“TRATADOS COMO ‘TRAIDORES’”
José Manuel Vidal, 17/12/17
Imagem: Celibato – José Luis Cortés
O itinerário espiritual e as milhares de histórias dessas pessoas são de uma riqueza incalculável para a história do Povo de Deus.
“Nenhuma empresa no mundo desperdiça tantos recursos humanos”
(Guillermo Jesús Azcúa). – Nesta nova época de atenção às periferias, ainda existem milhares de seres humanos consciente e sistematicamente excluídos da participação eclesial. Eles não pertencem a culturas distantes, a terrorismos pseudo-religiosos ou a grupos de delinquentes.
No entanto, existe um código de silêncio, que é mais rígido e excludente do que o próprio direito canônico, que os condena ao ostracismo definitivo. Semelhante aos códigos não escritos que regem a conduta das sociedades secretas, com um discurso politicamente correto para fora, mas com procedimentos cruéis na prática interna. Por esses códigos, é necessário que certas pessoas desapareçam de cena, que sejam esquecidas o quanto antes porque a sua própria existência faz balançar a principal estrutura do sistema: o poder da casta clerical.
Refiro-me a essa grande massa de 100 mil ex-sacerdotes no mundo que foram sistematicamente excluídos e discriminados pela Igreja. Em vez de interpretar um comportamento tão maciço como um “sinal dos tempos” que nos convida a reconsiderar o papel do celibato monástico imposto tardiamente na Igreja e de forma arbitrária, como condição obrigatória para o exercício do ministério sacerdotal; em vez de receber a mensagem, sacralizou-se ao contrário ainda mais o celibato, transformando-o na muralha mais férrea de controle clerical, “criminalizando” os ex-sacerdotes como “traidores” a uma elite dos pretensos “donos da fé”.
Que seria da Igreja atual se os ex-sacerdotes fossem readmitidos ao exercício do ministério como sacerdotes que são?
Não há dúvida que tal avalanche de experiência matrimonial, familiar e de trabalho, que eles foram recolhendo desde a sua exclusão, colocaria em risco a atual ficção sacralizada do celibato obrigatório, cercada de atributos mágicos.
Este estado de coisas serve na maioria dos casos como um ocultamento de incapacidades, de vícios ocultos, de medo do mundo e dos seus desafios, de condutas aberrantes como a pedofilia, a misoginia, a incapacidade de entender as Alegrias e Esperanças dos homens, etc.
Ficaram apenas alguns depois da horda conservadora restauracionista do pós-concílio que seguem em frente com o seu coração unido a Cristo nas vicissitudes do pobre, lugar teológico por excelência.
Quantas vezes esses “ex-padres”, com a carga de ingenuidade remanescente da sua antiga condição, foram conversar com bispos buscando companhia na fé.
Estes porém, no melhor dos casos, despediram-nos com um tapinha nas costas, com fingido afeto e alguma recomendação piedosa e, depois, respiraram aliviados por terem-se livrado desses “chatos” que não querem entender que já não há lugar para eles em nenhum “plano” pastoral e dos quais se espera apenas que morram em silêncio como se nunca tivessem existido e colocado em dúvida o sistema clerical.
Não pretendo uma readmissão ao ministério tal como é exercido atualmente, porque isso em que a Ordem Sagrada se converteu é o problema. Falo de um alargamento dessa visão religiosa e culturalmente obsoleta. Enquanto o “bem tende por sua natureza a expandir-se”, o sacerdócio tem preparado um grupo de pessoas geralmente inúteis para sobreviver com o seu esforço no mundo, com uma segurança que muitos ricos não têm. É verdade que a maioria não ganha fortunas, mas sempre terão casa, comida, os melhores atendimentos médicos, respeito, posição social, proteção judicial, etc., isto é, todas as seguranças de que carece a maioria dos seres humanos neste mundo e cuja falta faz com que alguém seja realmente “pobre”.
Às vezes leio que há algumas tentativas – muito positivas – de abrir um novo caminho de ‘viri probati’, etc., ignorando a problemática de milhares de ex-sacerdotes que foram excluídos. Nenhuma empresa no mundo desperdiça tantos recursos humanos em que se investiu tanto tempo, esforço e dinheiro. Mas a Igreja comporta-se neste caso como uma adolescente irresponsável que gasta, gasta, para depois pedir ao Pai mais e mais…e, claro, culpá-lo por todo o “mal que há a na sociedade”.
O itinerário espiritual e as milhares de histórias dessas pessoas são de riqueza incalculável para a história do povo de Deus.
O caminho do Evangelho não é o de rejeitar o anterior por não ser “quimicamente puro” (como se alguém soubesse o que é isso), “Ele não veio para apagar a mecha fumegante ou quebrar a cana rachada”.
Papa Francisco visita grupo de Padres casados, nas periferias de Roma Foto: OR
O Papa Francisco sintetizou em duas palavras os males da Igreja atual: clericalismo e auto-referencialidade.
O clericalismo que faz do acesso à Ordem Sagrada, a porta para um poder de elite e submissão do resto do povo, considerado “ignorante”. A auto-referencialidade, atitude da Igreja que olha para o seu umbigo e acredita que as suas preocupações piedosas e não tão piedosas são o eixo central da sua missão, usurpando a propriedade do Reino de Deus em vez de servi-lo. Ambos constituem a visão de uma Igreja amuralhada diante do mundo, o oposto da Igreja do Vaticano II que nos convida a abrir as portas, a construir pontes, a resgatar todo o bem, todas as sementes do Verbo espalhadas por todo o mundo para que Cristo seja tudo em todos.
Esperemos que o caminho de Francisco frutifique em consequências teológicas e práticas. Que não se detenha meramente em “tornar simpática” a Igreja para que nada mude, mas que a conversão do Evangelho, sempre necessária, chegue a tudo e a todos. E lembrar sempre que “a Graça não destrói a natureza, mas supõe-na, cuida dela e eleva-a”.
Daí que a obrigatoriedade do celibato seja anti-natural e um obstáculo para a Graça. Não se pode obrigar ninguém a contrariar a sua natureza, em nome do que quer que seja, e mesmo com o próprio consentimento. Cristo não o fez e nenhuma autoridade humana pode arrogar-se essa brutal arbitrariedade, castigando com o desprezo e a discriminação os sacerdotes que “ousam” formar uma família.
Muito se fala sobre a renovação do clero. Mas tal renovação será cosmética se não incluir a sabedoria e o protagonismo de milhares de testemunhas da Fé que um dia foram ordenados sacerdotes e depois, seguindo o caminho nunca terminado da busca de Deus, respondendo ao chamado da natureza humana criada por Deus , que é o único ponto de partida para que a Graça redima, formaram famílias, educaram filhos, trabalharam igual a qualquer ser humano sem perder a experiência da fé sacerdotal nas suas vidas, apesar da grande exclusão do clericalismo auto-referencial.
Rogo a São José que a Misericórdia os alcance de modo efetivo e os resgate da absurda condenação “canônica” nestes tempos de “periferias” e de “hospitais de campo”, para que a Igreja não perca ninguém e seja instrumento de salvação universal.
José Manuel Vidal
Uma resposta
Ótima matéria ! Este texto me fez lembrar de um ato do Papa Bento XVI , que ordenou ex-pastores Anglicanos,logicamente casados,com filhos,sacerdote ,e não admite aqueles que tem formação teológica e filosófica, de serem ao menos diáconos,prestando uma ajuda fantástica a nossa pastoral.Creio que este fato , da ordenação de Anglicanos,mostra um ato injusto,discriminatório aos padres casados,pois os são para sempre !