UMA CARTA ENVIADA A ROMA 18 ANOS ATRÁS E NUNCA RESPONDIDA

Nunca houve reconciliação com os sacerdotes casados“. “Humilhou-se e insultou-se o grupo de pessoas que pediram a dispensa do celibato

Josemari Lorenzo, 27 de dezembro de 2017

O celibato visto por Cortés – José Luis Cortés

“É iminente a canonização de Paulo VI. Enviamos o nosso veto, por parecer-nos que na Sacerdotalis Coelibatus  há insultos a nós que nos secularizamos” 

Tradução: Orlando Almeida

(Josemari Lorenzo).- Esta carta foi enviada ao cardeal presidente do Ano Jubilar 2000 [Roger Etchegaray, basco] pedindo que a hierarquia se reconcilie com os sacerdotes casados. Passaram-se quase 18 anos e não obtivemos nenhuma reconciliação: Somente o Papa Francisco, no ano da misericórdia, encontrou-se com três famílias de padres casados. Mas esse gesto não pode ser considerado como de desagravo, mas de misericórdia.

 

Exmo. Senhor:

Em diferentes ocasiões, os mais altos representantes hierárquicos da Igreja Católica pedem perdão por questões passadas e reabilitam figuras históricas. Pensamos que muitas pessoas ficarão comovidas com esses gestos.

Pareceria incongruência o pedir perdão e reabilitar defuntos históricos e não fazê-lo com seres vivos, nós que temos sofrido por causa de leis canônicas. Como presidente da Associação dos Sacerdotes Casados ​​de Espanha (ASCE), exponho o seguinte, com o objetivo de que os nossos altos representantes da Mãe Igreja deem um passo de reconciliação com os sacerdotes secularizados.

Segundo nosso entendimento, foi humilhado e até insultado o grupo de pessoas que pediram a dispensa do celibato. E apresentamos como prova desta afirmação a encíclica assinada pelo papa  Paulo VI, em 24 de junho de 1967. Transcrevo as frases que, na nossa opinião,  são injuriosas para os dispensados.

Foto: Paulo VI, beatificado

No número 83 da Encíclica “Sacerdotalis coelibatus lê-se:

“O nosso coração volta-se com amor paterno, com ansiedade e grande mágoa para aqueles infelizes, mas sempre muito queridos e saudosos irmãos no sacerdócio, que, mantendo impresso na alma o caráter sagrado que lhes foi conferido na ordenação sacerdotal, foram ou são desgraçadamente infiéis às obrigações assumidas quando se consagraram ao serviço do Senhor.(1)

Estas frases

  • são humilhantes
  • e insultantes para aqueles de nós que pedimos oportunamente a dispensa,
  • além de injustas.

Chamar alguém de ‘desgraciado’(2) ,  na língua espanhola, é considerado um verdadeiro insulto. Algo semelhante a chamar alguém de infiel. Além disso, se na mesma Encíclica se reconhece em parágrafos anteriores a deficiente formação psico-sexual dos métodos daquele tempo, é ainda mais vergonhoso empregar tais qualificativos para aqueles “amadíssimos e queridíssimos irmãos nossos no sacerdócio.”

 

Acrescenta, no nº 84, as chagas que são causadas à Igreja pela “defecção” dos sacerdotes que pedem dispensa. A palavra ‘defección’ significa, segundo o dicionário da Real Academia Espanhola “ação de separar-se com deslealdade da causa ou grupo a que pertenciam”.

É injusto chamar desleal uma pessoa

  • por ter dado uma nova orientação à sua vida,
  • depois de pedir autorização à legítima autoridade
  • e depois de comprovar a sua impossibilidade de viver no celibato,
  • e especialmente levando em conta a formação deficiente daquela época para o desenvolvimento psico-sexual.

O No. 85 contrapõe aos que pedem dispensa “o grande número de sacerdotes sãos ​​e dignos”.

Indiretamente, nós aparecemos como insanos e indignos. Sim, é verdade que somos todos indignos do sacerdócio, todos, dada a sua grandeza, mas em caridade

  • não se devem discriminar a uns como dignos, porque continuam dentro do clero
  • e a outros, como indignos, por terem pedido e obtido dispensa do celibato.

O No. 86 [na verdade No.87] diz: “…e só quando o caso não apresenta nenhuma solução possível, permite que o infeliz ministro seja demitido do ministério que lhe tinha sido confiado”.

É um novo insulto.

O No. 87 [88] diz: “… satisfaz algumas vezes os pedidos de dispensa, mas não sem acompanhá-la da imposição de obras de piedade e de reparação, a fim de que permaneça no filho, infeliz [‘desgraciado’] mas sempre caro, um sinal salutar da dor maternal da Igreja…”.

Esta frase, além de insultante, soa como sarcasmo. “Infeliz [‘desgraciado’], mas sempre querido”. Dá a impressão de humilhar até ao extremo aquele a quem beneficia

O No. 88 [89] diz: ” Tal disciplina, ao mesmo tempo severa e misericordiosa… contribuirá sem dúvida para confirmar os bons sacerdotes no propósito de vida intemerata e santa, e será aviso…” Que triste!

Além de todos esses insultos e falsas misericórdias, a encíclica, a nosso ver, contém uma grave incongruência teológica. Do ponto de vista dogmático, é mais fácil manter a lei do celibato “sem fissuras” do que proibir por toda a vida a uma pessoa o exercício de um sacramento. Todo sacramento dá direito ao uso o mesmo. Não podemos conceber um casamento em que se proíba o relacionamento conjugal por toda a vida, ou uma pessoa  batizada  a quem se proíba participar de funções religiosas por ter recebido outro sacramento, ou para que possa recebê-lo.

Com a Ordem Sacerdotal não pode haver exceção.

E não cabe argumentar que

  • quem pediu  foi quem renunciou ao exercício do sacerdócio,
  • uma vez que ele não teve liberdade: se não renunciava, não se lhe concedia a dispensa.
  • Além disso, nunca pode alguém renunciar ao direito de uso de um sacramento por toda a vida.

Embora não disponhamos de documentos, temos várias notícias de que,

  • em diferentes ocasiões,
  • várias hierarquias eclesiais nos compararam a “Judas” e nos consideraram “traidores”.

Levando tudo isso em consideração, rogo a S. E. que faça as gestões oportunas  para uma reconciliação com este grupo. Acreditamos que será justo e equitativo. Saúda S. E. ‘afectissimo’. Irmão em Cristo

 

José María Lorenzo Amelibia enviou esta carta como presidente da Associação dos Sacerdotes Secularizados da Espanha ASCE

_______________________________

 

Nota final: Esta carta nunca foi respondida, nem levada em conta para nada. Nunca houve reconciliação por parte da hierarquia para nós. A canonização de Paulo VI é iminente. Enviamos o nosso veto, por parecer-nos que em ‘Sacerdotalis Coelibatus’  há insultos a nós que nos secularizamos. Reconheceu-se que, pelo menos na língua espanhola, a palavra “desgraciados” é considerada  insulto. Aí está tudo.

(1) Citação conforme versão oficial em português. http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_24061967_sacerdotalis.html

(2)  ‘Desgraciados’. É realmente esta a palavra usada na versão espanhola. Nas outras versões os termos usados são: ‘infelices’ na latina, ‘infelici’ na italiana; ‘infelizes’ na portuguesa, ‘infortunés’ na francesa e ‘unfortunate’ na inglesa.

 

Imagem relacionada

 

José María Lorenzo Amelibia

Fonte: http://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2017/12/27/josemari-lorenzo-nunca-ha-habido-reconciliacion-con-los-sacerdotes-casados-iglesia-religion-dios-jesus-papa-celibato.shtml

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LEIA MAIS, ABAIXO

  1. A íntegra da parte citada da Encílica : Parte Segunda, Item III da Encíclica Sacerdotalis Coelibatus. Sublinhadas em vermelho as frases criticadas pelo autor e outras típicas da linguagem infeliz a ofensiva de Paulo VI
  2. Nota da Redação

 

III. DESERÇÕES DOLOROSAS

Verdadeira responsabilidade

83. Neste momento, o nosso coração volta-se com amor paterno, com ansiedade e grande mágoa para aqueles infelizes, mas sempre muito queridos e saudosos irmãos no sacerdócio, que, mantendo impresso na alma o caráter sagrado que lhes foi conferido na ordenação sacerdotal, foram ou são desgraçadamente infiéis às obrigações assumidas quando se consagraram ao serviço do Senhor.

A sua deplorável situação e as conseqüências particulares ou públicas que dela derivam, levam alguns a duvidar se não será precisamente o celibato responsável de algum modo por tais dramas e tais escândalos que afligem o Povo de Deus. Na realidade, a responsabilidade não recai sobre o próprio celibato, mas sobre o fato de se não terem avaliado a tempo de modo satisfatório e prudente as qualidades do candidato ao sacerdócio, ou ainda, sobre a maneira como os ministros sagrados vivem a sua consagração total.

Motivos para as dispensas

84. Sendo muito sensível à triste sorte destes seus filhos, a Igreja julga necessário fazer todo o esforço para prevenir ou cicatrizar as chagas que estas defecções lhe trazem. Seguindo o exemplo de nossos imediatos antecessores de saudosa memória, também nós quisemos e determinamos que a investigação das causas que têm por objeto a ordenação sacerdotal fosse ampliada a outros motivos gravíssimos que não estão previstos na legislação canônica atual (cf. CIC, can. 214), motivos que podem dar ocasião a dúvidas reais e fundadas sobre a plena liberdade e responsabilidade do candidato ao sacerdócio e sobre a sua idoneidade para o estado sacerdotal, de modo a libertarem-se todos aqueles que um processo judiciário cuidadoso demonstre não serem realmente aptos.

Justiça e caridade da Igreja

85. As dispensas que vêm a ser concedidas, numa percentagem verdadeiramente mínima em relação ao grande número de sacerdotes sãos e dignos, ao mesmo tempo que provêem com justiça à saúde espiritual dos indivíduos, demonstram também a solicitude da Igreja pela defesa do celibato e pela fidelidade integral de todos os seus ministros.

Ao fazer isto, a Igreja procede sempre com amargura no coração, especialmente nos casos particularmente dolorosos nos quais a recusa de levar dignamente o suave jugo de Cristo se deve a uma crise de fé ou a fraquezas morais, e é por isso, muitas vezes, responsável e escandalosa.

Doloroso apelo

86. Oh, se estes sacerdotes soubessem quanta dor, quanta desonra, quanta perturbação causam à santa Igreja de Deus, se refletissem na solenidade e beleza dos compromissos assumidos, e nos perigos que enfrentarão nesta vida e na futura, seriam mais cautelosos e reflexivos ao tomar suas decisões, mais solícitos na oração e mais lógicos e corajosos em prevenir as causas do seu colapso espiritual e moral.

Interesse materno da Igreja

87. A Igreja volta-se com particular interesse para os casos dos sacerdotes ainda jovens que tinham iniciado com entusiasmo e com zelo a sua vida de ministros de Cristo. Não será talvez fácil que hoje, no meio da tensão dos deveres sacerdotais, tenham eles momentos de desconfiança, de dúvida, de paixâo, de loucura? É por isso que a Igreja deseja que se tentem, sobretudo nestes casos, todos os meios persuasivos, para levar o irmão vacilante à calma, à confiança, ao arrependimento, à perseverança, e só quando o caso não apresenta nenhuma solução possível, permite que o infeliz ministro seja demitido do ministério que lhe tinha sido confiado.

Concessão de dispensas

88. No caso em que ele demonstrasse ser irrecuperável para o sacerdócio, mas apresentasse ainda algumas boas e sérias disposições para viver cristãmente como leigo, a Sé Apostólica, estudadas todas as circunstâncias de acordo com o Ordinário ou o Superior Religioso, deixando ao amor vencer a dor, satisfaz algumas vezes os pedidos de dispensa, mas não sem acompanhá-la da imposição de obras de piedade e de reparação, a fim de que permaneça no filho, infeliz mas sempre caro, um sinal salutar da dor maternal da Igreja e uma lembrança mais viva da necessidade comum da divina misericórdia.

Encorajamento e aviso

89. Tal disciplina, ao mesmo tempo severa e misericordiosa, inspirando-se sempre na justiça e na verdade, em suma prudência e reserva, contribuirá sem dúvida para confirmar os bons sacerdotes no propósito de vida intemerata e santa, e será aviso aos aspirantes ao sacerdócio, para que, sob a sábia direção dos educadores, avancem para o altar com plena consciência, com sumo desinteresse, com desejo ardente de corresponderem à graça divina e à vontade de Cristo e da Igreja.

Consolações

90. Não queríamos, enfim, deixar de dar graças ao Senhor, com profunda alegria, ao reconhecermos que muitos daqueles que infelizmente foram infiéis por algum tempo às suas obrigações, reencontraram, com a graça do Sumo Sacerdote, o caminho justo e, para alegria de todos, voltaram a ser ministros exemplares, depois de terem recorrido com boa vontade comovedora a todos os meios idôneos e principalmente à intensa vida de oração, de humildade e de contínuos esforços sustentados pela freqüência do sacramento da penitência.

Parte Segunda, Item III da Encíclica Sacerdotalis Coelibatus.

http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_24061967_sacerdotalis.html

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Nota da Redação:

Destaquei em vermelho as vezes em que Paulo VI usou as palavres triste e infeliz, em ralação ao padre que deixou o ministério. E também outras frases pessimistas

Nos dias de hoje, perante o tsunami da pedofilia e dos abusos de padres com jovens, homens e mulheres, Paulo VI não teria como manter o que afirma nessa Encíclica. Parece mesmo que ele vivia num mundo encantado e irreal.

Afirmar que: “As dispensas que vêm a ser concedidas, numa percentagem verdadeiramente mínima em relação ao grande número de sacerdotes sãos e digno…” , ou é má fé ou é desconhecimento dramático dos números de pedidos de dispensaPois, segundo o Anuário Pontifício, foram concedidas cerca de 65.000 dispensas. e a grande maioria no tempo dele, pois João Paulo II, logo que assumiu, travou fortemente a concessão de dispensas.

Mas sabemos, com certeza, que cerca de outro tanto, ou mais, nunca pediram dispensa, mas deixaram o ministério. É por isso que falamos em cerca de 150.000 sacerdotes que deixaram o ministério. Ou seja, cerca de um terço do total do clero que permaneceu.

Pessoalmente, discordo fortemente de muitas das afirmações de Paulo VI nessa Encíclica e de muitos dos pressupostos sobre os quais ele se baseia. Frutos da grande solidão em que ele sempre viveu e da falta de real contato com o povo de Deus, pois desde muito novo foi burocrata no Vaticano e, só já bem tarde, foi arcebispo de Milão. portanto, com muito pouco contato com as bases da Igreja, que é onde labuta a maioria dos padres.

Mas devo confessar que gostei de algumas análises dele no princípio da Encíclica.

Só que o seu foco não é o bem dos padres reais, como pessoas que têm o direito de se realizar e ser felizes como qualquer pessoa humana. Mas sim o padre ideal que se sacrifica até ao heroísmo pela Igreja, mesmo que à custa da sua integridade de ser humano feliz e realizado. Alguns conseguem e são felizes e excelentes padres que irradiam vida, que estão em Deus e levam a Deus.

Mas outros, bastantes, não conseguindo o ideal almejado, se entregam ao álcool, à ganância, a uma vida fútil de playboy, à vaidade da aparição na mídia e em shows, como padre-cantor ou, pior ainda, ao sexo hétero ou homossexual. quando não efebofilia ou à pedofilia. Os padres não são só ou sobretudo meios para o serviço da Igreja, mas pessoas humanas que precisam ser muito bem preparadas para uma eficiente pastoral do séc. XXI e muito bem acompanhadas no exercício do ministério. O primeiro dever do bispo é cuidar bem dos seus padres.

João Tavares – Editor

 

 

 

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