhar na então Prelazia de Balsas, no sul do Maranhão. Na Congregação dos missionários combonianos. Lá passei 9 anos. Único português no meio de 30 italianos, único com formação durante o Concilio Vaticano II, por 5 anos, senti muita solidão intelectual e humana em geral. Percebi claramente que o bispo queria o nosso trabalho, pouco se importando com nossos problemas pessoais. O relacionamento com os colegas foi se deteriorando e, a um certo momento, não deu mais.
Conheci Sofia, minha esposa, em 1976, antes de a Congregação, sem me consultar, me destinar a trabalhar em Portugal. À Sofia, antes de partir, eu disse: Gosto muito de ti. Mas eu ainda não resolvi nada. Vou agora para a Europa e não te posso prometer nada. Fica livre.
Destinado a Portugal contra a vontade, ferido nos meus brios e na minha concepção de Pessoa Humana Livre e dona de sua História, resolvi assumir as rédeas da minha vida em minhas mãos e decidi ir a Roma falar com os superiores maiores.
Em Roma, nessa altura, em abril de 1977, foi a primeira vez que pensei na hipótese de vir a casar. Meu problema, nunca foi o celibato, mas o isolamento psicológico, a solidão… Para o celibato, nós tínhamos sido bastante bem formados e nunca foi um grande problema.
Alguns dos superiores em Roma me conheciam bem e me aconselharam a ir para Portugal, me aconselhar com algum colega amigo e ir pensando com calma.
Fiquei lá uns meses, mas não era isso o que queria, aos 36 anos. Depois de 10 anos de vida nos amplos sertões, tudo me parecia muito pequeno. Inclusive a cabeça dos padres e bispos portugueses. Era uma religião de manutenção do status quo, sem vida, sem elã… sem nada a construir…
Em setembro desse ano, voltei então a Roma e pedi, para ficar fora da Congregação uns 2 anos, para pensar melhor e me testar, pois eu amava muito o meu sacerdócio. Voltei então, como padre, para a arquidiocese de S. Luís, onde o arcebispo já antes me tinha convidado para trabalhar com ele.
Decidido a me manter com meu trabalho de professor, como tinha validado meu curso de Filosofia no Brasil, entrei para a Escola Técnica Federal e para a Universidade Federal do Maranhão.
Pensei e rezei muito, me aconselhei com colegas e amigos, vi que a vida de padre diocesano ainda era humanamente mais pobre do que a vida na Congregação até que, convencido de que Deus me criou para ser feliz e não para viver sempre tenso, em 1978, disse à Sofia que estava pronto para casar.
O que me levou ao Movimento dos padres casados, foi a necessidade de poder compartilhar tantos valores que tínhamos em comum, que são muitos. Em geral tivemos uma formação humana, intelectual e espiritual excelente. Coisa rara nos padres novos hoje.
O que espero da Igreja católica, melhor, da hierarquia católica? Que volte às raízes, ao Movimento de Jesus, que abandone de vez a doença crônica e grave do constantinismo, do Poder, da vaidade. E que aprenda a ser simples e autêntica no meio do Povo de Deus, de que ela faz parte e de que não é dona, mas servidora. Com palavras, vida e exemplos concretos. Com fez João XXIII e agora começa a fazer Francisco.
Seus dados familiares. Quantos filhos ? Casado desde quando ? Sempre atuou no Maranhão ??
João Tavares – Duas filhas e uma neta. Casado com Sofia, filósofa e teóloga como eu. Ambos aposentados da UFMA (área de Filosofia, onde lecionei Introdução à Filosofia, História de Filosofia, Deontologia, Estética e Ética). Casado desde 1979. Cheguei ao Brasil em 1967. Sempre trabalhei no Maranhão, 11 anos no sul do Estado, o resto na capital, desde 1978.
(Entrevista de João Tavares a Mario Osava, da Inter Press Service – www.ips.org ) – mosava@uol.com.br
25/03/20132
Respostas de 3
Parabéns ao Sr. João Tavares pela belíssima entrevista!!!
Fico impressionado e até mais animado, quando vejo que, em meio a tantas reflexões pobres e sem perspectivas, ainda existem pessoas como ele, com esta lucidez e com palavras tão acertadas.
Deus o ilumine sempre!
Um fraterno abraço, deste irmão que ainda procura um lugar ao sol, depois de ter deixado também o ministério, em Belo Horizonte.
A entrevista é muito boa, os argumentos são profundos e claros.
Vejo, porém, uma pequena nesga. A influência da teologia Tradicional. Como eu, você teve a felicidade de se inebriar com a teologia do Vaticano II, já que tivemos a alegria de viver neste período. Contudo tudo o que vinha de lá não podia deixar de se mesclar com a sistematização tridentina e do Vaticano I.
É importante analisar o que significa a profissão de fé: creio na Igreja, una santa,católica e apostólica. AÍ NÃO CONSTA O ADJETIVO ROMANA.
A Lumen Gentium diz que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica. Não diz que a Igreja Católica romana é a Igreja de Cristo.
”Esta é a única Igreja de Cristo que no símbolo confessamos, una santa, católica e apostólica,, que nosso Salvador depois de sua ressurreição entregou a Pedro para apascentar(Jo 21,17) e confiou a ele e aos demais apóstolos para propagar e reger(Mt 28, 18 ss), levantando-a para sempre coimo coluna e fundamento da verdade(1 Tim 3,15).Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, SUBSISTE na Igreja Católica governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem VÁRIOS elementos de santificação e verdade”. ( Lumen Gentium, Cap. 1, número 8 – Documento Pontifícios 149 – Ed. Vozes – 7.a edição – 1967)
Esta história de ordenação, de sacramento da ordem é um processo de organização inerente à Igreja Romana ou ao período imperial ( Constantino, Teodósio, Carlos Magno) . É uma disciplina apenas, assim como é uma disciplina a exclusão das mulheres.
O que complexifica é a mistura do poder religioso com a organização ou com os aspectos temporais. Então aparece o que , parece que a expressão é de Harvey Cox, quando fala da secularização em livro da década de 70, chama de “religião”, algo muito diferente de fé, como João Tavares bem tem salientado em seus comentários.
A religião sacraliza o passado enquanto a fé nos projeta para o futuro. A fé liberta( Carta aos Gálatas). Religião é mais ou menos como o comportamento dos fariseus, tão censurados por Jesus.
O cerne do problema é a “eclesiologia”, como sua entrevista responde no seu transcorrer. Mas estes aspectos discutíveis( sacerdócio, sacerdócio de mulheres, celibato) são decorrentes da religião, dos compromissos temporais e espaciais que envolveram a Instituição Igreja romana, válidos em algum tempo, mas que foram sacralizados e tornados obrigatórios como se fossem revelados para todos e para sempre.
Ao João Tavares: Parabéns pelo seu trabalho.
Olá, João Tavares!
Alegria e Fé!
Expor tanto o mundo interior é para os determinados, corajosos, com sede de ser feliz e luta pelos objetivos com fé.
Bom saber um breve parágrafo de muitos capítulos da sua vida em família. A Sofia foi um grande sinal de Deus no momento certo.
De todo o texto, no aspecto pessoal, SER FELIZ foi imperante. Na relação catolicismo e fé costumo falar que precisamos, primeiramente, ter FÉ, ver e crer em Jesus em todos os tempos e espaços; depois lembrarmos que a partilhamos em comunidades e uma delas, importante, a Igreja, cheia de pecados, erros, limites, com muitos segmentos conservadores (que aborrecem e desanimam na fé!) e muita gente dando o que falar.
Se dependesse somente dos fiéis leigos a Igreja Católica já teria repensado muitas práticas, por exemplo, o celibato. Há movimentos (ainda tímidos), aqui, ali e acolá, sobre esse ponto, tanto quanto para abertura de ordenação sacerdotal para mulheres, debates com os quais comungo.
Já há iniciativas para a discussão na América Latina, Europa, América do Norte… com a participação de Padres, Padres casados, Freiras e leigos. Onde vai chegar? O tempo dirá… O importante é dar o primeiro passo. Já houve a largada…e você está nessa estrada.
Parabéns pela sua história e sinceridade de fé. Se não mais amasse a Igreja Católica não continuaria a estar em dia sobre ela.
Deus abençoe todos em família: especialmente esposa Sofia, filhas e netinha.