“TERÁ FRANCISCO TEMPO PARA COMPLETAR A SUA PRIMAVERA?”
José Manuel Vidal 17 /12/17
Foto: O Papa sopra as velas de um bolo de aniversário
“Está ativando uma Igreja desclericalizada, sinodal e corresponsável”. Questiona os fundamentos do poder político-econômico-financeiro mundial, traz consolação aos empobrecidos e aponta o caminho da esperança para aos que sofrem
Tradução: Orlando Almeida
Faz quatro anos e nove meses que ele chegou ao sólio pontifício. Para dar à Igreja um banho de Evangelho. Para retornar às fontes, para recuperar as raízes. Para regressar ao estilo da Igreja primitiva, na qual se distinguiam os cristãos pelo “vede como eles se amam”. Francisco está colocando em primeiro lugar, antes de tudo e sobre tudo, o Evangelho e, depois a doutrina. Primeiro, a misericórdia, a ternura e os pobres.
Uma tarefa quase ciclópica, porque a poeira dos séculos acumulada na Igreja é muita. E as resistências às mudanças, enormes em uma instituição pesada e paquidérmica. Terá Francisco tempo para completar a sua primavera? Hoje, 17 de dezembro, o Papa completa 81 anos de idade. Uma idade avançada, embora, por enquanto, não se saiba que tenha doenças graves e ele continue mantendo uma atividade frenética.
Em qualquer caso, a Igreja e o mundo assistem a um ‘milagre’ que, apesar de inesperado, já se consolidou na Igreja e no mundo. O prodígio tem o nome de Francisco e o lema do também Francisco, o santo de Assis: “Repara a minha Igreja”. Nestes poucos anos, o Papa transformou uma instituição afundada, humilhada e vilipendiada numa referência mundial de misericórdia e de esperança. Alguns dizem que os milagres não existem. Mas aqui e agora, diante de nossos olhos, está se cumprindo um dos maiores: a primavera florescente da velha Igreja Católica.
No Concílio, a Igreja pôs-se em dia e deixou de condenar o mundo, para sair às ruas, dar esperança aos pobres e perscrutar atentamente os sinais dos tempos. Esse ‘aggiornamento’, iniciado por João XXIII, foi consolidado por Paulo VI e teve o remate de 33 dias de João Paulo I, o “Papa do sorriso” ou o ” Papa Meteorito”. O seu sucessor, João Paulo II, teve medo do risco que corria uma instituição excessivamente encarnada e dedicou seu longo pontificado a “congelar” o espírito conciliar. Com o complemento, desta vez maior, dos 8 anos de Bento XVI.
No total, 35 anos de involução de uma instituição, que se fechou em si mesma e nas suas seguranças doutrinais, considerou o mundo como um inimigo e se tornou uma “fortaleza sitiada”. Com um cisma silencioso de multidões de fiéis que se foram, sem bater a porta, a caminho da indiferença e enfastiados com a imagem de poder e de arrogância que transmitia. Uma instituição ‘encastelada’ nas “verdades não negociáveis”, a partir das quais anatematizava os seus opositores e com uma casta clerical que tendia abertamente ao funcionalismo. E, além disso, apontada pelo dedo social devido ao flagelo da pedofilia.
Alguns a chamavam a Igreja dos três P (puta, poderosa e paranoica). Tal era o seu descrédito que esteve a ponto de afundar por completo, pelo menos no Ocidente, arrastada pelos ventos da secularização e pela sua própria e errada estratégia de comunicação e de presença social. Foi salva pela histórica renúncia de Bento XVI, sem forças para governar, e pela chegada do “Papa do fim do mundo”.
A Igreja precisava urgentemente de um Papa livre e decidido. Até mesmo, desconcertante. Precisava de um homem tão apaixonado pelo Evangelho que jogasse por terra séculos de papado imperial. Precisava de um líder que deixasse profundamente desconcertados os que, pela inércia dos séculos, estão acostumados a ver no Sumo Pontífice um rei absoluto, dotado de mando e poder sagrado, que é a máxima encarnação do poder.
O autor desta façanha (com a ajuda do Espírito Santo, para os crentes) é Francisco, um Papa que crê no Evangelho de Jesus, que o vive e que está convencido de que ele pode continuar a dar sentido à vida dos homens. O seu programa para a Igreja e para o mundo é um retorno às fontes, um regresso às origens, à época dos primeiros cristãos, em que as pessoas, ao vê-los, diziam: “Olhem como eles se amam!”. Este amor vivo e contagiante fez crescer como espuma a Igreja primitiva.
Bergoglio sabe que a Igreja só pode atrair de novo as massas (tanto os afastados de sempre como os que foram engrossar as fileiras da indiferença) com autenticidade e ternura. Recuperando a mensagem original de Jesus de Nazaré e fazendo com que os que se dizem seus seguidores a vivam com honestidade. Retornar às origens e à dinâmica do seguimento. Converter os católicos sérios e tristes do conformismo (cumpro e minto) em seguidores alegres e entusiastas do Nazareno, que acolhia a todos, mas sentia uma predileção especial pelos mais pobres.
A misericórdia, o motor da mudança
A opção preferencial pelos pobres da Teologia da Libertação despojada de quaisquer resquícios marxistas. Os pobres e os empobrecidos como o coração do Evangelho, como núcleo da fé na teoria e na prática, e não como um mero apêndice. O Evangelho e, portanto, a Igreja, como motor da mudança social. E uma Teologia do Povo, que coloca a misericórdia com seu motor.
A partir dessa base e em nome do Evangelho, o Papa permite-se criticar o sistema que cria iniquidade, que espalha “a cultura do descarte”, que coloca o deus-dinheiro no centro e, portanto, cospe nas valetas da vida amplas camadas da população, que ficam privadas de trabalho, para poder levar pão para casa, e de dignidade como pessoas.
Uma argumentação dura que, em tempos de crise, questiona os fundamentos do poder político-econômico-financeiro do mundo, traz consolo aos empobrecidos e aponta o caminho da esperança aos que sofrem. Com profundo desgosto dos poucos que têm tudo e com profunda satisfação dos deserdados do mundo. Sejam ou não católicos. Porque a voz do Papa se tornou planetária, nas asas de sua consolidada autoridade moral e influência global. Bergoglio é, sem dúvida alguma, o homem mais querido e mais ouvido do mundo.
Para pregar para fora, Francisco sabe que ele tem que ‘dar trigo’[pôr em prática], ser crível para dentro. E não apenas como pessoa, mas como chefe supremo da Igreja Católica. E é aqui onde encontra mais resistências. As entranhas da velha instituição chirriam expostas ao sol do Evangelho. Porque o que o Papa propõe é uma mudança de vida pessoal e de tendência eclesial. Passar da doutrina ao Evangelho. Optar pela lógica do “desejo de salvar os perdidos” em oposição ao “medo de perder os salvos”, que prevalecia até agora.
Uma mudança profunda, brusca, intensa, que passa não só pela tão apregoada reforma da Cúria (também), mas pela mudança do coração. Uma conversão (metanoia). Explica-o assim com clareza o cardeal panamenho, de origem espanhola, José Luis Lacunza: “O objetivo não deveria ser apenas realizar uma reforma cosmética, mas ir a fundo e levar a cabo uma conversão pastoral, que passa por entender a Igreja não como um fim em si mesma mas como um instrumento para tornar o Evangelho crível e aceitável”.
O remédio da misericórdia
De uma Igreja alfândega para outra “hospital de campo”. Acolher os feridos da vida e os que foram expulsos pela própria instituição. Francisco quer abrir as portas aos Zaqueus do nosso tempo, pessoas rejeitadas pelos de dentro e pelos de fora, com base simplesmente em leis e doutrinas. Uma Igreja mãe, com os braços sempre abertos e que aplica apenas o remédio da misericórdia, que é “o chicote de Jesus”.
Uma Igreja, obviamente, desclericalizada, sinodal e corresponsável. Onde seja realmente verdade que “Igreja somos todos nós” e não apenas os sacerdotes, os bispos, os frades e as freiras. Uma igreja comunhão e povo de Deus, onde os leigos deixem de ser “soldados rasos”.
E uma igreja que pregue com o exemplo. É por isso que o Papa é o primeiro a tentar fazer o que diz. Que prega e dá trigo. Que não exige dos outros o que ele não faz primeiro. Ele não quer bispos-príncipes e foi ele o primeiro a deixar o palácio pontifício, a renunciar aos automóveis de luxo e a viver austeramente na residência sacerdotal de Santa Marta.
O Papa cativa as pessoas, porque é uma testemunha crível e também porque fala a língua do povo. Ele fez o modo de falar dos papas passar do ‘arabesco’ [linguagem rebuscada] para o tu para tu. Não precisa de intérpretes. Fala claramente e sem papas na língua. Papa-pároco do mundo, que se faz entender pelos seus fiéis, sem necessidade de intermediários. Num “magistério contínuo”, do qual as suas homilias diárias na Casa Santa Marta são o coração estratégico do pontificado.
Com as antenas postas no Evangelho e no povo (vox populi, vox Dei), Francisco tornou-se, em poucos anos, o personagem mais relevante, influente e popular do planeta. Com capacidade de decisão e protagonismo diplomático internacional. Um “Papa feito povo”, como se diz do em breve santo e já beato, monsenhor Romero.
Decidido a dar uma mão para construir um mundo melhor e, para dar primeiro o exemplo, no meio da sua própria casa, Francisco vai mudar a Igreja custe o que custar e doa a quem doer.
Na sua primavera, não há volta atrás. Aos altos prelados reticentes, só restam três opções: subir no carro da primavera, deixar que passe em silêncio e observando, ou ver-se arrastados por ela. Porque ninguém pode parar a primavera na primavera. E menos ainda se ela vem nas asas do Espírito de Deus.
Juan Manuel Vidal
Fonte: http://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2017/12/17/los-81-anos-del-papa-del-evangelio-francisco-iglesia-religion-