Eduardo Hoornaert, Salvador – 18/05/2016
Término da série de 4 artigos.
Hoje publicamos o nº 4:
- O beijo de Judas
- Duas teologias conflitantes
- A vitória do sacerdote
- Para além do padre casado
No fim de nossa caminhada percebemos que a expressão ‘padre casado’, criado no calor da hora do embate com a Igreja oficial, já cumpriu seu papel. O Movimento dos Padres Casados conseguiu que não se falasse mais em ‘ex-padre’, mas em ‘padre casado’. Isso é um passo importante, pois relativiza a lei eclesiástica do celibato ao opor ‘padre casado’ a ‘padre celibatário’. Com certeza, terá seus desdobramentos no futuro.
Mas me parece que há outro passo a ser experimentado, como demonstrou nosso estudo do Bloco anterior, onde se viu que o sacerdócio é um desvio de rota. O DNA do movimento de Jesus é anti-sacerdotal. O casulo do ‘padre casado’, um dia terá de ser abandonado para que a borboleta possa voar.
Hoje, a expressão ‘Movimento dos Padres Casados’ já não corresponde mais ao que muitos estão efetivamente vivenciando como leigos, que se unem para segurar as seguintes bandeiras:
- 1. a superação da marginalização da mulher na Igreja;
- 2. a superação do sistema eclesiástico corporativo;
- 3. a opção por um trabalho comunitário na base da sociedade.
1. Superar a marginalização da mulher na Igreja
A mulher teve uma história extraordinária de liderança nos primeiros séculos do movimento de Jesus. A história da apóstola Maria Madalena é apenas um exemplo entre muitos. Maria Madalena foi vergonhosamente rebaixada a pecadora (sedutora) arrependida.
Ela simboliza, como nenhuma outra, a mulher vítima de uma sacerdotalização que avança sob a bandeira da Continência sexual e da negação do princípio divino do amor conjugal, tal qual enunciado por Orígenes. Para legitimar a subjugação da mulher, há quem recorre às palavras de Ihwh no Livro Gênesis:
(Ihwh diz à mulher:)
‘Para seu homem seu desejo
E o homem seu dono’ (Gn 3, 16).
Palavras cruéis que se repetem ao longo dos tempos.
- No século XIII, o príncipe dos teólogos Tomás de Aquino define a mulher como um ‘varão imperfeito’
- e no século XVI Lutero, tão lúcido em outros pontos, considera a mulher inferior ao homem por ser herdeira de Eva, a sedutora.
- Os Padres da Igreja (séculos IV a VI) se revelam terrivelmente antifeministas.
- O teólogo Aurélio Agostinho, que já conhecemos, escreve que, de todos os combates do cristão, o mais importante é o que se trava a favor da castidade. Raros são os casados que não se perdem na guerra contra sua natureza depravada, escreve Agostinho. Cedo ou tarde cedem à tentação da carne. Só o Sacerdote está em condições de escapar, caso tiver a força de resistir às tentações.
Enfim, nos escritos dos Padres da Igreja se procura em vão um discurso a favor da promoção humana da mulher. A bandeira da valorização da mulher na Igreja é uma bandeira a ser carregada pelo Movimento dos que caminham ‘para além do padre casado’.
IVONE GEBARA:
“É necessário
mudar a Igreja
a partir de dentro.”
2. Superar o sistema eclesiástico corporativo.
A julgar pelos últimos 16 séculos da Igreja Católica, não existe igreja sem clero. Mas a investigação histórica que fizemos nos Blocos 2 e 3 deste estudo nos ajudou a ver que o clero é um fenômeno relativamente tardio na formação da Igreja católica. É baseado nisso que entendemos que a recusa pura e simples da corporação clerical abre caminhos para o futuro do cristianismo.
- Recuperar Orígenes e largar Agostinho.
- Valorizar o encontro conjugal como sinal corporal do amor de Deus.
- Superar imagens subconscientes.
Esse último ponto talvez seja o mais difícil, pois sabemos que ideias e imagens gravadas na mente, transmitidas de geração em geração, e que se situam em grande parte no subconsciente, são de longa duração, podem ganhar longevidade de séculos ou mesmo milênios (o racismo, o machismo, o elitismo, o fascínio da ‘corte’).
São imagens difíceis de serem abandonadas, pois vegetam no subconsciente. Repito o que escrevi acima: somos seres antes de tudo movidos por afeto, e não por razão. Para manter uma vida bem ordenada, a razão tem de governar o afeto e é nesse sentido que temos de superar a síndrome sacerdotal que eventualmente persista dentre de nós.
3. Optar por um trabalho comunitário na base da sociedade
Por volta dos anos 1960 surgiu a ideia da comunidade de base na América Latina. Ela postula um novo modelo de liderança, na linha do Mestre dos primeiros séculos, não do Sacerdote dos séculos subsequentes. Esse Mestre, essa Mestra, hoje se chama animador, animadora.
Há outros nomes. O contexto é o
- da Teologia da Libertação,
- do Pacto das Catacumbas,
- mas também da ideia socialista tão discriminada nos dias de hoje.
A ideia defendida pelos ‘Padres da Igreja’ de Medellin e Puebla, a geração de bispos que tem Helder Câmara como modelo. Não se trata de gritar e de se revoltar ou indignar com palavras fortes, mas de estudar pacientemente e desfazer os entrelaçamentos históricos que não correspondem à ideia original do movimento de Jesus.
Uma última palavra: ao longo desse estudo, encontramos diversas vezes a advertência: cuidado em não tropeçar em Jesus. Se Agostinho, teólogo eminente, tropeçou em Jesus, o mesmo pode acontecer conosco. Todos os apóstolos tropeçaram em Jesus. Ele sabia disso.
No Evangelho de Mateus, ele disse, na noite de sua prisão pelas tropas do Sumo Sacerdote: ‘Esta noite mesmo, eu serei aquele que os fará tropeçar’ (Mt 26, 31).
Aí Pedro reagiu e jurou de pés juntos: ‘ talvez você os fará cair (os colegas), mas você não me fará tropeçar nunca! ’.
Ao que Jesus respondeu: ‘Esta noite, antes do galo cantar, você me negará três vezes. Mas Pedro não se deu por vencido: ‘antes morrer contigo que o renegar’. ‘E todos os discípulos disseram o mesmo’, prossegue o Evangelho. E sabemos o que aconteceu depois.
A Primeira Carta de Pedro explica porque é tão comum tropeçar em Jesus: ‘A pedra que os pedreiros rejeitaram se tornou uma pedra angular, pedra de tropeço e rocha que te faz levar um tombo’. 1Pd 2, 8. A gente pensa que Jesus é fácil, é uma pedra sem importância. Na realidade, ele é a pedra angular. Não atentar com muita atenção ao que Jesus diz e faz provoca o tropeço.
No nosso caso, será que a pedra no caminho não é a própria ideia de ‘padre’, ou seja, de sacerdote, caso não a consigamos ver como uma aberração, mas continuemos a considerá-la fundamental para o bom andamento da Igreja? Em outras palavras, a pedra de tropeço não estaria, de forma melindrosamente oculta, na própria expressão ‘padre casado’?
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, professor, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador.
Fonte: http://padrescasadosceara.blogspot.com.br/2016/05/para-alem-do-padre-casado-iv.html
Comentário do Editor:
Com este quarto artigo, terminamos a série sob o título geral: PARA ALÉM DO PADRE CASADO, elaborados por Eduardo Hoornaert.
O que ele enunciou no terceiro: “O que é preciso e urgente é dizer com firmeza que, de um ponto de vista evangélico, o sacerdócio é uma aberração”, ampliou-o aqui.
São argumentos a ter em conta, há muito boas intuições, mas, com certeza, não é a última palavra e é preciso aprofundar esse assunto muito mais, na História, na Tradição, na Teologia e na Vida da Igreja.
Como disse no Comentário anterior, reconheço o valor de Eduardo Hoornaert com historiador e estudioso do Movimento de Jesus. E sobretudo como amigo-irmão.
É muito importante o que ele diz e propõe:
- Recuperar Orígenes e largar Agostinho.
- Valorizar o encontro conjugal como sinal corporal do amor de Deus.
- Superar imagens subconscientes.
Pena que o conhecimento dele da história da caminhada do MFPC – Movimento das Famílias dos Padres casados – e do Movimento Internacional dos Padres casados seja bastante pequeno e bastante disperso .
Pelo que li, vi e ouvi, no Brasil, desde 1986, na Federação Latino-americana, desde 2006, em Portugal, desde 2010 e na Federação Europeia de Padres casados desde 2014, não é este o pensamento comum dos Padres que deixaram o ministério e se associaram em Movimentos nacionais e internacionais.
Além disso, a “Teologia” do Sacerdócio Cristão de Eduardo, contraria radicalmente o ensino da Igreja católica sobre o assunto.
Dizer que o Sacerdócio e o Episcopado se tornaram um PODER Exclusivista e Absoluto na Igreja, é uma coisa positiva que podemos aceitar. Mas afirmar categoricamente que o Sacerdócio Cristão é uma aberração, pode ser querer jogar fora a criança com a água suja do seu banho.
Do ponto de vista prático, sou do parecer que querer tirar do nosso MFPC a expressão Padres Casados, como alguns, muito poucos, vêm tentando de há uns dois anos para cá, é, a meu ver, cortar pela raíz a nossa especificidade, o que nos define e, apesar das nossas dificuldades de renovação do MFPC, nos mantém unidos.
Aqui daria para aprofundar
- como cada um de nós deixou o ministério,
- como se realizou no ministério,
- como foi seu contato com o povo, com os colegas e com o bispo
- como casou e com que idade,
- como sua esposa e família o aceitou ou rejeitou como padre-que-deixou-o-ministério,
- como se inseriu no mundo do trabalho,
- qual seu posterior relacionamento com a Hierarquia e com a comunidade católica,
- se perseverou na sua fé ou dela se afastou.
Essas e outras coisas positivas e/ou negativas, é que, em geral, explicam a relação de cada um consigo mesmo após a saída, com os colegas do MFPC e com o movimento como um todo.
A nível de pesquisa elaborada sobre esse assunto, só conheço a realizada em Brasília, no fim da década de 80, e que resultou no livro: PADRES CASADOS – Depoimento e Pesquisa, Vozes, 1990, coordenada por Jorge Ponciano Ribeiro.
De qualquer maneira, a discussão e a busca de novos e sólidos Rumos para o MFPC e para Confederação mundial dos Padres casados, continuam abertas.
João Tavares
Uma resposta
‘Como meu trabalho ‘Para além do padre casado’ está circulando entre os participantes e simpatizantes do MFPC, gostaria de esclarecer três pontos:
– Meu trabalho é de ordem histórica. A rigor não defendo uma tese, muito menos uma tese teológica, mas faço uma investigação histórica. Assim quando comparo Orígenes (um Padre da Igreja do século III) com Agostinho (um Padre da Igreja do século V), por exemplo. Meus comentários sobre o sacerdócio são baseados numa leitura da Carta aos Hebreus e numa descrição do modelo de liderança na Igreja durante os 4 primeiros séculos. No mês de julho, se Deus quiser, deve sair pela Editora Paulus um livro meu que esclarece melhor e com maiores detalhes esses e outros pontos, sob o título: ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma análise literária’.
– Quando escrevo ‘para além do padre casado’, não estou querendo propor um novo nome para nosso movimento. Penso que o nome atual é bom e esclarecedor, pois supera o termo negativo ‘ex-padre’ e confere dignidade ao padre que apenas deixou o ministério formal e em grande parte ritual, não o ministério evangélico. Usei a expressão ‘para além do padre casado’ para ajudar a refletir e ativar a discussão. Nada mais.
– Escrevi os quatro textos ora em circulação no intuito de ativar a discussão entre nós, uma discussão que, em minha modesta opinião, deve se encaminhar da forma seguinte: (1) primeiramente uma averiguação de ordem histórica e literária (análise cuidadosa dos textos), (2) em segundo lugar a reflexão teológica, e (3) finalmente uma eventual conclusão prática para o MPFC. Pois não adianta discutir por discutir. Aqui também vale o método: ver, julgar, agir’.
Eduardo Hoornaert