Nesta entrevista inédita que em 2013 deu ao PÚBLICO, Zygmunt Bauman fala das redes sociais, do Papa, das relações afectivas e da Europa.
Os confessionários enraizaram-se na cultura europeia como protótipo e paradigma da privacidade e da intimidade; ali se admitiam actos e pensamentos julgados impróprios para serem confiados a quem quer que fosse além de Deus. Tais actos e pensamentos tão profundamente privados e íntimos são agora brandidos em público.
Superficialmente, podemos opinar que isto significa apenas que encontrámos outros veículos técnicos para satisfazer a mesma necessidade humana de confessar e partilhar emoções e crenças. Mas de facto o próprio significado dessa conduta mudou tanto que o confessionalismo se tornou irreconhecível.
O Facebook é agora um mercado, onde pessoas preocupadas com o seu valor de mercado usam a intimidade e o seu potencial de entretenimento para aumentar esse valor. Talvez entre os milhões de utilizadores alguém, algures, considere a mercadoria que ali é oferecida
- digna de atenção,
- atraente,
- capaz de suscitar procura e de assegurar sucesso comercial num mercado sobrelotado de informação.
O sucesso da ideia de Mark Zuckerberg deveu-se à procura que mercadorias como
- a terrível sensação de abandono,
- a solidão incurável,
- o risco de se ser abandonado, ou expulso,
têm no mercado global.
Algumas histórias dos blogues, do Twitter ou do Facebook são, por assim dizer, o sucedâneo para algumas camadas da população das revistas de celebridades.
A Europa à procura da sua Primavera
Ao mesmo tempo existe a sensação de que as redes sociais são ferramentas ainda recentes, ou seja, um laboratório que ainda estamos a experimentar. Apesar de tudo, sabemos ainda pouco sobre as redes sociais e sobre as suas consequências nas nossas vidas, não lhe parece?
Mudando de assunto. Na Europa parecem coexistir duas dinâmicas de protesto paralelas. Por um lado, temos pessoas a reclamar mudanças urgentes, porque a sua sobrevivência está em causa (é o que se está a passar em países como Portugal, Espanha, Itália ou Grécia). Acaba por ser um protesto emocional. Por outro, exigem-se transformações estruturais profundas, que requerem reflexão mais rigorosa. Como é possível gerir estas duas dinâmicas entre pessoas, sociedades e países?
São ambas manifestações de desencanto e de desagrado com o mau funcionamento desse difícil compromisso entre dois princípios que estruturam a União Europeia.
- Um é a ideia da soberania territorial do Estado consagrada no Tratado de Vestefália de 1648 (“cuius regio, eius religio”).
- Outro é a pura realidade do nosso mundo globalizado,
no qual os poderes que determinam os nossos padecimentos – no que diz respeito às nossas expectativas e às expectativas dos nossos filhos –
- estão completamente fora do alcance das instituições políticas disponíveis
- e, portanto, fora do nosso alcance (os poderes, no sentido da capacidade de fazer as coisas, tornaram-se globais, enquanto a política, ou seja, a capacidade de decidir quais dessas coisas devem ser feitas, mantém-se local, como antigamente, confinada às fronteiras do “Estado soberano”).
Resultado? Os Estados, que têm nominalmente o território integralmente a seu cargo, estão a sofrer um constante défice de poder, o que os impede de cumprirem a sua promessa (hoje são as bolsas de valores, não os gabinetes dos ministérios, que definem a linha entre as políticas “realistas” e as políticas “irrealistas”).
À conta disso, os governos ficam sem saída:
- têm de satisfazer as reivindicações dos seus eleitores,
- mas ao mesmo tempo têm de ganhar os favores dos poderes supranacionais,
e as duas exigências são mutuamente incompatíveis.
O resultado é o que descreveu!
- De acordo com os desejos dos seus eleitores, a senhora Merkel quer uma reforma que torna a Europa mais hospitaleira para o capital financeiro à escala planetária.
- Grécia, Itália, Espanha ou Portugal querem constranger os poderes dos capitais globais para proteger a vontade soberana das suas nações.
Como é possível “gerir estas duas dinâmicas”? Bem, estamos condenados a consagrar o futuro mais próximo aos esforços para encontrar – ou criar – uma resposta eficaz para a questão.
Zygmunt Bauman, o homem líquido
Para além da Europa, assistimos hoje à ascensão de novos poderes como a China, a Índia ou o Brasil, onde o capital parece circular mais intensamente. Mas a questão é se não estarão a fazê-lo replicando um modelo desenvolvido na Europa e nos EUA que parece estar a mostrar sinais de erosão.
Parece não existir um grande horizonte de esperança para esta Europa que tem vindo a ser construída. Depois da queda do Muro de Berlim, passámos a confiar no capitalismo global e no progresso tecnológico e não nos demos ao trabalho de pensar em alternativas. Parece-lhe que os traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo foram a principal razão que conduziu a esta ausência de um pensamento alternativo?
Não iria ao ponto de dizer que não há esperança para a Europa. A história é feita por seres humanos, e esse é um dos poucos aspectos da nossa existência que é tão imortal como a própria humanidade. E há muitas maneiras de ser humano, tal como há muitas formas alternativas de gerir a vida perseguindo objectivos como a dignidade, a satisfação e a felicidade,
formas que não passem
- pela rivalidade,
- pela competição de cortar à faca,
- pelo “crescimento económico” incessante,
- pela expansão do consumo
- e consequente esgotamento dos recursos do planeta que se tornaram dominantes no presente.
O facto de termos falhado [nessa missão de] encontrar, aceitar, abraçar e praticar estilos de vida alternativos não é de todo resultado dos “traumas deixados pelo fascismo e pelo comunismo”. É uma escolha
- política,
- social
- e cultural,
e podemos reverter as nossas escolhas – tanto quanto podemos agarrar-nos a elas.
Em algumas das suas obras mais populares, como Amor Líquido, aborda as relações afectivas e a forma como se têm transformado nestes tempos difusos. É como se também nas relações de afecto estivéssemos condenados ao curto prazo, como se a durabilidade das relações amorosas nos assustasse.
O nosso desejo por uma mercadoria aumenta em função da sua escassez. A fome de amor tende a ser hoje cada vez mais difícil de saciar, porque o culto moderno do conforto e da facilidade, que faz o esforço ser redundante e o trabalho árduo ser repulsivo, torna as alegrias do amor terrivelmente inacessíveis. No fim de contas, o amor desvela todo o seu encanto quando consiste em viver para o outro. O amor é a chave da felicidade, desde que aceitemos que não se trata de uma receita para uma vida fácil e para o conforto pessoal.
Nos últimos anos muito se falou sobre o possível fracasso do papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas, ou pelo menos da sua transfiguração. Como vê esse tema à luz da sua própria experiência?
O papel tradicional dos intelectuais, que consistia em assumir a responsabilidade pela defesa e pela promoção dos valores das nações, foi vítima dos mesmos processos que erodiram outros aspectos da comunidade humana: processos de
- fragmentação,
- individualização
- e privatização.
As elites culturais educadas
- tendem actualmente a seguir outras elites,
- sobretudo económicas,
- na sua renúncia a quaisquer responsabilidades que não aquelas que dizem respeito a interesses puramente privados.
Tal como tendem a recolher-se nos seus refúgios profissionais –
- os cirurgiões defendem os hospitais,
- os académicos defendem as universidades,
- os actores defendem os teatros,
- os artistas defendem as galerias –,
deixando a cargo de poucos, se é que de alguns, as questões que estão acima dos seus interesses corporativos.
Por outro lado, a crise das instâncias de acção colectiva existentes, associada a uma imaginação política rendida à lógica de curto prazo,
- degradou o valor das expectativas de uma “boa sociedade”
- e tornou redundante a reflexão sobre a forma que esta devia assumir.
A sua preocupação justifica-se totalmente, portanto. Mas não é o fim do mundo. Ainda não chegámos ao ponto de não-retorno. A procura de serviços intelectuais tem uma urgência sem precedentes e essa premência cresce de dia para dia.