Enquanto outras formas de humor convidam a questionar o poder, a chacota zomba dos fracos, testa os limites da violência “aceitável” contra eles e constroi identidades coletivas brutais. Por isso, é tão importante encontrar antídotos
Eram 14h em um subúrbio do Rio de Janeiro, em outubro de 2022. Um vira-lata, magro, sem dono, pedia comida na manifestação em apoio a Bolsonaro. Um manifestante gritou: “Cuidado com esse cachorro: se Lula ganhar, teremos que chamá-lo de picanha!”. Ao redor, dezenas de pessoas começaram a rir alto, e enriqueceram a piada: “Se Lula ganhar, ele será o primeiro a comê-lo!” gritou um homem vestido de amarelo. “Teremos que tomar cuidado ao comprar um cachorro-quente!”, disse um jovem com uma camiseta de seu líder. Nesse momento, Bolsonaro apareceu no palco. Milhares de bandeiras do Brasil, verdes e amarelas, se levantaram ao grito de “Mito, mito, mito!”, esquecendo o cachorro de rua.
Em outra parte da América Latina, na periferia de Buenos Aires, um seguidor de Milei dizia durante sua campanha em setembro de 2023: “Milei é bom, é um homem que gosta de cães”. “Seus cães fazem parte do seu pensamento”, dizia outro rapaz que havia participado da marcha com sua bicicleta do Uber Eats. “Mas os kirchneristas comem gatos, em breve estaremos comendo cachorros se essa máfia continuar governando!”, exclamou, mais assustado, um homem de meia-idade. “Corremos o risco de ser como a Venezuela, um país risível, um país comunista!”, apontou entre risos e indignação uma mulher idosa.
Essas piadas assustadoras viajaram pelo mundo. Viveram transmutacões e adaptações, até chegar em 2024 ao momento em que Donald Trump afirmou, em um debate presidencial contra Kamala Harris, que os haitianos residentes nos EUA “estão comendo os cães”. A risada de Harris foi sua primeira reação, pois encontrou no discurso do oponente o absurdo retórico que só poderia ser compreendido como chacota. Logo depois, ela mudou de expressão, tentando levar Trump para um terreno mais “sério”.
Neste artigo, analiso o papel que o humor – em especial, sua descaída patife, o deboche — desempenha nos processos de polarização e radicalização política das extremas direitas, especificamente as latino-americanas. Bukele, Milei, Bolsonaro, Kast… não se conectam apenas por seu militarismo, por seu componente autoritário, por seus discursos violentos, pela defesa de várias vertentes de um capitalismo ou pela apropriação do aparato estatal. Eles também o fazem pelo uso do deboche, como influenciadores políticos diretos, e como pontos em torno dos quais seus seguidores constroem relatos humorísticos, principalmente nas redes sociais.
O “sério” vs o “humorístico”
A codificação do discuro a partir das chaves de “seriedade” ou “humor” estrutura-se a partir da suposta dicotomia entre modelos de comunicação opostos. Se o “sério” nos leva a compreender a comunicação de forma direta, de sentido literal, sem interpretação, o humor seria um código comunicativo caracterizado pela interpretação ambígua dos significados, e pela flexibilidade de conceder ou não credibilidade ao conteúdo das informações transmitidas. Elementos humorísticos também podem produzir, com base em sua interpretação múltipla, desinformação e conteúdo falso.
Talvez esse último elemento seja o que melhor representa o perigo que o deboche pode exercer no terreno político. Indicar que as pessoas estão ou estarão em breve comendo cachorros pode ser interpretado de diversas maneiras: ao serem perguntados sobre essa questão, alguns manifestantes no Brasil garantiam, com medo (apesar das risadas anteriores), que não queriam comer cachorros nem qualquer outro animal doméstico; outras pessoas dissecavam o humor, separando o elemento fictício, e indicavam que se tratava apenas de uma zombaria para rir do adversário político. De qualquer uma das interpretações, concluía-se que o humor agia como um potente antidepressivo, construindo amplamente identidades coletivas e normalizando uma violência muito concreta: que a esquerda não teria aquilo que Cardoso de Oliveira chamava de uma “substância moral digna”, e seria um espaço político que não mereceria ser considerado “humano”, pois quebraria o tabu social de se alimentar de animais de estimação e seres com os quais se estabeleceu um vínculo afetivo.
Fonte: Site OUTRAS PALAVRAS
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