Frei Bento Domingues, O.P. -26/03/17
“Para este Domingo foi escolhida a narrativa da cura de um cego de nascença. É uma controvérsia muito longa, muito estúpida e muito cega. Tentaremos, depois, mostrar a sua atualidade. Antes, importa ver o ridículo. Jesus, ao passar, viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos reproduziram a ignorância generalizada: Rabi, quem pecou, ele ou os seus pais para que nascesse cego?”
1. Já fui solicitado, várias vezes, para acompanhar peregrinações à Terra Santa. Nunca me foi possível e nunca fiquei com muita pena. Não me desagradaria ter os olhos povoados com esses lugares. Até teria algumas vantagens para ler os Evangelhos e conhecer a geografia das viagens missionárias de S. Paulo. Não tenho nada contra o chamado ”turismo religioso” e os seus negócios. Negócio é negócio e pode dar trabalho honesto a muita gente.
Confesso que a minha branda alergia resulta da própria leitura dos atrevidos textos do Novo Testamento acerca
- do culto,
- dos seus tempos
- e lugares sacralizados.
No passado Domingo, S. João não deixou escapar absolutamente nada[i]. Desvalorizou, de forma radical, a importância dos templos:
- o de Jerusalém, dos judeus,
- e o de Garizim, dos samaritanos.
- A água do poço do patriarca Jacob não tem mais virtudes do que qualquer outra água.
A razão teológica que Jesus apresenta não deixa margem para qualquer deriva: “Está a chegar a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. São estes adoradores que o Pai procura. Deus é espírito. Os que o adoram têm de o adorar em espírito e verdade”.
A samaritana ficou muito espantada com esta desenvoltura de um judeu que se sentia bem a conversar com ela, a herética e, aparentemente, sem se importar muito com a sua abundância de maridos. Percebeu que estava ali alguém que via o mundo às avessas. Para ela era um profeta de tempos novos.
Ficou completamente seduzida. Deixou o seu cântaro e foi à cidade dizer às pessoas: vinde ver um homem que me disse tudo quanto eu fiz! Não será ele o Cristo? Saíram da cidade e foram confirmar.
Aqui, o narrador introduz um parêntesis. Os discípulos, que tinham ido comprar alimentos, não perceberam nada do que se estava a passar e não viram com bons olhos o Mestre a conversar, a sós, com uma mulher e, para mais, samaritana. A situação era duvidosa para o bom nome de ambos.
O Mestre, muito cansado, não mostrou interesse nenhum pelo almoço, o que levantou suspeitas aos discípulos. De facto, Cristo já estava noutro horizonte. Naquele encontro que os discípulos não perceberam, viu a revelação de um Deus que não é só para um povo escolhido: levantai os olhos e vede os campos como já estão maduros para a ceifa e os discípulos iriam ter a alegria de colher o que outros semearam.
Para os costumes da época, era estranho que os samaritanos se deixassem conduzir por uma mulher. Ficaram tão entusiasmados com o encontro que ela lhes proporcionou que pediram ao hóspede para ficar com eles. No final desabafaram com a samaritana: “ já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”.
É a primeira vez que esta declaração aparece no Evangelho de João. Nós somos herdeiros de uma fórmula que, por mau uso de séculos, parece gasta. No entanto, foi na Samaria que Jesus saltou o muro que separa
- os salvos dos perdidos,
- os bons dos maus,
- os de Deus e os do maligno.
De uma fronteira de inimizade, entre judeus e samaritanos, fez um só mundo, salvo do ódio e do desprezo.
2. Para este Domingo foi escolhida a narrativa da cura de um cego de nascença[ii]. É uma controvérsia muito longa, muito estúpida e muito cega. Tentaremos, depois, mostrar a sua actualidade. Antes, importa ver o ridículo. Jesus, ao passar, viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos reproduziram a ignorância generalizada: Rabi, quem pecou, ele ou os seus pais para que nascesse cego?
Jesus não tinha resposta para uma questão idiota. Tudo era visto como prémio ou castigo. Quem estava bem, era amado de Deus, quem estava mal é porque tinha feito algum pecado, o próprio ou alguém da sua família. Não havia lugar para qualquer interrogação para além desta moral.
Jesus não entrou nessa teologia barata, pois, se existe um mal, só damos glória a Deus tentando libertar a pessoa dessa situação. Foi o que Jesus fez de forma pouco ortodoxa, quanto ao método e quanto ao dia. O método não foi discutido. O azar foi o ter posto a ver um cego de nascença ao Sábado! Não era a primeira vez que Jesus se metia em sarilhos por violar esse dia sacratíssimo, reservado à glória de Deus, mesmo contra a felicidade humana. Que o homem continuasse cego, o problema era dele, azar, agora violar o Sábado era cometer um crime contra a melhor das religiões, que até colocava Deus a descansar ao Sábado!
Deixemos aos judeus lidar, à vontade, com esses preceitos religiosos. Seria lastimável pretender imiscuir-se nas suas convicções. No Evangelho de S. João esses preceitos, como acontece nesta narrativa, não servem a libertação humana. Jesus disse, de muitas maneiras e, por vezes, à letra e ao espírito, que o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Era a derrota do fundamentalismo religioso, não só do seu tempo, mas de todos os tempos e para todos os tempos, seja qual for a religião, sejam quais forem as suas mediações. Cego será quem não quiser ver isto.
3. Porque teimar em ler na missa uma discussão tão azeda sobre a cegueira que pode invadir o culto? É porque esta questão é também uma questão da Igreja. Actualíssima. Andam por aí algumas pessoas e movimentos a dizer que este Papa, por querer alterar preceitos desumanos, coloridos de falsa religião, é herético. O Direito Canónico não pode pretender que os fiéis existam para o observar. É o Direito Canónico para os fiéis ou são os fiéis para o Direito Canónico?
Isto não acontece só na Igreja e nas religiões. Ao longo dos séculos, foram realizadas grandiosas revoluções
- científicas,
- técnicas
- e políticas.
As políticas e todas as outras esqueceram que lhes incumbe a vocação e o dever de usar os seus poderes, não para dominar, mas para servir a humanização da vida de todos. Quando estão ao serviço de desígnios de dominação, perdem-nos, não nos salvam.
[i] Jo 4, 1 – 46
[ii] Jo 9, 1 – 41
Frei Bento Domingues, O.P.
Fonte: https://www.publico.pt/2017/03/26/sociedade/noticia/uma-discussao-brava-sobre-a-cegueira-1766522
Trans-humanismo e pós-humanismo (2)
Padre Anselmo Borges
1 Parece claro que com as técnicas NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas) nos encontramos no limiar de uma realidade completamente nova. Pergunta essencial: tudo o que é tecnicamente possível é moralmente bom? O que é que verdadeiramente queremos fazer?
Os problemas – filosóficos, éticos, políticos – estão aí, imensos, desafiadores, urgentes. E não se pode ficar indiferente, pois é a nossa própria humanidade enquanto tal que está em jogo. Béatrice Jousset-Couturier, em Le transhumanisme. Faut-il avoir peur de l”avenir, com prefácio de Luc Ferry, lembra o debate entre Jürgen Habermas e Peter Sloterdijk, declarando este: “A domesticação do ser humano constitui o grande impensado em relação ao qual o humanismo desviou os olhos desde a Antiguidade até aos nossos dias.” E, contra a tese da descontinuidade metafísica entre “o que é” e “o que é fabricado”, afirma uma continuidade, sendo neste contexto, pensando no pós–humanismo, que os coreanos do Sul elaboram uma carta ética dos robôs. Caminhamos, sem problemas, para hibridações de várias espécies? Com o acesso das novas técnicas a uma elite ou minoria, não surge o risco “totalitário” do controlo dos indivíduos? Aí está uma das razões para que Jürgen Habermas defenda a proibição de intervir no genoma humano. Não se deve ser sensível às ameaças de eugenismo? O que é facto é que os chineses desenvolvem o China Brain Project, “programa de selecção totalmente eugénico destinado a criar uma população mais inteligente”. Nos Estados Unidos, é permitido seleccionar o sexo da prole; porque não querer filhos também mais inteligentes? Caminharemos para filhos à la carte e para o fim da ética? Enquanto Habermas se opõe a toda a forma de “eugenismo liberal”, Sloterdijk tende a reduzir a história humana a uma sucessão de transformações nos modos de produção técnica. Mas que pensar da possibilidade de transformar o homem numa nova espécie? Para onde vão as nossas liberdades? E, com a criação de vírus sujeitos a transformações incontroláveis, a nossa segurança? B. Jousset-Couturier pergunta: quem dirigiria a ordem mundial? O homem, a máquina, um híbrido? Quem tem o primado: a ética ou as tecnologias? Viver-se-á mais tempo (excelente!), mas com que sentido? Já é possível a modificação mnésica, por exemplo, apagando lembranças, o que suscita a questão da falsificação da história e da identidade.
Por isso, a Comissão Consultiva Nacional de Ética (CCNE) francesa debruçou-se pela primeira vez sobre o “problema trans-humanista” e concluiu (12.12.2013): “É indispensável uma vigilância ética, pois ignoramos, a médio e a longo prazo, tanto ao nível individual como social, os efeitos do desenvolvimento das nanotecnologias”.
No contexto do desenvolvimento acelerado da inteligência artificial e no quadro de uma nova revolução industrial comandada por robôs, o Parlamento Europeu propõe legislação no sentido de precaver problemas causados por essa revolução em curso.
2 O que aí fica tem também na sua base a possibilidade de máquinas com emoção, inteligência, autoconsciência, no pressuposto de o homem ser automatizável no seu conjunto. Pergunta Jean Staune, em Les Clés du Futur: “E se se pudesse conceber um dia uma máquina que dispusesse de todas as potencialidades de um ser humano, em termos de criatividade, de emotividade, mas também, e sobretudo, que seja consciente da sua própria existência e que, como todos os seres humanos, desejasse melhorar a sua situação?” Esta possibilidade arranca do pressuposto de que é o cérebro que produz a consciência. Assim, mediante o estudo aprofundado dos mecanismos do cérebro, “chegaremos à compreensão do funcionamento da consciência e poderemos fabricar uma máquina susceptível de alcançar o mesmo nível de consciência e, portanto, de evolução que a espécie humana tem”. Mais: a partir daí, surgem consequências que nos deixam perplexos e atemorizados. De facto, se a máquina pode imitar o homem em todos os domínios, também pode construir e programar máquinas, que trabalharão vinte quatro horas sobre vinte e quatro horas e sete dias na semana, sem interrupção, para produzir uma versão melhorada de si mesmas, até produzirem uma superinteligência, algo que nos ultrapassará sempre e em todas as ordens de grandeza, chegando o momento de uma “singularidade”, isto é, tudo quanto existiu ao nível cultural até então ficará obsoleto. “A superinteligência será a última invenção da espécie humana e marcará o fim desta sobre a Terra. A existência de uma inteligência milhares de vezes superior à nossa só pode levar à nossa desclassificação e mesmo ao nosso desaparecimento.”
A espécie humana vai desaparecer na forma em que a conhecemos? Não há problema, pelo contrário, pois, segundo Raymond Kurzweil, que em 2005 escreveu uma obra famosa com o título The Singularity Is Near e que dirige uma universidade com esse nome, tornar-nos-emos nós próprios máquinas, em fusão com elas, para um novo estádio da evolução. Já não se trata de simples “trans-humanismo”, melhorando o homem, enxertando-lhe componentes electrónicas: “O fim último é ser capaz de descarregar uma consciência humana num material informático. A humanidade acederá assim à imortalidade.” (B. Jousset-Couturier informa que, quando interrogado em que é que se veria reincarnado, o Dalai Lama não exclui a possibilidade de ser num computador.)
Questões imensas que obrigam a pensar. Mesmo se estamos ainda, em múltiplos domínios, apenas no plano da ciência-ficção.
in DN, 25.03.2017
Visite os nossos sites
http://nsi-pt.blogspot.com
https://twitter.com/nsi_pt
http://www.facebook.com/nossomosigreja