A filósofa e feminista italiana Adriana Cavarero (Bra, 1947) comete um roubo de enredo: sequestra certas figuras femininas que aparecem nos textos de Platão (pelas quais o autor não sente uma simpatia especial), e as ressignifica, dando-lhes uma visão, um significado diferente, tornando-as soberanas de si mesmas, com profundidade (e altura) singulares. O resultado, A pesar de Platón (Galaxia Gutenberg).
Eis o Artigo
Quando é apropriado contrariar o mandamento divino e roubar, saquear, saquear, roubar, descontextualizar?
É conveniente quando se deseja reinterpretar o texto filosófico a partir de uma perspectiva inesperada, como a do sujeito feminino que a tradição do texto patriarcal expulsou, confinando as mulheres à esfera doméstica e retirando-lhes a voz. Aristóteles diz, por exemplo, que as mulheres falam, mas as suas palavras não têm autoridade. Basicamente, elas conversam.
Mais do que com Platão, não deveríamos confrontar todos aqueles que continuam a manter a desigualdade que encontramos desde o início na maioria dos textos filosóficos?
Claro, Platão é apenas o pai da filosofia e todos os seus filhos, ao longo dos séculos, coletando seu legado, aderem à abordagem misógina de filosofar. Nos meus livros roubo todos os seus textos, é um prazer.
O que acontece com todas aquelas mulheres que se identificam com Platão, na perspectiva que você combate, com Circe, com Penélope, vista do ponto de vista canônico?
É natural que muitas mulheres eruditas continuem a seguir a tradição em que foram educadas. Nas últimas décadas, porém, os Estudos sobre a Mulher e os Estudos de Gênero desenvolveram-se numa grande parte do mundo acadêmico, o que torna mais fácil estar atento à alegada universalidade e neutralidade do ponto de vista canônico, que é na verdade um ponto de vista masculino.
O lugar da mulher a que o homem relegou foi o oikos, a casa e os seus habitantes, o mundo da escuta, dos afetos. Será mais a impossibilidade de abandoná-la do que o próprio lugar atribuído que pesou na desigualdade?
É difícil escapar a todos os papéis estereotipados que a tradição atribuiu às mulheres e que continuam a pesar na sua vida real. Porém, desde Mary Wollstonecraft e toda a história do feminismo até hoje, a crítica à desigualdade e a consciência da liberdade feminina deram passos gigantescos. Pelo menos no mundo ocidental, há uma grande diferença entre a prisão doméstica em que a minha avó viveu e o mundo das mulheres livres e emancipadas em que as mulheres vivem hoje. O feminismo em que me reconheço tem o objetivo preciso de ajudar as mulheres a pensarem-se fora dos papéis tradicionais, mesmo fora de um modelo de igualdade que corre o risco de assimilá-las aos homens e aos valores masculinos, em suma, ajudá-las a pensar livre na sua diferença.
Fonte: Site Instituto Humanitas Unisinos
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