PARA ALÉM DO PADRE CASADO (II) – DUAS TEOLOGIAS CONFLITANTES

Eduardo Hoornaert, Salvador – 2016

 Continuação da série de quatro artigos sobre o tema: PARA ALÉM DO PADRE CASADO  –  Este estudo está dividido em Quatro blocos e hoje publicamos o nº 2 de 4:

  1. O beijo de Judas                        
  2. 2. Duas teologias conflitantes
  3. A vitória do sacerdote             
  4. 4. Para além do padre casado

 

Introdução

Para corresponder satisfatoriamente ao desafio enunciado no primeiro bloco, temos de cavar fundo na história e viajar no tempo até o período entre os séculos III e VI. Ali se processou uma longa disputa, talvez a mais importante de toda a história do cristianismo, entre o pensamento de dois eminentes teólogos: Orígenes (do século III) e Agostinho (do século V).

O primeiro viveu em Alexandria (Egito), o segundo em Hipona (pequena cidade do Norte da África). Dois séculos separam suas vidas, mas os pensamentos de ambos suscitaram longas discussões durante séculos. Nós podemos nos perguntar: por que voltar hoje a comentar o que aconteceu tantos séculos atrás?

É que nunca, ao correr dos 20 séculos de cristianismo, houve uma discussão que tocasse de forma tão profunda o âmago da mensagem cristã como a discussão entre Orígenes e Agostinho.

Não é por menos: as ideias de Orígenes expressam uma compreensão do cristianismo diametralmente oposta à compreensão de Agostinho. Infelizmente, a discussão entre essas ideias foi abruptamente interrompida no ano 533, no Segundo Concílio de Constantinopla (533), o V Concílio Ecumênico, quando Orígenes foi condenado como herege. A partir dessa data, seu nome caiu no esquecimento enquanto Agostinho virou a grande ‘auctoritas’ dos intelectuais cristãos durante a Idade Média e largamente até hoje. Basta dizer que atualmente ainda circulam aproximadamente 80 revistas articuladas em torno de seu nome e de seu pensamento. Em seguida explico o que essa antiga discussão teológica tem a ver com a questão do padre casado.

 

Orígenes (cerca de 185 – cerca de 253)

Deixe-me começar com Orígenes. Em seu livro ‘Cristianismo, o Mínimo do Mínimo’ (Vozes, Petrópolis, 2013, 141), Leonardo Boff escreve que Orígenes ‘talvez seja o maior gênio teológico do cristianismo’. Não é por menos. Quem visita hoje uma biblioteca especializada em teologia ficará surpreendida pelo número impressionante de escritos de Orígenes (são 800 conservados, de 2 mil).

Ele é fundamentalmente um comentarista bíblico. Comenta todos os livros da Bíblia, por vezes falando de improviso diante de um auditório de analfabetos ou em conversas informais, e para tanto conta com diversos copistas, que anotam o que ele diz, sem perder nada (por isso são tantos livros).

Ora, e é isso que nos interessa aqui, um dos comentários mais impactantes de Orígenes diz respeito ao livro bíblico ‘Cântico dos Cânticos’, um texto cantado e dançado em festas de casamento durante séculos. Leiamos os versos 7, 10- 8, 15:

Sob a macieira / Eu acordo (a namorada).

‘É aqui que sua mãe a concebeu / Que você recebeu a vida.

Aperta-me como selo sobre seu coração / Como selo sobre seu braço’.

O amor é forte como a morte / Paixão dura como as forças da terra.

Chamas, chamas de fogo,/ Chamas de Ihwh.

Muita água não apagará o amor (Ct 8, 5-14).

Aqui se descreve o ato sexual, o momento do orgasmo: ‘chamas, chamas de fogo’. Aparece o nome de Ihwh, que não consta em nenhum outro tópico do Cântico. As chamas do orgasmo são chamas de Ihwh. Deus age por meio do ato sexual.  Deus é chama de fogo, nenhuma água apaga as labaredas de Ihwh. Podemos dizer que, sem o Cântico dos Cânticos, a Bíblia não seria o que ela é: um apelo apaixonado pelo encontro sexual, que se fundamenta numa teologia do prazer (veja: Teologia do Prazer, Paulus, São Paulo, 2014), em que Deus está agindo.

A relação prazerosa entre mulher e homem é a imagem mais fiel de um Deus que procura dialogar com a humanidade. O ato sexual é um diálogo com Deus que desse modo assume uma forma corporal. Dito de passagem: se você está interessado em aprofundar esse tema, veja o artigo de Milton Schwantes, intitulado Debaixo da Macieira  publicado em: Cântico dos Cânticos, Estudos Bíblicos, 40, Vozes, 1993.

O jovem representa o corpo, a jovem representa a alma: seta e escudo, nudez e vestimenta

 Orígenes, ao comentar os versos acima citados do Cântico dos Cânticos, tem uma frase lapidar: ‘Deus é eros’ (em grego: ‘Theos eros estin’). Você encontra a referência na página 123 do mencionado livro ‘Teologia do Prazer’. Por meio de três palavras, Orígenes se erige num teólogo para todos os tempos: Deus é amor, não só ‘agapé’ (amor espiritual), como se costuma dizer, mas também ‘eros’ (amor sensual). Aliás, Orígenes não faz distinção entre ‘eros’ e ‘agapé’, que é uma distinção proveniente da antropologia platônica (corpo e alma).

Aqui captamos o significado profundo do que seja um ‘padre casado’.

Uma incondicional benevolência divina paira sobre o padre casado, pelo fato de optar pelo amor por uma mulher. É exatamente essa ideia incondicionalmente benevolente de Deus que ocasionou a condenação de Orígenes no II Concílio de Constantinopla em 533. Orígenes nega a ideia da condenação e isso não passa pelo crivo de sacerdotes que precisam condenar e ameaçar com o inferno para manter os fiéis na mão.

 

Agostinho (354 – 430)

Quando passamos para a postura de Agostinho diante do sexo e do amor entre homem e mulher, entramos num universo totalmente diferente. Que contraste! Isso provém basicamente do fato que Agostinho não faz teologia em cima do comentário de textos bíblicos, ele não sabe nem grego nem hebraico, muito menos aramaico, a língua de Jesus.

Ele, no fundo é um filósofo platônico, um dos formadores do que se pode chamar de cristianismo platônico, ou seja, um cristianismo que parte da ideia que a alma vale infinitamente mais que o corpo e que temos de salvar nossa alma antes de tudo, mesmo se isso implica em desprezar os apelos do corpo. Eis uma ideia totalmente ausente da Bíblia, mas que toma corpo no cristianismo platônico.

Tomemos nas mãos as ‘Confissões’ de Agostinho (Coleção ‘Os Pensadores’ VI, Editora Abril, São Paulo, 1973). O que Agostinho escreve ali sobre o relacionamento entre mulher e homem é estarrecedor. Segundo os costumes da época, ele vive 12 anos com uma jovem que aos 18 anos gera um filho seu, Adeodato.

Num determinado momento, aconselhado por sua mãe Mônica, Agostinho abandona essa moça sem dar explicação, para pensar num casamento segundo as leis romanas. Ela só merece duas frases nas Confissões. Leiamos:

‘por esses anos tinha em minha companhia uma mulher que não havia sido recebido em matrimônio legítimo e que fora procurado por um inquieto ardor, falho de prudência. Mas era só uma e guardava-lhe a fidelidade do leito. Com esse exemplo aprendi claramente, por experiência, qual é a distância entre a moderação do prazer conjugal, contratado em vista à geração, e o pacto do amor sensual. Desse tipo de amor nascem filhos contra a vontade dos pais, se bem que, uma vez nascidos, há obrigação de amá-los’ (IV, 2, 73-74 do livro citado).

O impulso sexual é ‘um inquieto ardor, falho de prudência’. Eis a ideia que Mônica, a mãe, se faz do casamento que ela idealiza para seu filho:

‘A mulher, desde o momento em que ouve o contrato do matrimônio, como quem escuta a leitura de um documento pelo qual é feita escrava, se deve considerar como tal. Não pode ser altiva com seu senhor (seu marido) ’ (IX, 9, 181 do livro citado). O casamento é um contrato, o relacionamento anterior com a moça não é um contrato, é apenas uma página virada.

O autor norueguês Gaarder escreveu um livro (Vita Brevis, Companhia das Letras, São Paulo, 1997) em que se imagina a mulher (seu nome seria Flória Emília) mantendo uma longa correspondência com seu Aurélio Agostinho, em que declara que continua fiel a ele e não consegue entender por que ele a abandonou sem dizer nada e qual o valor de se submeter à Dama Continência.

Ela não entende como Agostinho define seu filho Adeodato como ‘o filho carnal de meu pecado’ (IX, 6, 178 no livro citado) e declara: ‘nada de meu havia nesse jovem, além do pecado’ (ibidem).

Flória Emília, enfim, mostra que Agostinho ‘tropeça em Jesus’.

Um padre casado que lê essa história não pode senão ter simpatia pela moça e um forte sentimento de desconfiança diante de Agostinho, que parece querer seguir os conselhos da mãe e já pensa num casamento com uma mulher segundo o paradigma do contrato matrimonial.

Pois a visão que Mônica, mãe e conselheira de Agostinho, tem do casamento é a mesma que a Igreja cultiva acerca do celibato: trata-se de um contrato que precisa ser honrado, sob pena de infidelidade, desonra e desclassificação. Aqui Agostinho leva um tombo, escorrega sobre a pedra do Evangelho que proclama que Deus é amor sem adjetivação, ou seja, amor humano e que não faz distinção entre eros e agapé, como faz Platão. Para o Evangelho, o ato conjugal é um ato divino, enquanto o celibato é um contrato firmado com a Igreja.

A renúncia à atividade sexual, praticada por Agostinho depois de abandonar seus planos casamenteiros, em si não é expressão de libertação e santidade.  A suspeita é que, para ele, a opção pelo celibatos seja um trampolim para uma brilhante carreira eclesiástica. Pelo menos, é assim que Flória Emília sente as coisas. O que passa a ser chamada de fidelidade à vocação e caminho de santidade é na realidade traição, desrespeito e negação da mulher, na opinião da moça desrespeitada.

Conflito entre dois modos de se entender a Deus

Além do caso da sexualidade, Orígenes e Agostinho são paradigmas de um conflito permanente entre duas teologias, ou seja, dois modos de se entender a Deus.

  • Para Orígenes, todos são salvos, pois Deus é infinitamente bom;
  • para Agostinho, todos são condenados (‘massa damnata’) a não ser os que se salvam pela fé em Jesus.
  • Para Orígenes, Deus é ao mesmo tempo justo e misericordioso, ou seja, Ele é misericordioso por ser justo (segundo o provérbio: ‘compreender tudo é tudo perdoar: tout comprendre, c’ est tout pardonner);
  • para Agostinho, Deus é justo ou misericordioso, Ele não pode ser ao mesmo tempo justo e misericordioso. Quando Deus é justo, condena todos ao inferno – mais tarde, no século XI, convertido em purgatório -, quando resolve ser misericordioso, Ele salva do inferno.
  • Para Orígenes, até Satanás obterá, no fim, a salvação;
  • para Agostinho, até as crianças não batizadas vão ao inferno (mais tarde convertido em ‘limbo’).

Como escrevi acima, um ar de benevolência divina perpassa os escritos de Orígenes, o que não acontece com os escritos de Agostinho. Mesmo Paulo, em determinados tópicos, fala em condenação. Orígenes nunca. Orígenes afirma que, no final da história, Deus será tudo em todos (1Cor 15, 28). Uma teóloga define a teologia de Orígenes com as seguintes palavras:

O Deus de Orígenes ama toda a sua criação e atua para salvar cada ser individual. O Deus de Agostinho, encolerizado pelo pecado, redime apenas um pequeno número de pessoas, apenas o suficiente para mostrar sua misericórdia’ (Frederiksen, P., Pecado, Vozes, 2014, 145. Vale a pena ler as páginas 110 a 121).

A Igreja se engana quando exalta Agostinho e condena Orígenes. Tropeça em Jesus quando segue um autor patentemente seguidor do pensamento de Platão, quando afirma que o ser humano é um composto de corpo e alma, sendo que a alma é infinitamente mais preciosa que o corpo. Como eu aprendi na minha primeira aula de catecismo: ‘O homem é uma criatura de Deus, composto de um corpo mortal e uma alma imortal’.

Até hoje, a Igreja não consegue se desvencilhar da hegemonia de pensadores gregos, nem no catecismo, nem nos sermões, nem no dogma e na teologia.

Aqui reside uma tarefa para os que querem ir ‘além do padre casado’ e se aprofundar sempre mais na leitura da Bíblia e principalmente dos Evangelhos. Dissipar a neblina, sair do labirinto, da indefinição transmitida pela Igreja, que deixa as pessoas sem eira nem beira. Deixar de falar em salvação, inferno, condenação, pecado e, com Orígenes, falar de Deus Pai, infinitamente bom, que perdoa sempre e se revelou em Jesus de Nazaré.

Preparando o próximo encontro

Nosso trabalho não termina aqui. Ainda estamos diante da seguinte pergunta: como foi possível que a Igreja resolveu seguir as orientações de Agostinho, sem praticamente nenhuma base bíblica, e abandonar as de Orígenes, com bases bíblicas tão sólidas? Como foi que a Igreja se enveredou durante tantos séculos em labirintos de inversão de valores cultivados pela Bíblia e pelos Evangelhos? Como ela, até hoje, valoriza o que não tem valor evangélico (por exemplo, definindo o casamento como um contrato, como fez Mônica) e joga foram o que tem valor (por exemplo, a decisão de um sacerdote que prefere amar uma mulher a seguir um contrato ritualmente assumido)? Essa pergunta só pode ser satisfatoriamente respondida quando trazemos ao debate um novo elemento: a vitória do sacerdote.

 

 

Eduardo Hoornaert

Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, professor, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador.

FONTE: http://padrescasadosceara.blogspot.com.br/2016/05/para-alem-do-padre-casado-i.html

 

 

Fonte: http://padrescasadosceara.blogspot.com.br/2016/05/para-alem-do-padre-casado-ii.html

 

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