Para clarear o tema, convido vocês a imaginar comigo uma cena dos anos 70 dC, apenas 40 anos após a morte de Jesus, no tempo da redação do primeiro Evangelho, o de Marcos. Alguns grupos de imigrantes judeus, que vieram a Roma em busca de emprego, optaram por seguir os ensinamentos de Jesus, o nazareno. Eles falam grego, a língua ‘franca’ do Império Romano, mas conservam usos e costumes de origem aramaica.
Eles constituem uma sinagoga dissidente, não aceita pela oficialidade judaica, mas autêntica, baseada num profundo sentimento de fraternidade. Esses primeiros discípulos de Jesus seguem, pois, a tradição judaica de reunir-se uma vez por semana, nos sábados, para momentos de comensalidade, audição de algum texto bíblico e reza. É normal supor que, nesses momentos, o assassinato extremamente cruel do líder galileu tenha vindo à tona, num clima de muita emoção. Seus grandes feitos também. A memória de Jesus vai acompanhada de manifestações de exaltação, gritos, exclamações, gestos e pulos, como Paulo assinala na Primeira Carta aos Coríntios. O clima de entusiasmo e o gosto pelo ‘maravilhoso’, por milagres e feitos sensacionais, faz com que emerja, com o tempo, um Jesus hierático, que só pronuncia verdades eternas, é sempre sério e ocupa sempre o centro da cena.
Esses primeiros discípulos são, em sua quase totalidade, analfabetos. Os raros alfabetizados, entre eles, costumam ser escravos ou libertos da escravidão, como a historiadora inglesa Cândida Moss vem nos revelar recentemente num estudo inovador. Ela comenta a relação existente, nos tempos em que surge o cristianismo, entre alfabetização e escravidão. Na época, apenas 5 a 10 por cento da população era alfabetizado. Os apóstolos, em geral, eram analfabetos, sendo Paulo de Tarso uma exceção. As sociedades, que viviam sob o comando do Império Romano, eram escravocratas. Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam seus próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto.
Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da moderna, atlântica, que mantinha os escravos no analfabetismo. Mas como, nos tempos do Império Romano, o ato de escrever era uma tarefa penosa, árdua, cansativa e desgastante, acontecia que escravos se alfabetizaram para depois poder estar a serviço de comunidades analfabetas. É de se supor, pois, que foram escravos ou libertos cristãos, que liam relatos acerca da vida de Jesus diante de ouvintes analfabetos.
É de se compreender que, nessas circunstâncias, não haja muito interesse em investigar historicamente a vida concreta de Jesus de Nazaré. Do processo emerge um Jesus narrativo. A impressão que temos é que os primeiros, que se metem a escrever, estão interessados em apresentar uma imagem de Jesus que possa animar a fé dos/das colegas. Impulsionados por ondas crescentes de uma tradição oral que se cria a partir da horrível morte do líder de Nazaré, e que já se consolida ao longo de 40 a 70 anos (40 anos no caso de Marcos, pelo menos 50 anos no caso de Mateus e Lucas e 70 anos no caso de João), o interesse desses evangelistas parece consistir em apresentar um Jesus que anime e sustente a fé dos discípulos e das discípulas em meio à hostilidade, incompreensão, desprezo e mesmo perseguição aberta (com perigo de vida), por parte da sociedade e das autoridades.
Uma luminosa auréola passa a envolver a figura de Jesus, que cresce com o tempo. Jesus não só expulsa sopros maus, cura leprosos, socorre necessitados, mas passa a andar sobre as águas, acalmar tempestades, multiplicar pães. Ele torna-se um novo Elias, o grande profeta da memória popular judaica, que multiplicava pão para a viúva de Sarepta, lançava seu manto sobre as águas e as separava, ressuscitava mortos. Torna-se um novo Moisés, libertador do povo hebreu escravizado no Egito. Esse Jesus, fazedor de milagres e feitos impressionantes, sustenta a fé dos primeiros seguidores. Combatidas, desprezadas e mal interpretadas, as comunidades de discípulos e discípulas visam, antes de tudo, manter e avivar a imagem de um Jesus que, ressuscitado e divino, demonstra a mais tenaz resiliência, a mais viva resistência, a mais forte persuasão. E eles têm sucesso. Pois, enquanto diversos movimentos proféticos e messiânicos da época sucumbem aos golpes da perseguição por parte da oficialidade, o movimento de Jesus resiste. Os/as discípulos/as seguidores/as sabem descobrir algo diferente em seu líder, algo que o destaque. Para tanto, eles/elas abandonam a memória histórica em benefício de uma imaginação mitológica, em grande parte fundamentada em textos das Escrituras Sagradas. Na realidade, misturam história e mito.
Só por ocaso, em flashes esporádicos, tomamos conhecimento de fatos históricos acerca de Jesus. Dou uns exemplos: o evangelista Marcos, no sexto capítulo de seu Evangelho, nos informa ‘de passagem’ que Jesus tem quatro irmãos e pelo menos duas irmãs. E, no quarto capítulo de seu Evangelho, Lucas conta que os nazarenos estranham o comportamento do conterrâneo Jesus e o rejeitam. Mas esses raros dados históricos não são sistematicamente trabalhados, não se enquadram num esquema historiográfico. As raras cenas historiográficas flutuam como destroços de um naufrágio em meio a discursos de cunho narrativo e metafórico.
Temos de recordar também um dado de ordem política: no ano 70, os romanos destroem o Templo de Jerusalém. Nessas circunstâncias, as lideranças do movimento de Jesus, já ameaçadas por hostilidades de todo tipo, não devem ter achado prudente abordar o tema de Jesus provocativo.
Conclusão: para alcançar a política provocativa de Jesus, temos de ‘desvendar’ Jesus de Nazaré, ou seja, retirar a venda que nos impede enxergar claramente sua pessoa, tal qual andou pela Galileia, vinte séculos atrás. Paradoxalmente, foram os evangelhos que colocaram essa venda em nossos olhos. No fundo, temos de voltar ao questionamento dos escolásticos medievais: fides quaerens intellectum: ‘a fé em busca de inteligência’. Pois, em muitos casos, a fé concreta, praticada pelo povo, até nossos dias, é cega, enxerga mal os reais intentos de ações e palavras de Jesus.
Três episódios em que Jesus se revela provocativo: as bodas de Caná;
a vocação de Levi e a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém.