ARTIGO – O ‘Caim’ de Saramago. Artigo de Eduardo Hoornaert

“O romance de Saramago pode criar desconforto em leitores(as) acostumados(as) à apresentação de um Deus Senhor Todo-poderoso. Pois a apresentação da história bíblica feita pelo autor é de caráter militante.

Por trás do tom de leveza e humor, que perpassa o texto, existe a ânsia de alguém que percebe que a humanidade se deixa enganar”, escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), em artigo publicado em seu blog, 15-03-2025.

Eis o artigo.

Esplendidamente escrito e demonstrando um domínio insuperável da língua portuguesa, o romance de José Saramago, Prêmio Nobel de literatura, intitulado Caim e editado pela Companhia das Letras (São Paulo, 2009), vem nos surpreender. Caim, irmão de Abel, é inimigo jurado de Senhor Deus. Condenado a viajar do futuro ao passado, das terras do amanhã às terras de ontem, sem nunca encontrar repouso, Caim vê por todo lado maus feitos desse Senhor Deus: por que rejeitar as ofertas de Caim e aceitar as de Abel, se ambos agem de boa vontade? Por que condenar com penas tão cruéis duas mulheres, Eva e a mulher de Lot, que agem por curiosidade, ou seja, por inteligência? Por que ordenar a Abraão matar seu próprio filho? Haverá ordem mais cruel e mais sem sentido? Por que lançar fogo e enxofre do céu sobre as crianças inocentes de Sodoma e Gomorra? Não são elas em maior número que as dez almas sem culpa que o Senhor Deus exigiu para não exterminar as cidades e toda a planície? O que as crianças têm a ver com a perversidade de seus pais? Por que contemplar com benevolência, do alto do Sinai, a matança de três mil pessoas, só porque alguns dançaram em torno de uma imagem, no acampamento do povo no deserto, já que toda criação é feita à imagem e semelhança de deus? Por que vingar de forma tão cruel a matança de 17 soldados israelitas pelas forças de Madiã, a ponto de ordenar o extermínio da cidade? E o que dizer das crueldades cometidas por Josué e seu exército na destruição total de Jericó, por ordem do Senhor?

A lista é interminável. Caim conclui: as ordens do Senhor, além de incompreensíveis, são maldosas. O Senhor Deus só quer a derrota dos homens e Caim resolve combatê-lo de todas as forças. O romance termina dizendo que o Senhor Deus e sua criatura inconformada continuam discutindo pelos séculos afora. A única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda (p. 172).

Que discussão é essa? Eis o que constitui o segredo do romance. O que se pode dizer que Saramago não tem a intenção de escandalizar seus (suas) leitores(as) com disparates levianos e incongruentes contra os textos bíblicos, mas pretende lutar contra uma apresentação banalizada da Bíblia, que tira o sentido do texto, mas que infelizmente constitui a leitura comum nos dias em que vivemos. A estranheza que esse romance provoca em nós mostra que não conhecemos a Bíblia, mas estamos presos(as) a uma apresentação da literatura bíblica feita durante séculos pelas igrejas, por meio de sermões e do catecismo. O(a) leitor(a) atento(a) descobrirá logo que Saramago não comenta textos bíblicos. O romance todo só tem uma citação (da Carta aos Hebreus, 11, 4) no pórtico de entrada. Pelo resto, Saramago não comenta a Bíblia, ele se refere o tempo todo ao que se pode chamar de apresentação catequética da Bíblia, ou seja, à ‘História Sagrada’.

Fonte: Site Instituto Humanitas Unisinos
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