
Andrea Grillo – 16 Agosto 2021 – Imagem: DAQUI
O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 15-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A recente reação do cardeal Robert Sarah ao motu proprio Traditionis custodes, que pode ser lido em italiano aqui, para além das indicações polêmicas e das afirmações arriscadas, mostra de modo bastante claro que todo o seu raciocínio gira em torno da pretensa “evidência de um princípio” que parece altamente problemático: de fato, é um princípio que não é um princípio.
Mas sigamos com ordem. Resumo brevemente o texto.
- Para Robert Sarah, a Igreja Católica deve ser um ponto de referência em nível mundial, como princípio de unidade.
- Para fazer isso, ela deve permanecer “na cadeia ininterrupta que a liga a Cristo”.
- Esse vínculo com Cristo é um “desenvolvimento orgânico, que chamamos de tradição viva”.
Até aqui tudo bem. Mas, na segunda passagem, ele chama para o campo Bento XVI e a sua expressão dessa “tradição viva”, como ela aparecia na “carta aos bispos” que acompanhava o Summorum pontificum em 2007:
“Na história da liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. O que as gerações anteriores consideravam sagrado permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser repentina e completamente proibido ou mesmo considerado prejudicial. É dever de todos nós preservar as riquezas que se desenvolveram na fé e na oração da Igreja e dar-lhes o lugar certo.”
Esse é o “princípio”, que poderíamos chamar de “princípio de imutabilidade do sagrado”, que, em 2007,
- pretendia fundamentar sistematicamente uma construção jurídica bastante ousada, que beira em grande medida a “ficção”:
- a partir desse princípio, pretende-se derivar uma “vigência paralela” de duas “formas” ou “usos” do rito romano,
- mas que se contradizem, pois a segunda nasceu para emendar, corrigir, integrar e converter a primeira.
Francisco, Sarah e Bento XVI – Montagem: DAQUI
- O princípio, de fato, reconstrói a “continuidade” como vigência contemporânea de formas não coerentes entre si.
- Aqui há um vício lógico, histórico, espiritual e teológico que invalida tanto a reconstrução histórica quanto a solução prática:
- ela pretende instituir, em vista de uma suposta reconciliação, um paralelismo ritual entre “forma ordinária” e “forma extraordinária”, que na realidade mina na raiz a paz eclesial.
Precisamos ser muito claros: a paz na Igreja se realiza não porque cada um pode ter acesso à sua “própria” forma ritual, mas porque todos se reconhecem na única forma vigente.
Robert Sarah, lendo superficialmente as palavras de Bento XVI, imagina que a “continuidade” só pode ser garantida pela “multiplicidade paralela das formas”.
De fato, ele escreve:
- “Se a Igreja afirma a continuidade entre aquela que é comumente chamada de Missa de São Pio V e a Missa de Paulo VI, então a Igreja deve ser capaz de organizar a sua convivência pacífica e o seu recíproco enriquecimento.
- Se fosse necessário excluir radicalmente uma em favor da outra, se fosse necessário declará-las irreconciliáveis, reconhecer-se-ia implicitamente uma ruptura e uma mudança de orientação.
- Mas então a Igreja não poderia mais oferecer ao mundo aquela continuidade sagrada, a única que pode lhe dar paz.”
O que falta a Robert Sarah, em relação às palavras de Bento XVI, é a categoria de “hermenêutica da reforma”. Sarah raciocina de acordo com a contraposição entre “continuidade” e “ruptura”. E pensa que não há outra mediação possível.
No famoso discurso à Cúria Romana de dezembro de 2005, no entanto, Bento XVI falava de “hermenêutica da reforma” e encontrava nela a mediação entre a continuidade absoluta e a descontinuidade absoluta.
Ora, é verdade que, no Summorum pontificum, Bento XVI parece pensar a reforma apenas como “continuidade da forma extraordinária”.
E aqui está o ponto cego daquele documento, a sua fragilidade sistemática e o risco institucional que ele acarreta e que, de algum modo, também propaga no nosso futuro.
Com um princípio de imutabilidade do sagrado que está longe de ser evidente, pretendeu-se fundamentar uma “paz” que, na realidade, era apenas uma “guerra fria”.
Por outro lado, Robert Sarah parece ignorar um elemento que seria muito útil à sua reflexão.
- O suposto “princípio” enunciado por Bento XVI não tem nenhum precedente na tradição litúrgica,
- exceto nas palavras do cardeal Siri, em 1951, e nas de Dom Lefebvre, em 1968.
Ambos tinham pedido de alguma forma (o primeiro a Pio XII e o segundo a Paulo VI) para permanecerem “imunes” às reformas que aqueles papas haviam realizado.
O princípio de “imunização” das reformas, porém, não pode ser vendido como um princípio de paz. Pelo contrário,
- é um elemento de conflito universal,
- que mina a unidade de cada Igreja particular,
- porque interrompe o desenvolvimento orgânico da transição,
- que sempre procede mediante uma continuidade que se enriquece com passagens descontínuas.
Para esclarecer melhor as coisas, gostaria de mostrar, ao contrário, a impraticabilidade concreta do “princípio de imutabilidade do sagrado”.
No momento em que se aceitasse que
- toda “forma sagrada” da liturgia católica permanece válida
- independentemente daquilo que concílios, papas ou bispos possam ter deliberado a esse respeito,
- estaríamos na impossibilidade concreta de orientar um caminho comum de desenvolvimento do culto.
O exemplo mais evidente surgiu precisamente da “aplicação” que a Comissão Ecclesia Dei fez do texto do Summorum pontificum.
- O “princípio de imutabilidade do sagrado” se revela nesse caso, justamente, como um princípio “anárquico”:
- uma vez afirmado esse princípio, nenhuma forma é verdadeiramente “última” e “certa”.
Vimos isso muito bem no Tríduo Pascal:
- diversos institutos e bispos (especialmente norte-americanos) haviam pedido à Comissão Ecclesia Dei
- a faculdade de poderem celebrar com os ritos não de 1962,
- mas com os que antecederam as reformas de 1951-1956, realizadas por Pio XII.
Por si só, o “princípio de imutabilidade do sagrado” permite um “regresso” sem fim: ou, melhor, torna-o quase normativo! Assim, quase toda paróquia, para não falar de todo padre, poderia ter tido o seu rito diferente e “mais sagrado”!
À luz desse exemplo, parece realmente surpreendente o modo rude e injustificado com que Robert Sarah encerra a sua intervenção, alimentando uma polêmica direta não só infundada, mas também paradoxal contra o Papa Francisco:
- “Um pai não pode introduzir desconfiança e divisão entre os seus filhos fiéis.
- Não pode humilhar alguns, colocando-os contra outros.
- Não pode ostracizar alguns dos seus sacerdotes.
- A paz e a unidade que a Igreja pretende oferecer ao mundo devem ser vividas primeiro dentro da Igreja.
- Em matéria litúrgica, nem a violência pastoral nem a ideologia partidária jamais produziram frutos de unidade.
- O sofrimento dos fiéis e as expectativas do mundo são grandes demais para se envolverem nessas vias sem saída.”
Para restaurar as coisas à sua verdade, é preciso dizer com grande clareza:
desde sempre,
- o “desenvolvimento orgânico” do rito romano encontrou continuidade depois de uma reforma na assunção comum da nova forma,
- não na conservação da nova junto com a velha.
- A paz é feita na aceitação comum do percurso de reforma, não na contraposição do velho rito com o novo.
Com o Traditionis custodes, ninguém foi humilhado ou contraposto. Digamos, em vez disso, que alguns haviam sido iludidos de que a paz podia ser promovida “hibernando” o Concílio Vaticano II e as suas consequências.
- Não é garantindo a uma parte da Igreja que ela pode ser católica abrindo mão de entrar nas lógicas do Vaticano II
- que se pode pretender assegurar uma paz verdadeira.
O gesto verdadeiramente católico
- não é o princípio equívoco da imutabilidade do sagrado e a ficção jurídica da dupla forma inventada pelo Papa Bento XVI,
- mas o realismo razoável de Francisco:
- ele restaura a autoridade ao Concílio Vaticano II e aos bispos, restabelece qual é a única forma viva do rito romano e, assim, permite que a Igreja tenha autoridade de modo unitário.
A grande tradição a ser conservada
- não é a do paralelismo entre duas formas do rito romano – que é uma genial, mas frágil invenção do Papa Bento XVI no rastro de Siri e Lefebvre –
- mas a do “desenvolvimento orgânico” que a reforma litúrgica assegurou e ainda pode assegurar.
Ai de quem chama o mal de bem e o bem de mal.
- Não são os teólogos que querem alimentar as “guerras litúrgicas”,
- mas aqueles pastores que usam as palavras de modo pouco responsável, pouco fundamentado e pouco ponderado,
- iludindo os fiéis de que a paz pode ser feita “imunizando” uma parte da Igreja da história comum.
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Andrea Grillo
Fonte: https://www.crescermais.org/arquivos/artigos/gr_64920687d18ff8efade1e14a22044eca.jpg
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Uma resposta
O sagrado não é dado é construído, a vida só acontece em kairós. O rito romano estava enferrujado em 1962. Com a ruptura provocada pelo Vaticano II, aflora um novo jeito de ser Igreja e vai até às CEBs e o novo rito latino do Vaticano II/Paulo VI, é o renovo.
Sempre tem que existir rupturas, senão mata-se Deus, tem que romper a placenta, senão o menino não nasce. Se não tiver revolução também não haverá Paz. Jesus é mestre em rupturas, rompeu com a morte, quebrou a casca da morte e saiu o renovo, a Ressurreição.
Bento XVI, Sarah, filhotes de Lefebvre não aceitam nem admitem, querem é imunização e blindagem às mudanças e reformas. Absurdo. A primeira ruptura é operacionalizado por Adão: comeram o fruto proibido e abriram a porta do Céu. “Oh felix culpa”, diz o Exultet.
O sagrado tem que mudar e se adaptar, senão vira profano, banal. Enquanto não se puder consagrar vinho de Jussara na Missa amazônica e o “pão” de Mandioca, não chegou o renovo na liturgia e ponto final. São meus devaneios em homenagem ao santo padre casado Fontenelle de Bacabal, com as bênçãos de J. Tavares.