Francisco contra a pedofilia: a suspeita

É difícil dizer que nada foi feito, mas também doloroso constatar que o essencial ainda está por realizar.

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René Pujol, 10/03/2018 – Foto: patheos.com

Tradução: Orlando Almeida

“A questão da pedofilia corre o risco de tornar-se um espinho no pontificado de Francisco” – profetizava o vaticanista italiano Marco Politi num artigo de 3 de março de 2016. (1) Quase dois anos depois, os fatos parecem dar-lhe razão.

 

A gestão calamitosa do dossiê Barros, durante a recente viagem do Papa Francisco ao Chile, marcou o limite do discurso de “tolerância zero” que permanece no entanto, oficialmente, como a linha do Vaticano.

E a não recondução, a seu pedido, da psiquiatra infantil francesa Catherine Bonnet como membro da Comissão pontifícia encarregada de combater a pedofilia, coloca mais uma vez em evidência as fraquezas ou a paralisia desta estrutura.

Ao ponto de que já está posta a questão de saber se essas disfunções no mais alto nível da hierarquia católica

  • estão ligadas unicamente às resistências que o papa Francisco estaria encontrando à sua determinação de lutar contra a pedofilia na Igreja
  • ou se ele próprio, por razões difíceis de entender, não seria objetivamente se não o cúmplice disso, pelo menos o espectador resignado.

Palavras de vítimas contra palavras de bispos

Em 2011, o padre Fernando Karadima, figura de proa do catolicismo chileno, foi considerado culpado de abusos sexuais de adolescentes numa opulenta paróquia de Santiago entre os anos 1980 e 1990. Ele foi então condenado tanto pela justiça chilena como pelo Vaticano.

Mas algumas das jovens vítimas do padre, entre as quais Juan Carlos Cruz, também acusam desde 2005, por cumplicidade, o padre Juan Barros, apresentado como “o braço direito” de Karadima que, segundo eles, “assistia aos abusos sexuais”.

Além disso, quando em 2015 este mesmo Juan Barros é nomeado bispo de Osorno, eles escrevem ao Papa Francisco para esclarecer as suas acusações. Eles enviam a ele uma carta por intermédio do Cardeal O’Malley, membro do C9 (2) e Presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, que lhes assegurará, posteriormente, tê-la entregue pessoalmente.

Mas o Papa Francisco

  • não só não volta atrás sobre a nomeação,
  • mas, dois anos depois, interpelado vivamente  pelos fiéis sobre este caso durante a viagem ao Chile,
  • toma a defesa do bispo de Osorno: “Não há a menor prova contra ele, tudo não passa de uma calúnia”.

Uma afirmação no mínimo incompreensível e ofensiva para com as vítimas, que será abertamente criticada pelo próprio Cardeal O’Malley. De modo que, no dia 21 de janeiro de 2018, no avião que o traz de volta a Roma, no final de sua viagem,

  • o Papa esboça uma espécie de ‘mea culpa’
  • embora reafirmando suas dúvidas sobre a culpabilidade real de monsenhor Barros.

Alguns dias mais tarde, decide enviar ao Chile, para ouvir as vítimas, monsenhor Charles Scicluna, arcebispo de Malta, presidente do Colégio especial de apelação em casos de abusos sexuais de menores por clérigos, dentro da Congregação para a Doutrina da Fé. (3)

Foi ele quem, em 2004, teve que lidar com o caso Maciel, o fundador dos Legionários de Cristo, destituído de qualquer cargo desde 2006, mas cuja culpa não foi oficialmente reconhecida pelo Vaticano senão em 2010… dois anos depois da sua morte!

Temos aí que o caso chileno veio acrescentar-se a uma série de fatos recentes que reforçam a suspeita acerca do Vaticano e do próprio Papa.

Uma demissão que se segue a outras duas

Em 17 de fevereiro, em Roma, foi tornada pública a composição da nova Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, presidida, como dissemos, pelo Cardeal O’Malley. Uma renovação marcada pela saída, a seu pedido, da psiquiatra infantil francesa Catherine Bonnet.

Numa entrevista a L’Express, ela explica:

“Eu pleiteei a título pessoal que os bispos e os superiores das ordens religiosas tivessem a obrigação de comunicar suspeitas de violências sexuais contra menores às autoridades civis”.

Ela acrescenta que também tinha pedido “a quebra do segredo pontifício” nos casos de violências contra menores. Neste tipo de casos, esta disposição impede efetivamente que a justiça civil tenha acesso aos dossiês mantidos pelo Vaticano, obrigando-a na maioria das vezes a retomar do zero as investigações…

Não tendo obtido atendimento nestes dois pontos,

  • ela preferiu renunciar
  • como tinham feito, antes dela e por razões semelhantes, Marie Collins e Peter Saunders, membros da Comissão, eles próprios vítimas de padres pedófilos.

Uma recusa obstinada de olhar o passado

Nesta luta travada oficialmente contra a pedofilia, parece que a “tolerância zero”, desejada por Bento XVI e depois retomada pelo Papa Francisco, se defronta com muitos obstáculos,

  • tanto na Cúria
  • quanto em alguns episcopados.

Muitos gostariam de limitar a ação da Igreja

  • unicamente à prevenção de novos casos de pedofilia;
  • sem denunciar os crimes passados ​​ou presentes de que possam ter conhecimento.

Mas como pode alguém se precaver para o futuro quando se recusa obstinadamente a olhar para o passado para tentar entender as suas causas profundas e daí tirar lições?

 François face à la pédophilie : le soupçon

 Inumeráveis reportagens publicadas pela mídia ilustram a imaturidade de alguns clérigos diante da sexualidade humana, que os torna incapazes de diferenciar as relações “normais” com adultos que as aceitam livremente, dos relacionamentos forçados com crianças. –  Foto: René Pujol

 

Da “recusa de acreditar” à escolha da “tolerância zero”

Mas olhar o passado, no que diz respeito ao poder central da Igreja Católica, é

  • continuar a questionar-se sobre os silêncios e a inação de João Paulo II, notadamente no que se refere aos crimes do padre Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo.
  • E se espantar com a rapidez com que a sua beatificação e depois a sua canonização vieram oportunamente lançar um véu pudico sobre o que ficará sendo uma das maiores falhas do seu pontificado.

João Paulo II e Pe. Marcial Maciel – apesar de muitas denúncias, o papa protegeu o fundador dos Legionários de Cristo até ao fim impedindo que fosse investigado – Foto: fratresinunum.com

 

Será necessário, como sugeria Lucetta Scaraffia, editorialista do Osservatore  Romano, na recente edição de Arte (4),

  • atribuir a “recusa de acreditar nisso” por parte do papa polonês à experiência, que era a sua, de denúncias caluniosas contra padres sob os regimes comunistas?
  • Ou explicar esta cegueira pela simples recusa de alguns, no Vaticano, de condenar abertamente o fundador de um poderoso movimento católico cuja generosidade financeira também beneficiava as “obras” do Santo Padre?

Olhar o passado é, obviamente,

  • tomar nota da determinação do Papa Bento XVI de desencadear contra a pedofilia a luta negligenciada pelo seu antecessor.
  • Mas é também destacar que mesmo sancionado, o padre Maciel nunca foi objeto de um processo canônico, sendo simplesmente convidado a “retirar-se a uma vida de oração e penitência”, o que, aparentemente, não o impediu de modo algum de “continuar a viajar e a levar a boa vida até à sua morte”. (5)

Uma atitude que se reencontra, mais tarde, na gestão do Caso Chileno onde “em vez de expulsar Karadima da instituição católica e enviá-lo aos tribunais, lhe foi pedido para se retirar para um convento, com algumas freiras para cuidar dele”. (6)

Sem mencionar a obstinada recusa do cardeal Ratzinger depois tornado papa, de nunca se encontrar com as vítimas do padre Maciel, inclusive durante a sua viagem ao México.

 

Quando Francisco cria a confusão

Olhar para um passado mais recente

  • é ficar atônito com a benevolência do Papa Francisco em relação a certos prelados envolvidos em vários casos, entre os quais o Cardeal Pell, um assessor próximo, membro do C9, acusado pela justiça australiana.
  • É interrogar-se sobre a sua decisão de reintegrar ao clero católico Don Mauro Inzoli, figura histórica do poderoso movimento Comunhão e Libertação, mesmo tendo ele sido reconhecido culpado de abusos sexuais contra menores de idade… antes de reduzi-lo ao estado laical dois anos depois.
  • É tomar nota do fato de que, segundo seus colaboradores próximos, ele se encontra regularmente com vítimas de abusos sexuais… exceto com as do padre Preynat, agrupadas na associação La Parole Libérée [A Palavra Liberada], ou as do padre Maciel e do padre Karadima quando das suas viagens ao México e ao Chile.

Como se fosse preciso diferenciar as “boas” vítimas – discretas – que têm o direito à compaixão da Igreja, das “más” – que optaram por falar – e portanto aquelas, “por quem vem o escândalo” *.

  • É, por fim, tentar entender por que o Papa Francisco, que criou em 2014 a Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, não julgou útil encontrar-se com os membros desta comissão uma única vez durante três anos... ao passo que eles tinham, sem qualquer dúvida, coisas para lhe dizer pessoalmente.

Isto tem servido para alimentar a suspeita de que defende a “tolerância zero” mas continuando a proteger os pedófilos e os seus cúmplices.

Com esta última pergunta: por quê?

  • Será preciso incriminar como causa a recusa de colaboração de uma parte da Cúria e de alguns episcopados, notadamente o italiano?
  • Será preciso questionar a presença, no C9 – ao lado do Cardeal O’Malley, “reconhecido” campeão da luta contra a pedofilia – de outros conselheiros, como os cardeais  Pell e Errazuriz (7), implicados pessoalmente em apoios indesculpáveis a predadores pedófilos?
  • Será preciso ir mais longe e, como sugerem alguns, imaginar que opositores da primeira hora do Papa Francisco possam, cinicamente, ter escondido dele o passado ‘sulfuroso’ [venenoso, demoníaco] deste ou daquele seu novo colaborador que acabara de escolher para pô-lo mais em dificuldade no dia em que o escândalo estourasse?

Ou devemos concluir simplesmente, com base nestes passos em falso, que, afinal, a luta contra a pedofilia não seria uma prioridade real para ele?

 

A Igreja está pronta para a verdadeira mudança?

A menos que ele esteja simplesmente ciente de ter subestimado as convulsões culturais que implicaria para a Igreja a simples prevenção de novas derivas pedófilas.

Inumeráveis reportagens publicadas pela mídia ilustram a imaturidade de alguns clérigos diante da sexualidade humana, o que, no caso de um descumprimento do seu dever de continência, os torna incapazes

  • de diferenciar as relações “normais” com adultos que as aceitam livremente
  • dos relacionamentos forçados com crianças.

E isto, ao mesmo tempo em que se continua a dar como exemplos movimentos ou dioceses onde a formação dos sacerdotes se baseia, precisamente, numa “retirada do mundo” com a justificativa de prepará-los melhor para enfrentar mais tarde as seduções…

Inúmeras pesquisas põem em evidência, nestes assuntos,

  • uma visão sagrada e absoluta da autoridade ligada ao sacerdócio.
  • E isto, exatamente quando jovens sacerdotes parecem tentados a encontrar aí uma forma de identidade.

Muitos bloqueios derivam da prática do sigilo nos procedimentos canônicos, prática justificada pelo desejo de proteger as pessoas. E isto, mesmo no caso de, devido a esta opacidade, muitas vítimas verem negado um reconhecimento e uma reparação justas pelos crimes que sofreram.

Mas a Igreja, está ela pronta – e capaz – de repensar ao mesmo tempo

  • a sua visão da sexualidade,
  • a sua concepção da autoridade,
  • a sua prática de segredo?

 

Cabe ao povo cristão encarregar-se desta luta

Uma recente entrevista da BBC com Juan Carlos Cruz, acusador do bispo Barros no caso chileno, termina com esta pergunta: “Com tudo o que lhe aconteceu, você deixou a Igreja Católica? Você perdeu a fé?”

Eis a resposta dele:

“Eu continuo sempre católico. Vou à missa todos os domingos. Amo a minha Igreja. Tenho grandes amigos padres e sei que há bem mais padres bons do que maus padres. Não deixarei que essas pessoas me façam perder a fé em Deus”.

Na sua encíclica Laudato Sì, o Papa Francisco analisa que a necessária revolução ecológica

  • se defronta hoje com o imobilismo dos Estados e das organizações internacionais,
  • comprometidas com interesses políticos assim como financeiros.

Consequentemente, diz o papa, cabe ao povo encarregar-se diretamente desta luta.

Ousemos fazer este paralelo:

  • a luta contra a pedofilia na Igreja hoje parece defrontar-se com o imobilismo da própria instituição, comprometida com outras formas de interesses tanto políticos como financeiros. (8)
  • Compete, portanto, ao povo cristão assumir também esta luta.

Alguns católicos, em total fidelidade ao papa Francisco, decidiram enfrentar as duas lutas simultaneamente.

 

Notas:

  1. Marco Politi é, entre outras coisas, o autor de ‘François parmi les loups’ [Francisco entre os lobos],Ed. Philippe Rey 2015, 288 p.
  2. Título dado ao Conselho dos Cardeais nomeado pelo Papa Francisco para aconselhá-lo sobre as reformas a serem realizadas na Igreja.
  3. No momento em que escrevo esta nota, a imprensa informa que o bispo Scicluna precisou ser hospitalizado em Santiago.
  4. L’Eglise face aux scandales pédophiles [A Igreja diante dos escândalos pedófilos], Arte 20 de fevereiro de 2018.
  5. Pedro Salinas, L’heure de Barros est-elle arrivée ? [A hora de Barros chegou?], artigo de 9 de fevereiro de 2018 traduzido por Xavier Léger e publicado no site ‘L’envers du décor’.
  6. ibid.
  7. Ex-arcebispo de Santiago do Chile, foi um forte defensor do padre Karadima e hoje do bispo Barros.
  8. O filme divulgado por Arte destaca, em particular, a recusa do episcopado americano, em alguns Estados, de rever para mais os prazos de prescrição para crimes de pedofilia, com medo de que novos casos, hoje prescritos, sejam reabertos, o que poderia custar à Igreja centenas de milhões de dólares de indenização a ser pagos às vítimas. Nesta luta, o melhor aliado dos bispos parece ser… o lobby dos seguros.

 

Resultado de imagem para René Poujol

 

René Poujol

Fonte: http://www.renepoujol.fr/francois-face-a-la-pedophilie-le-soupcon/#

 

 

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* Referência a Mt 18, 5-9: (“… mas ai daquele por quem vem o escândalo”.  Jesus, obviamente, não estava se referindo aos que denunciam o mal feito, mas aos que o praticam. Se estivesse falando dos que o denunciam, estaria falando contra si mesmo, pois constantemente denunciava os erros e hipocrisias dos fariseus.

– “Par qui le scandale arrive” [‘por quem o escândalo vem’] é também a versão francesa do filme ‘Home from the Hill’ – “Herança da Carne” (no Brasil), ‘A Casa da Colina (em Portugal) – filme americano (1960), dirigido por Vincente Minnelli.

OBS.: (Este artigo foi reproduzido, por link, no site das notícias internacionais sobre a Igreja e o

 

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