VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO EGITO – Discursos

Papa Francisco durante a Missa no Estádio da Aeronáutica Militar do Cairo

br.radiovaticana.va/news/2017 – 30/04/2017

Discursos do papa Francisco na sua breve mas densa viagem ao Egito.

  1. AOS PARTICIPANTES NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EM PROL DA PAZ
  2. ENCONTRO COM AS AUTORIDADES 
  3. VISITA DE CORTESIA A S.S. PAPA TAWADROS II e DECLARAÇÃO COMUMO 
  4. AOS RELIGIOSOS E SEMINARISTAS

DISCURSOS DO PAPA FRANCISCO NO EGITO

(28-29 DE ABRIL DE 2017)

DISCURSO DO SANTO PADRE AOS PARTICIPANTES NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EM PROL DA PAZ

Cairo ― Centro de Conferências Al-Azhar, sexta-feira, 28 de abril de 2017

Al Salamò Alaikum (A paz esteja convosco)!

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É um grande dom estar aqui e começar neste lugar a minha visita ao Egito, dirigindo-me a vós no âmbito desta Conferência Internacional em prol da Paz. Agradeço ao meu irmão, o Grande Imã, por a ter idealizado e organizado e por me ter gentilmente convidado.

Gostaria de vos oferecer alguns pensamentos, tirando-os da gloriosa história desta terra, que ao longo dos séculos se apresentou ao mundo como terra de civilização e terra de alianças.

Terra de civilização. Desde a antiguidade, a cultura surgida nas margens do Nilo foi sinónimo de civilização: no Egito, levantou-se alta a luz do conhecimento, fazendo germinar um património cultural inestimável, feito de sabedoria e talento, de conquistas matemáticas e astronómicas, de formas admiráveis de arquitetura e arte figurativa.

A busca do saber e o valor da instrução foram opções fecundas de desenvolvimento empreendidas pelos antigos habitantes desta terra. E constituem opções necessárias também para o futuro, opções de paz e em prol da paz, porque não haverá paz sem uma educação adequada das gerações jovens. Nem haverá uma educação adequada para os jovens de hoje, se a formação que lhes for dada não corresponder bem à natureza do homem, ser aberto e relacional.

Com efeito, a educação torna-se sabedoria de vida, quando é capaz de tirar do homem, em contacto com Aquele que o transcende e com aquilo que o rodeia, o melhor de si, formando identidades não fechadas em si mesmas. A sabedoria procura o outro, superando a tentação da rigidez e fechamento; aberta e em movimento, humilde e ao mesmo tempo indagadora, sabe valorizar o passado e pô-lo em diálogo com o presente, sem renunciar a uma hermenêutica adequada. Esta sabedoria prepara um futuro em que se visa fazer prevalecer, não a própria parte, mas o outro como parte integrante de si mesmo; aquela não se cansa de individuar, no presente, ocasiões de encontro e partilha; do passado, aprende que do mal brota unicamente mal, e da violência só violência, numa espiral que acaba por nos fazer prisioneiros. Esta sabedoria, rejeitando a avidez de prevaricação, coloca no centro a dignidade do homem, precioso aos olhos de Deus, e uma ética que seja digna do homem, rejeitando o medo do outro e o temor de conhecer mediante os meios de que o dotou o Criador.[1]

Precisamente no campo do diálogo, sobretudo inter-religioso, sempre somos chamados a caminhar juntos, na convicção de que o futuro de todos depende também do encontro entre as religiões e as culturas. Oferece-nos um exemplo concreto e encorajador, neste sentido, o trabalho do Comité Misto para o Diálogo entre o Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o Comité de Al-Azhar para o Diálogo. Há três diretrizes fundamentais que, se forem bem conjugadas, podem ajudar o diálogo: o dever da identidade, a coragem da alteridade e a sinceridade das intenções. O dever da identidade, porque não se pode construir um verdadeiro diálogo sobre a ambiguidade nem sobre o sacrifício do bem para agradar ao outro; a coragem da alteridade, porque quem é cultural ou religiosamente diferente de mim, não deve ser visto e tratado como um inimigo, mas recebido como um companheiro de viagem, na genuína convicção de que o bem de cada um reside no bem de todos; a sinceridade das intenções, porque o diálogo, enquanto expressão autêntica do humano, não é uma estratégia para se conseguir segundos fins, mas um caminho de verdade, que merece ser pacientemente empreendido para transformar a competição em colaboração.

Educar para a abertura respeitosa e o diálogo sincero com o outro, reconhecendo os seus direitos e liberdades fundamentais, especialmente a religiosa, constitui o melhor caminho para construir juntos o futuro, para ser construtores de civilização. Porque a única alternativa à civilização do encontro é a incivilidade do conflito; não há outra. E, para contrastar verdadeiramente a barbárie de quem sopra sobre o ódio e incita à violência, é preciso acompanhar e fazer amadurecer gerações que, à lógica incendiária do mal, respondam com o crescimento paciente do bem: jovens que, como árvores bem plantadas, estejam enraizadas no terreno da história e, crescendo para o Alto e junto dos outros, transformem dia-a-dia o ar poluído do ódio no oxigénio da fraternidade.

Para este desafio tão urgente e apaixonante de civilização, somos chamados, cristãos, muçulmanos e todos os crentes, a prestar a nossa contribuição: «Vivemos sob o sol de um único Deus misericordioso. (…) Assim, no verdadeiro sentido, podemos chamar-nos, uns aos outros, irmãos e irmãs (…), dado que, sem Deus, a vida do homem seria semelhante ao firmamento sem o sol».[2] Que se levante o sol duma renovada fraternidade em nome de Deus e surja desta terra, beijada pelo sol, o alvorecer duma civilização da paz e do encontro. Interceda por isto mesmo São Francisco de Assis, que, há oito séculos, veio ao Egito e encontrou o Sultão Malik al Kamil.

Terra de alianças. No Egito, não surgiu apenas o sol da sabedoria; também a luz policromática das religiões iluminou esta terra: aqui, ao longo dos séculos, as diferenças de religião constituíram «uma forma de enriquecimento recíproco ao serviço da única comunidade nacional».[3] Encontraram-se crenças diferentes e misturaram-se várias culturas, sem se confundirem mas reconhecendo a importância de se aliarem para o bem comum. Alianças deste género são ainda mais urgentes hoje. Ao falar disto, gostaria de usar como símbolo o «Monte da Aliança» que se ergue nesta terra. Antes de mais nada, o Sinai lembra-nos que uma autêntica aliança sobre a terra não pode prescindir do Céu, que a humanidade não pode pretender encontrar-se em paz excluindo Deus do horizonte, nem pode subir ao monte para se apoderar de Deus (cf. Ex 19, 12).

Trata-se de uma mensagem atual, visto o perdurar hodierno dum paradoxo perigoso: por um lado, tende-se a relegar a religião para a esfera privada, não a reconhecendo como dimensão constitutiva do ser humano e da sociedade e, por outro, confundem-se, não as distinguindo adequadamente, as esferas religiosa e política. A religião corre o risco de ser absorvida pela gestão de assuntos temporais e tentada pelas adulações de poderes mundanos que, na realidade, a instrumentalizam. Num mundo que globalizou muitos instrumentos técnicos úteis, mas ao mesmo tempo tanta indiferença e negligências, e que corre a uma velocidade frenética, dificilmente sustentável, sente-se a nostalgia das grandes questões de sentido que as religiões fazem aflorar e que suscitam a memória das próprias origens: a vocação do homem, que não foi feito para se exaurir na precariedade dos assuntos terrenos, mas para se encaminhar rumo ao Absoluto para o qual tende. Por estas razões a religião, especialmente hoje, não constitui um problema mas é parte da solução: contra a tentação de se contentar com uma vida superficial em que tudo começa e termina aqui, a religião lembra-nos que é necessário elevar o espírito para o Alto a fim de aprender a construir a cidade dos homens.

Neste sentido e com o olhar da mente fixado ainda no Monte Sinai, gostaria de me referir aos mandamentos lá promulgados, antes de serem gravados na pedra.[4] No centro das «Dez Palavras» ecoa, dirigido aos homens e aos povos de todos os tempos, o mandamento «não matarás» (Ex 20, 13). Deus, amante da vida, não cessa de amar o homem e, por isso, exorta-o a contrastar o caminho da violência como pressuposto fundamental de toda a aliança sobre a terra. Para atuar este imperativo, estão chamadas em primeiro lugar, sobretudo nos dias de hoje, as religiões, porque, encontrando-nos na necessidade urgente do Absoluto, é imprescindível excluir qualquer absolutização que justifique formas de violência. Com efeito, a violência é a negação de toda a religiosidade autêntica.

Assim, como responsáveis religiosos, somos chamados a desmascarar a violência que se disfarça de suposta sacralidade, apoiando-se na absolutização dos egoísmos, em vez de o fazer na autêntica abertura ao Absoluto. Devemos denunciar as violações contra a dignidade humana e contra os direitos humanos, trazer à luz do dia as tentativas de justificar toda a forma de ódio em nome da religião e condená-las como falsificação idólatra de Deus: o seu nome é Santo, Ele é Deus de paz, Deus salam.[5] Por isso, só a paz é santa; e nenhuma violência pode ser perpetrada em nome de Deus, pois profanaria o seu Nome.

Juntos, a partir deste lugar de encontro entre Céu e terra, de alianças entre as nações e entre os crentes, reiteramos um «não» forte e claro a toda a forma de violência, vingança e ódio cometida em nome da religião ou em nome de Deus. Juntos, afirmamos a incompatibilidade entre violência e fé, entre crer e odiar. Juntos, declaramos a sacralidade de cada vida humana contra qualquer forma de violência física, social, educativa ou psicológica. A fé que não nasce dum coração sincero e dum amor autêntico a Deus Misericordioso é uma forma de adesão convencional ou social que não liberta o homem, mas esmaga-o. Digamos juntos: quanto mais se cresce na fé em Deus, tanto mais se cresce no amor do próximo.

Mas, com certeza, a religião não é chamada apenas a desmascarar o mal; traz em si a vocação de promover a paz, hoje como talvez nunca antes.[6] Sem ceder a sincretismos conciliadores,[7] a nossa tarefa é rezar uns pelos outros pedindo a Deus o dom da paz, encontrar-nos, dialogar e promover a concórdia em espírito de colaboração e amizade. Nós, enquanto cristãos – e eu sou cristão –, «não podemos invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à sua imagem».[8] Irmãos de todos. Além disso, reconhecemos que, imersos numa luta constante contra o mal que ameaça o mundo para deixar de ser «um lugar de verdadeira fraternidade», àqueles que «acreditam no amor de Deus [é-lhes dada por Deus] a certeza de que o caminho do amor está aberto para todos e que o esforço para estabelecer a universal fraternidade não é vão».[9] Antes pelo contrário, são essenciais. Com efeito, de pouco ou nada serve levantar a voz e correr ao rearmamento para se proteger: hoje há necessidade de construtores de paz, não de armas; hoje há necessidade de construtores de paz, não de provocadores de conflitos; de bombeiros e não de incendiários; de pregadores de reconciliação e não de arautos de destruição.

Assiste-se, perplexos, ao facto de, por um lado, se distanciar da realidade dos povos em nome de objetivos que não têm em conta a vida concreta das pessoas, enquanto, por outro lado e como reação, surgem populismos demagógicos, que certamente não ajudam a consolidar a paz e a estabilidade: nenhum incitamento violento garantirá a paz, e toda a ação unilateral que não dê início a processos construtivos e compartilhados, de facto torna-se um brinde para os adeptos dos radicalismos e da violência.

Para evitar os conflitos e construir a paz é fundamental trabalhar por remover as situações de pobreza e exploração, onde mais facilmente criam raízes os extremismos, e bloquear os fluxos de dinheiro e de armas para quem fomenta a violência. Indo ainda mais à raiz, é necessário deter a proliferação de armas que, se forem produzidas e comercializadas, mais cedo ou mais tarde acabarão também por ser usadas. Só tornando transparentes as turvas manobras que alimentam o câncer da guerra é que será possível impedir as suas causas reais. A este compromisso urgente e gravoso, estão obrigados os líderes das nações, das instituições e da informação, responsáveis de civilização como nós, convocados por Deus, pela história e pelo futuro a iniciar, cada qual no seu próprio campo, processos de paz, não se esquivando a estabelecer bases sólidas de aliança entre os povos e os Estados. Faço votos de que esta nobre e querida terra do Egito, com a ajuda de Deus, possa continuar a corresponder à sua vocação de civilização e de aliança, contribuindo para desenvolver processos de paz para este povo amado e para toda a região do Médio Oriente.

Al Salamò Alaikum (A paz esteja convosco)!

[1] «Aliás, uma ética de fraternidade e coexistência pacífica entre as pessoas e entre os povos não se pode basear na lógica do medo, da violência e do fechamento, mas na responsabilidade, no respeito e no diálogo sincero» (Francisco, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, «A não-violência: estilo de uma política para a paz», 5).

[2] João Paulo II,  Discurso às Autoridades Muçulmanas, Kaduna (Nigéria), 14 de fevereiro de 1982.

[3] Idem, Discurso na Cerimónia de Chegada, Cairo, 24 de fevereiro de 2000, 2.

[4] «Foram impressos no coração do homem como Lei moral universal, válida em todos os tempos e lugares». Oferecem a «base autêntica para a vida dos indivíduos, das sociedades e nações; (…) são o único futuro da família humana. Salvam o homem da força destruidora do egoísmo, do ódio e da mentira. Evidenciam todos os falsos bens que o arrastam para a escravidão: o amor de si mesmo até à exclusão de Deus, a avidez do poder e do prazer que subverte a ordem da justiça e degrada a nossa dignidade humana e a do nosso próximo» (Idem, Homilia na Celebração da Palavra no Monte Sinai, Mosteiro de Santa Catarina, 26 de fevereiro de 2000, 3).

[5] Cf. Francisco, Discurso na Mesquita Central de Koudoukou, Bangui (República da África Central), 30 de novembro de 2015.

[6] «Talvez nunca antes na história, como agora, o laço intrínseco que existe entre uma atitude autenticamente religiosa e o grande bem da paz se tenha tornado evidente a todos» (João Paulo II, Discurso aos Representantes das Igrejas Cristãs e Comunidades Eclesiais e das Religiões Mundiais, Assis, 27 de outubro de 1986, 6).

[7] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 251.

[8] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Nostra aetate, 5.

[9] Idem, Const. past. Gaudium et spes, 37.38.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO EGITO (28-29 DE ABRIL DE 2017)

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES

DISCURSO DO SANTO PADRE

Cairo ― Hotel Al Masah, sexta-feira, 28 de abril de 2017

Senhor Presidente,

Grande Imã de Al-Azhar,

Distintos Membros do Governo e do Parlamento,

Ilustres Embaixadores e membros do Corpo Diplomático,

Prezados Senhores e Senhoras,

Al Salamò Alaikum (A paz esteja convosco)!

Agradeço-lhe, Senhor Presidente, as suas palavras cordiais de boas-vindas e o amável convite que me dirigiu para visitar o seu querido país.

Conservo viva lembrança da sua visita a Roma em novembro de 2014, bem como do encontro fraterno com Sua Santidade Papa Tawadros II em 2013, e do Grande Imã da Universidade de Al-Azhar, Dr. Ahmad Al-Tayyib, no ano passado.

Sinto-me feliz por me encontrar no Egito, terra duma civilização muito antiga e nobre, cujos vestígios podemos admirar ainda hoje e que, na sua majestade, parecem querer desafiar os séculos.

Esta terra é muito significativa para a história da humanidade e para a Tradição da Igreja, não só pelo seu prestigioso passado histórico – faraónico, copta e muçulmano –, mas também porque muitos Patriarcas viveram no Egito ou o cruzaram. Na verdade, aparece mencionado numerosas vezes na Sagrada Escritura. Nesta terra, Deus fez-Se ouvir, «revelou o seu nome a Moisés»[1] e, no Monte Sinai, confiou ao seu povo e à humanidade os Mandamentos divinos. No solo egípcio, encontrou refúgio e hospitalidade a Sagrada Família: Jesus, Maria e José.

Esta hospitalidade, generosamente oferecida há mais de dois mil anos, permanece na memória coletiva da humanidade, sendo fonte de bênçãos abundantes que continuam a derramar-se. Assim o Egito é uma terra que, de certo modo, todos nós sentimos como nossa! E, como dizeis, «misr um al dugna (o Egisto é a mãe do universo)». Também hoje encontram aqui hospitalidade milhões de refugiados provenientes de vários países, entre os quais se conta o Sudão, a Eritreia, a Síria e o Iraque; refugiados esses, aos quais se procura, com um louvável esforço, integrar na sociedade egípcia.

Por causa da sua história e da sua particular posição geográfica, o Egito ocupa um papel insubstituível no Médio Oriente e no contexto dos países empenhados na busca de soluções para problemas agudos e complexos que precisam de ser encarados agora para se evitar uma precipitação de violência ainda mais grave. Refiro-me à violência cega e desumana, causada por vários fatores: o desejo obtuso de poder, o comércio de armas, os graves problemas sociais e o extremismo religioso que utiliza o Santo Nome de Deus para realizar inauditos massacres e injustiças.

Este destino e esta tarefa do Egito constituem também o motivo que levou o povo a solicitar um Egito, onde a ninguém falte o pão, a liberdade e a justiça social. Com certeza, este objetivo tornar-se-á realidade, se todos juntos tiverem a vontade de transformar as palavras em ações, as aspirações válidas em compromissos, as leis escritas em leis aplicadas, valorizando a genialidade inata deste povo.

Assim o Egito tem uma tarefa singular: reforçar e consolidar também a paz regional, apesar de se ver, em seu próprio território, ferido por violências cegas. Tais violências fazem sofrer injustamente tantas famílias – algumas das quais aqui presentes – que choram os seus filhos e filhas.

Penso de modo particular em todas as pessoas que, nos últimos anos, deram a vida para salvaguardar a sua pátria: os jovens, os membros das forças armadas e da polícia, os cidadãos coptas e todos os desconhecidos que tombaram por causa de várias ações terroristas. Penso também nos assassinatos e nas ameaças que levaram a um êxodo de cristãos do Sinai setentrional. Expresso viva gratidão às autoridades civis e religiosas e a quantos deram hospitalidade e assistência a estas pessoas tão provadas. Penso igualmente naqueles que foram atingidos nos atentados contra as igrejas coptas, quer em dezembro passado quer mais recentemente em Tanta e Alexandria. Aos seus familiares e a todo o Egito, as minhas sentidas condolências com a certeza da minha oração ao Senhor pela rápida recuperação dos feridos.

Senhor Presidente, ilustres Senhores e Senhoras!

Não posso deixar de encorajar os esforços audaciosos na realização de numerosos projetos nacionais, bem como as muitas iniciativas que foram tomadas a favor da paz no país e fora dele, tendo em vista o almejado desenvolvimento na prosperidade e na paz que o povo deseja e merece.

O desenvolvimento, a prosperidade e a paz são bens indispensáveis que merecem todos os sacrifícios; constituem também objetivos que requerem trabalho sério, compromisso convicto, metodologia adequada e sobretudo respeito incondicional pelos direitos inalienáveis do homem, tais como a igualdade entre todos os cidadãos, a liberdade religiosa e de expressão, sem distinção alguma.[2] Tais objetivos exigem uma atenção especial ao papel da mulher, dos jovens, dos mais pobres e dos doentes. Na realidade, o verdadeiro desenvolvimento mede-se pela solicitude que se dedica ao homem – coração de todo o desenvolvimento –, à sua educação, saúde e dignidade; com efeito, a grandeza de qualquer nação revela-se no cuidado que efetivamente dedica aos membros mais frágeis da sociedade: as mulheres, as crianças, os idosos, os doentes, as pessoas com deficiência, as minorias, de modo que nenhuma pessoa e nenhum grupo social fique excluído ou marginalizado.

Perante um delicado e complexo cenário mundial, fazendo pensar naquela que designei uma «guerra mundial aos pedaços», é preciso afirmar que não se pode construir a civilização sem repudiar toda a ideologia do mal, da violência e toda a interpretação extremista que pretende aniquilar o outro e destruir as diversidades, manipulando e ultrajando o Santo Nome de Deus. O Senhor Presidente falou disto várias vezes e em diferentes circunstâncias com clareza, que merece escuta e apreço.

Todos temos o dever de ensinar às novas gerações que Deus, o Criador do céu e da terra, não precisa de ser protegido pelos homens; antes, é Ele que protege os homens. Ele nunca quer a morte dos seus filhos, mas a sua vida e felicidade. Ele não pode solicitar nem justificar a violência; antes, detesta-a e rejeita-a.[3] O verdadeiro Deus chama ao amor incondicional, ao perdão gratuito, à misericórdia, ao respeito absoluto por cada vida, à fraternidade entre os seus filhos, crentes e não-crentes.

Temos o dever de afirmar, juntos, que a história não perdoa a quantos proclamam a justiça e praticam a injustiça; não perdoa a quantos falam da igualdade e descartam os que são diferentes. Temos o dever de desmascarar os vendedores de ilusões acerca do Além, que pregam o ódio para roubar aos simples a sua vida presente e o seu direito de viver com dignidade, transformando-os em lenha para queimar e privando-os da capacidade de escolher com liberdade e acreditar com responsabilidade. Senhor Presidente, disse-me há pouco que Deus é o Deus da liberdade, e isto é verdade. Temos o dever de desmantelar os planos homicidas e as ideologias extremistas, afirmando a incompatibilidade entre a verdadeira fé e a violência, entre Deus e os atos de morte.

Ao contrário, a história honra os construtores de paz que, com coragem e sem violência, lutam por um mundo melhor: «Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5, 9).

Por conseguinte o Egito, que no tempo de José salvou os outros povos da carestia (cf. Gn 41, 57), também hoje é chamado a salvar esta amada região da carestia do amor e da fraternidade; é chamado a condenar e derrotar toda a violência e todo o terrorismo; é chamado a dar o trigo da paz a todos os corações famintos de convivência pacífica, de trabalho digno, de educação humana. O Egito, que ao mesmo tempo constrói a paz e combate o terrorismo, é chamado a dar provas de que «Al din lillah wa Al watàn lilgiamia’ (a fé é para Deus, a pátria é para todos)», como recita o lema da Revolução de 23 de julho de 1952, demonstrando que se pode crer e viver em harmonia com os outros, partilhando com eles os valores humanos fundamentais e respeitando a liberdade e a fé de todos.[4] O papel peculiar do Egito é necessário para se poder afirmar que esta região, berço das três grandes religiões, pode – antes, deve – despertar da longa noite de tribulação, para voltar a irradiar os valores supremos da justiça e da fraternidade, que são o fundamento sólido e o caminho obrigatório para a paz.[5] Das grandes nações, não se pode esperar pouco!

Neste ano, comemora-se o 70º aniversário das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a República Árabe do Egito, um dos primeiros países árabes que estabeleceu tais relações diplomáticas. Estas sempre se caracterizaram pela amizade, a estima e a cooperação recíproca. Espero que esta minha visita as possa consolidar e reforçar.

A paz é dom de Deus, mas também trabalho do homem. É um bem que se há de construir e proteger, no respeito pelo princípio que afirma a força da lei e não a lei da força.[6] Paz para este amado país! Paz para toda esta região, em particular para a Palestina e Israel, para a Síria, para a Líbia, para o Iémen, para o Iraque, para o Sudão do Sul; paz a todos os homens de boa vontade!

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores!

Quero dirigir uma saudação afetuosa e um abraço paterno a todos os cidadãos egípcios, que estão simbolicamente presentes aqui, nesta sala. Saúdo igualmente os filhos e os irmãos cristãos que vivem neste país: os coptas ortodoxos, os greco-bizantinos, os arménios ortodoxos, os protestantes e os católicos. Que São Marcos, o evangelizador desta terra, vos proteja e nos ajude a construir e a alcançar a unidade, tão desejada por Nosso Senhor (cf. Jo 17, 20-23). A vossa presença nesta pátria não é nova nem casual, mas histórica e inseparável da história do Egito. Sois parte integrante deste país, tendo desenvolvido ao longo dos séculos uma espécie de relação única, uma simbiose particular, que pode ser tomada como exemplo por outras nações. Demonstrastes, e continuais a fazê-lo, que é possível viver juntos, no respeito mútuo e leal confronto, encontrando na diferença uma fonte de riqueza e nunca um motivo de conflito.[7]

Obrigado pela calorosa receção. Peço a Deus Omnipotente e Único que cumule todos os cidadãos egípcios com as suas bênçãos divinas. Que Ele conceda ao Egito paz e prosperidade, progresso e justiça, e abençoe todos os seus filhos!

«Bendito seja o Egito, meu povo»: diz o Senhor no Livro de Isaías (19, 25).

Shukran wa tahìah misr (Obrigado e viva o Egito)!

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[1] João Paulo II, Discurso na Cerimónia de Chegada, Cairo, 24 de fevereiro de 2000, 1.

[2] Cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem; Constituição Egípcia de 2014, cap. III.

[3] «O Senhor (…) odeia os que amam a violência» (Salmo 11/10, 5).

[4] Cf. Constituição Egípcia de 2014, Art. 5.

[5] Cf. Francisco, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2014, 4.

[6] Cf. Idem, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, 1.

[7] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Medio Oriente, 24 e 25.

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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO EGITO (28-29 DE ABRIL DE 2017)

VISITA DE CORTESIA A S.S. PAPA TAWADROS II

DISCURSO DO SANTO PADRE

Cairo ― Patriarcado Copto-Ortodoxo, sexta-feira, 28 de abril de 2017

Discurso do Santo Padre

Declaração Comum

Discurso do Santo Padre

Al Massih kam, bilhakika kam (O Senhor ressuscitou; ressuscitou verdadeiramente)!

Santidade, Irmão caríssimo!

Ocorreu há poucos dias a grande solenidade da Páscoa, centro da vida cristã, que, este ano, tivemos a graça de celebrar no mesmo diaAssim proclamamos em uníssono o anúncio da Ressurreição, revivendo de certo modo a experiência dos primeiros discípulos, que naquele dia, juntos, «se encheram de alegria por verem o Senhor» (Jo 20, 20).

Hoje, esta alegria pascal é enriquecida pelo dom de adorarmos, juntos, o Ressuscitado na oração e por trocarmos novamente, em seu nome, o ósculo santo e o abraço de paz. Sinto-me muito grato por isto: ao chegar aqui como peregrino, tinha a certeza de receber a bênção dum Irmão que me esperava.

Grande era a expectativa de nos encontrarmos: com efeito conservo bem viva a lembrança da visita de Vossa Santidade a Roma, pouco depois da minha eleição no dia 10 de maio de 2013, uma data que felizmente se tornou ocasião para celebrar anualmente o Dia da Amizade Copto-Católica.

Na alegria de continuar fraternalmente o nosso caminho ecuménico, desejo recordar, antes de mais nada, aquele marco nas relações entre a Sé de Pedro e a de Marcos que é a Declaração Comum assinada pelos nossos Predecessores, há mais de quarenta anos, em 10 de maio de 1973. Naquele dia, depois de «séculos de história difícil», em que «surgiram diferenças teológicas, que foram alimentadas e acentuadas por fatores de caráter não-teológico» e por uma difidência cada vez mais generalizada nas relações, com a ajuda de Deus chegou-se a reconhecer, juntos, que Cristo é «perfeito Deus, quanto à sua divindade, e perfeito homem, quanto à sua humanidade» (Declaração Comum, assinada pelo Santo Padre Paulo VI e por Sua Santidade Amba Shenouda III, 10 de maio 1973). Mas, não menos importantes e atuais são as palavras imediatamente anteriores, com que reconhecemos «Nosso Senhor e Deus e Salvador e Rei de todos nós, Jesus Cristo». Com estas expressões, a Sé de Marcos e a de Pedro proclamaram o domínio de Jesus: juntos, confessamos que pertencemos a Jesus e que Ele é o nosso tudo.

Além disso compreendemos que, sendo seus, já não podemos pensar em avançar cada um pela sua estrada, porque trairíamos a sua vontade: que os seus «sejam todos um só (…), para que o mundo creia» (Jo 17, 21). Na presença do Senhor, que nos deseja «perfeitos na unidade» (Jo 17, 23), já não podemos esconder-nos atrás de desculpas de divergências de interpretação, nem atrás de séculos de história e tradições que nos tornaram estranhos. Como aqui disse Sua Santidade João Paulo II: «Não devemos perder tempo a este propósito! A nossa comunhão no único Senhor Jesus Cristo, no único Espírito Santo e no único Batismo já representa uma realidade profunda e essencial» (Discurso durante o Encontro Ecuménico, 25 de fevereiro de 2000, 4-5). Neste sentido, há não só um ecumenismo feito de gestos, palavras e compromisso, mas uma comunhão já efetiva, que cresce dia-a-dia no relacionamento vivo com o Senhor Jesus, está enraizada na fé professada e funda-se realmente no nosso Batismo, em sermos n’Ele «novas criaturas» (cf. 2 Cor 5, 17): em suma, «um só Senhor, uma só fé, um só Batismo» (Ef 4, 5). Daqui havemos de partir sempre de novo, para apressar o dia tão desejado em que estaremos em comunhão plena e visível no altar do Senhor.

Neste caminho apaixonante, que – como a vida – nem sempre é fácil e linear, mas no qual o Senhor nos exorta a prosseguir, não estamos sozinhos. Acompanha-nos uma série enorme de Santos e Mártires que, já plenamente unidos, nos impelem a sermos aqui na terra uma imagem viva da «Jerusalém do Alto» (Gl 4, 26). Dentre eles, hoje certamente se alegram de modo particular com o nosso encontro São Pedro e São Marcos. Grande é o vínculo que os une. Basta pensar no facto de São Marcos ter colocado no coração do seu Evangelho a profissão de fé de Pedro: «Tu és o Messias». Foi a resposta à pergunta, sempre atual, de Jesus: «E vós quem dizeis que Eu sou?» (Mc 8, 29). Ainda hoje há muitas pessoas que não sabem responder a esta pergunta; falta até mesmo quem a suscite e sobretudo quem ofereça, em resposta, a alegria de conhecer Jesus, a mesma alegria com que temos a graça de O confessarmos juntos.

Assim, juntos, somos chamados a testemunhá-Lo, a levar ao mundo a nossa fé, antes de tudo segundo o modo que é próprio da fé: vivendo-a, porque a presença de Jesus transmite-se com a vida e fala a linguagem do amor gratuito e concreto. Possam coptas ortodoxos e católicos falar juntos, sempre mais, esta língua comum da caridade: antes de empreender uma iniciativa benfazeja, seria bom perguntar-nos se a poderemos realizar com os nossos irmãos e irmãs que compartilham a fé em Jesus. Assim, construindo a comunhão com o testemunho vivido na existência diária concreta, o Espírito não deixará de abrir caminhos providenciais e inesperados de unidade.

É com este espírito apostólico construtivo que Vossa Santidade continua a reservar uma atenção genuína e fraterna para com a Igreja Copta Católica: uma proximidade de que lhe estou muito grato e que encontrou louvável expressão no Conselho Nacional das Igrejas Cristãs, que criou a fim de os crentes em Jesus poderem agir cada vez mais unidos em benefício de toda a sociedade egípcia. Muito apreciei também a generosa hospitalidade oferecida ao 13º encontro da Comissão Mista Internacional para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas Orientais, que aqui teve lugar no ano passado por vosso convite. É um bom sinal que o sucessivo encontro se tenha realizado este ano em Roma, como que a expressar uma particular continuidade entre as Sés de Marcos e de Pedro.

Na Sagrada Escritura, Pedro parece retribuir de algum modo o afeto de Marcos designando-o por «meu filho» (1 Ped 5, 13). Mas os laços fraternos do Evangelista e a sua atividade apostólica têm a ver também com São Paulo, que, antes de morrer martirizado em Roma, fala de Marcos como prestando grande ajuda no ministério (cf. 2 Tm 4, 11) e cita-o mais de uma vez (cf. Flm 24; Col 4, 10). Caridade fraterna e comunhão de missão: tais são as mensagens que nos confiam a Palavra divina e as nossas origens. São as sementes do Evangelho, que temos a alegria de continuar a regar e, com a ajuda de Deus, fazer crescer juntos (cf. 1 Cor 3, 6-7).

A maturação do nosso caminho ecuménico é sustentada, de modo misterioso e muito atual, também por um verdadeiro e próprio ecumenismo do sangue. São João escreve que Jesus veio «com água e com sangue» (1 Jo 5, 6); quem acredita n’Ele, assim «vence o mundo» (1 Jo 5, 5). Com água e sangue: vivendo uma vida nova no nosso Batismo comum, uma vida de amor incessante e por todos, mesmo à custa do sacrifício do sangue. Desde os primeiros séculos do cristianismo, nesta terra, quantos mártires viveram a fé heroicamente e até ao extremo, preferindo derramar o sangue que negar o Senhor e ceder às adulações do mal ou mesmo só à tentação de responder ao mal com o mal! Bem o testemunha o venerável Martirológio da Igreja Copta. Ainda há pouco, infelizmente, o sangue inocente de fiéis inermes foi cruelmente derramado: o seu sangue inocente nos une. Caríssimo Irmão, assim como é única a Jerusalém celeste, assim também é único o nosso martirológio, e os vossos sofrimentos são também os nossos sofrimentos. Fortalecidos pelo vosso testemunho, trabalhemos por nos opor à violência, pregando e semeando o bem, fazendo crescer a concórdia e mantendo a unidade, rezando a fim de que tantos sacrifícios abram o caminho para um futuro de plena comunhão entre nós e de paz para todos.

A maravilhosa história de santidade desta terra não é peculiar só pelo sacrifício dos mártires. Logo que terminaram as perseguições antigas, surgiu uma forma nova de vida que, doada ao Senhor, nada retinha para si: no deserto, começou o monaquismo. Assim, aos grandes sinais que antigamente Deus realizara no Egito e no Mar Vermelho (cf. Sal 106/105, 21-22), seguiu-se o prodígio duma vida nova, que fez o deserto florir de santidade. Com veneração por este património comum, vim como peregrino a esta terra, onde o próprio Senhor gosta de vir: aqui, glorioso, desceu sobre o Monte Sinai (cf. Ex 24, 16); aqui, humilde, encontrou refúgio quando era criança (cf. Mt 2, 14).

Santidade, Irmão caríssimo, o mesmo Senhor nos conceda a graça de recomeçar hoje, juntos, como peregrinos de comunhão e arautos de paz. Neste caminho, tome-nos pela mão Aquela que aqui acompanhou Jesus e que a grande tradição teológica egípcia aclamou, desde a antiguidade, como Theotokos, Mãe de Deus. Neste título, unem-se admiravelmente a humanidade e a divindade, porque, na Mãe, Deus fez-Se para sempre homem. A Virgem Santa, que sempre nos leva a Jesus, sinfonia perfeita do divino com o humano, traga ainda um pouco de Céu sobre a nossa terra.

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Declaração Comun

DECLARAÇÃO COMUM

DE SUA SANTIDADE FRANCISCO E DE SUA SANTIDADE TAWADROS II

 

  1. Nós, Francisco, Bispo de Roma e Papa da Igreja Católica, e Tawadros II, Papa de Alexandria e Patriarca da Sé de São Marcos, no Espírito Santo damos graças a Deus por nos ter concedido a feliz oportunidade de nos encontrarmos mais uma vez, trocarmos o abraço fraterno e juntarmo-nos novamente em oração comum. Damos glória ao Todo-Poderoso pelos laços de fraternidade e amizade existentes entre a Sé de São Pedro e a Sé de São Marcos. O privilégio de estar juntos aqui no Egito é um sinal de que a solidez do nosso relacionamento tem aumentado de ano para ano e de que estamos a crescer na proximidade, na fé e no amor de Cristo nosso Senhor. Damos graças a Deus pelo amado Egito, «terra natal que vive dentro de nós», como costumava dizer Sua Santidade Papa Shenouda III, «povo abençoado pelo Senhor» (cf. Is 19, 25) com a sua antiga civilização dos Faraós, a herança grega e romana, a tradição copta e a presença islâmica. O Egito é o lugar onde a Sagrada Família encontrou refúgio, é terra de mártires e santos.
  2. O nosso vínculo profundo de amizade e fraternidade tem a sua origem na plena comunhão que existia entre as nossas Igrejas nos primeiros séculos tendo-se expressado de várias maneiras nos primeiros Concílios Ecuménicos, a começar pelo Concílio de Nicéia em 325 e a contribuição de Santo Atanásio, corajoso Padre da Igreja que mereceu o título de «Protetor da Fé». A nossa comunhão manifestava-se através da oração e práticas litúrgicas semelhantes, da veneração dos mesmos mártires e santos, e no fomento e difusão do monaquismo, seguindo o exemplo do grande Santo Antão, conhecido como o pai de todos os monges.

Esta experiência comum de comunhão, anterior ao tempo de separação, assume um significado especial na nossa busca atual do restabelecimento da plena comunhão. A maior parte das relações que existiam nos primeiros séculos continuaram, apesar das divisões, entre a Igreja Católica e a Igreja Copta Ortodoxa até ao dia de hoje e recentemente foram mesmo revitalizadas. Estas desafiam-nos a intensificar os nossos esforços comuns, perseverando na busca duma unidade visível na diversidade, sob a guia do Espírito Santo.

  1. Recordamos, com gratidão, o encontro histórico de há quarenta e quatro anos entre os nossos predecessores Papa Paulo VI e Papa Shenouda III, aquele abraço de paz e fraternidade depois de muitos séculos em que os nossos vínculos mútuos de amor não tiveram possibilidade de se expressar devido à distância que se criara entre nós. A Declaração Comum, que eles assinaram em 10 de maio de 1973, representou um marco no caminho ecuménico e serviu como ponto de partida para a instituição da Comissão de Diálogo Teológico entre as nossas duas Igrejas, que produziu muito fruto e abriu o caminho para um diálogo mais amplo entre a Igreja Católica e toda a família das Igrejas Ortodoxas Orientais. Naquela Declaração, as nossas Igrejas reconheceram que, no sulco da tradição apostólica, professam «uma só fé no Deus Uno e Trino» e «a divindade do Unigénito Filho de Deus (…) perfeito Deus, quanto à sua divindade, e perfeito homem quanto à sua humanidade». Reconheceu-se também que «a vida divina é-nos dada e alimentada em nós pelos sete sacramentos» e que «veneramos a Virgem Maria, Mãe da verdadeira Luz», a «Theotókos».
  2. Com profunda gratidão, recordamos o encontro fraterno que nós próprios tivemos em Roma, a 10 de maio de 2013, e a instituição do dia 10 de maio como jornada anual em que aprofundamos a amizade e a fraternidade entre as nossas Igrejas. Este renovado espírito de proximidade permitiu-nos discernir ainda melhor como o vínculo que nos une foi recebido de nosso único Senhor no dia do Batismo. Com efeito, é através do Batismo que nos tornamos membros do único Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1 Cor 12, 13). Esta herança comum é a base da peregrinação que juntos realizamos rumo à plena comunhão, crescendo no amor e na reconciliação.
  3. Conscientes de que ainda há tanto caminho a fazer nesta peregrinação, recordamos o muito que já foi alcançado. Em particular, lembramos o encontro entre Papa Shenouda III e São João Paulo II, que veio como peregrino ao Egito durante o Grande Jubileu do ano 2000. Estamos determinados a seguir os seus passos, movidos pelo amor de Cristo Bom Pastor, na convicção profunda de que, caminhando juntos, crescemos em unidade. Para isso auferimos a força de Deus, fonte perfeita de comunhão e de amor.
  4. Este amor encontra a sua expressão mais alta na oração comum. Quando os cristãos rezam juntos, chegam a compreender que aquilo que os une é muito maior do que aquilo que os divide. O nosso desejo ardente de unidade encontra inspiração na oração de Cristo «para que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Para isso aprofundemos as raízes que compartilhamos na única fé apostólica, rezando juntos e procurando traduções comuns do Pai Nosso e uma data comum para a celebração da Páscoa.
  5. Enquanto caminhamos para o dia abençoado em que finalmente nos reuniremos à mesma Mesa Eucarística, podemos colaborar em muitas áreas e tornar tangível a grande riqueza que já temos em comum. Podemos testemunhar juntos certos valores fundamentais como a sacralidade e dignidade da vida humana, a sacralidade do matrimónio e da família, e o respeito por toda a criação, que Deus nos confiou. Não obstante a multiplicidade de desafios contemporâneos, como a secularização e a globalização da indiferença, somos chamados a oferecer uma resposta compartilhada baseada nos valores do Evangelho e nos tesouros das nossas respetivas tradições. Nesta linha, somos encorajados a aprofundar o estudo dos Padres Orientais e Latinos e promover um frutuoso intercâmbio na vida pastoral, especialmente na catequese e num mútuo enriquecimento espiritual entre comunidades monásticas e religiosas.
  6. O testemunho cristão que compartilhamos é um sinal providencial de reconciliação e esperança para a sociedade egípcia e suas instituições, uma semente semeada para frutificar na justiça e na paz. Uma vez que acreditamos que todos os seres humanos são criados à imagem de Deus, esforcemo-nos por promover a tranquilidade e a concórdia através duma coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos, testemunhando assim que Deus deseja a unidade e a harmonia de toda a família humana e a igual dignidade de cada ser humano. Temos a peito a prosperidade e o futuro do Egito. Todos os membros da sociedade têm o direito e o dever de participar plenamente na vida do país, gozando de plena e igual cidadania e colaborando para construir a sua nação. A liberdade religiosa, que engloba a liberdade de consciência e está enraizada na dignidade da pessoa, é a pedra angular de todas as outras liberdades. É um direito sagrado e inalienável.
  7. Intensifiquemos a nossa oração incessante por todos os cristãos no Egito e em todo o mundo, especialmente no Médio Oriente. Alguns acontecimentos trágicos e o sangue derramado pelos nossos fiéis, perseguidos e mortos unicamente pelo motivo de ser cristãos, recordam-nos ainda mais que o ecumenismo dos mártires nos une e encoraja no caminho da paz e da reconciliação. Pois, como escreve São Paulo, «se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros» (1 Cor 12, 26).
  8. O mistério de Jesus, que morreu e ressuscitou por amor, situa-se no coração do nosso caminho para a plena unidade. Mais uma vez, os mártires são os nossos guias. Na Igreja primitiva, o sangue dos mártires foi semente de novos cristãos; assim também, em nossos dias, o sangue de tantos mártires seja semente de unidade entre todos os discípulos de Cristo, sinal e instrumento de comunhão e de paz para o mundo.
  9. Obedientes à ação do Espírito Santo, que santifica a Igreja, a sustenta ao longo dos séculos e conduz àquela unidade plena pela qual Cristo rezou, hoje nós, Papa Francisco e Papa Tawadros II, para alegrar o coração do Senhor Jesus bem como os corações dos nossos filhos e filhas na fé, declaramos mutuamente que, com uma só mente e coração, procuraremos sinceramente não repetir o Batismo administrado numa das nossas Igrejas a alguém que deseje juntar-se à outra. Isto confessamos em obediência às Sagradas Escrituras e à fé expressa nos três Concílios Ecuménicos reunidos em Niceia, Constantinopla e Éfeso.

Pedimos a Deus nosso Pai que nos guie, nos tempos e modos que o Espírito Santo dispuser, para a unidade plena no Corpo místico de Cristo.

  1. Concluindo, deixemo-nos guiar pelos ensinamentos e o exemplo do apóstolo Paulo, que escreve: «[Esforçai-vos] por manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos» (Ef 4, 3-6).

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DISCURSO DO SANTO PADRE
AO CLERO, RELIGIOSOS E SEMINARISTAS
(Cairo: Seminário Patriarcal, 29 de abril de 2017)

 Cairo (RV) – Segue a íntegra do discurso do Papa Francisco aos religiosos, na tarde deste sábado (28/04), no Seminário Patriarcal, no Cairo.


Beatitudes,
Queridos irmãos e irmãs,
Al Salamò Alaikum (a paz esteja convosco)!«Este é o dia que o Senhor fez, alegremo-nos n’Ele! Cristo venceu a morte para sempre, alegremo-nos n’Ele!»

Sinto-me feliz por me encontrar entre vós neste lugar, onde se formam os sacerdotes e que representa o coração da Igreja Católica no Egito.

Sinto-me feliz por saudar em vós – sacerdotes, consagrados e consagradas do pequeno rebanho católico no Egito – o «fermento» que Deus prepara para esta terra abençoada, para que, juntamente com os nossos irmãos ortodoxos, cresça nela o seu Reino (cf. Mt 13, 33).

Desejo, antes de mais nada, agradecer o vosso testemunho e todo o bem que fazeis cada dia, trabalhando no meio de muitos desafios e, frequentemente, poucas consolações. Desejo também encorajar-vos. Não tenhais medo do peso do dia-a-dia, do peso das circunstâncias difíceis que alguns de vós têm de atravessar. Nós veneramos a Santa Cruz, instrumento e sinal da nossa salvação. Quem escapa da cruz, escapa da Ressurreição. «Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32).

Trata-se, pois, de crer, testemunhar a verdade, semear e cultivar sem esperar pela colheita. Na realidade, nós recolhemos os frutos de muitos outros, consagrados e não consagrados, que generosamente trabalharam na vinha do Senhor: a vossa história está cheia deles!

No meio de muitos motivos de desânimo e por entre tantos profetas de destruição e condenação, no meio de numerosas vozes negativas e desesperadas, sede uma força positiva, sede luz e sal desta sociedade; sede a locomotiva que faz o comboio avançar para a meta; sede semeadores de esperança, construtores de pontes, obreiros de diálogo e de concórdia.

Isto é possível se a pessoa consagrada não ceder às tentações que todos os dias encontra no seu caminho.

Gostaria de evidenciar algumas dentre as mais significativas.

1– A tentação de deixar-se arrastar e não guiar. O bom pastor tem o dever de guiar o rebanho (cf. Jo 10, 3-4), de o conduzir a pastagens verdejantes e até à nascente das águas (cf. Sal 23/22, 2). Não pode deixar-se arrastar pelo desânimo e o pessimismo: «Que posso fazer?» Aparece sempre cheio de iniciativas e de criatividade, como uma fonte que jorra mesmo quando vem a seca; sempre oferece a carícia da consolação, mesmo quando o seu coração está alquebrado; é um pai quando os filhos o tratam com gratidão, mas sobretudo quando não lhe são agradecidos (cf. Lc 15, 11-32). A nossa fidelidade ao Senhor nunca deve depender da gratidão humana: «teu Pai, que vê o oculto, há de recompensar-te» (Mt 6, 4.6.18).

2– A tentação de lamentar-se continuamente. Sempre é fácil acusar os outros: as faltas dos superiores, as condições eclesiais ou sociais, as escassas possibilidades… Mas a pessoa consagrada é alguém que, pela unção do Espírito, transforma cada obstáculo em oportunidade, e não cada dificuldade em desculpa! Na realidade, quem se lamenta sempre é uma pessoa que não quer trabalhar. Por isso o Senhor, dirigindo-Se aos pastores, disse: «Levantai as vossas mãos fatigadas e os vossos joelhos enfraquecidos» (Heb 12, 12; cf. Is 35, 3).

3– A tentação da crítica e da inveja. O perigo é sério, quando a pessoa consagrada, em vez de ajudar os pequenos a crescer e a alegrar-se com os sucessos dos irmãos e irmãs, se deixa dominar pela inveja tornando-se numa pessoa que fere os outros com a crítica. Quando, em vez de se esforçar por crescer, começa a destruir aqueles que estão crescendo; em vez de seguir os bons exemplos, julga-os e diminui o seu valor. A inveja é um câncer que arruína qualquer corpo em pouco tempo: «Se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode perdurar; e se uma família se dividir contra si mesma, essa família não pode subsistir» (Mc 3, 24-25). Com efeito, «por inveja do diabo é que a morte entrou no mundo» (Sab 2, 24). E a crítica é o seu instrumento e a sua arma.

4– A tentação de se comparar com os outros. A riqueza reside na diferença e na unicidade de cada um de nós. Comparar-nos com aqueles que estão melhor, leva-nos frequentemente a cair no rancor; comparar-nos com aqueles que estão pior, leva-nos muitas vezes a cair na soberba e na preguiça. Quem tende sempre a comparar-se com os outros, acaba por se paralisar. Aprendamos de São Pedro e São Paulo a viver a diferença dos caráteres, dos carismas e das opiniões na escuta e docilidade ao Espírito Santo.

5– A tentação do «faraonismo», isto é, de endurecer o coração e fechá-lo ao Senhor e aos irmãos. É a tentação de se sentir acima dos outros e, consequentemente, de os submeter a si por vanglória; de ter a presunção de ser servido em vez de servir. É uma tentação comum, desde o início, entre os discípulos, os quais – diz o Evangelho –, «no caminho, tinham discutido uns com os outros, sobre qual deles era o maior» (Mc 9, 34). O antídoto para este veneno é o seguinte: «Se alguém quiser ser o primeiro, há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9, 35)

6– A tentação do individualismo. Como diz o conhecido provérbio egípcio: «Eu e, depois de mim, o dilúvio». É a tentação dos egoístas que, ao caminhar, perdem a noção do objetivo e, em vez de pensar nos outros, pensam em si mesmos, sem sentir qualquer vergonha; antes, justificando-se. A Igreja é a comunidade dos fiéis, o corpo de Cristo, onde a salvação de um membro está ligada à santidade de todos (cf. 1 Cor 12, 12-27; Lumen Gentium, 7). Ao contrário, o individualista é motivo de escândalo e conflitualidade.

7– A tentação de caminhar sem bússola nem objetivo. A pessoa consagrada perde a sua identidade e começa a «não ser carne nem peixe». Vive com o coração dividido entre Deus e a mundanidade. Esquece o seu primeiro amor (Ap 2, 4). Na realidade, sem uma identidade clara e sólida, a pessoa consagrada caminha sem direção e, em vez de guiar os outros, dispersa-os. A vossa identidade como filhos da Igreja é ser coptas – isto é, radicados nas vossas raízes nobres e antigas – e ser católicos – isto é, parte da Igreja una e universal: como uma árvore que quanto mais enraizada está na terra tanto mais alta se eleva no céu.

Queridos consagrados, não é fácil resistir a estas tentações, mas é possível se estivermos enxertados em Jesus: «Permanecei em Mim, que Eu permaneço em vós.

Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em Mim» (Jo 15, 4). Quanto mais enraizados estivermos em Cristo, tanto mais vivos e fecundos seremos. Só assim pode a pessoa consagrada conservar a capacidade de maravilhar-se, a paixão do primeiro encontro, o fascínio e a gratidão na sua vida com Deus e na sua missão. Da qualidade da nossa vida espiritual depende a da nossa consagração.

O Egito contribuiu para enriquecer a Igreja com o tesouro inestimável da vida monástica. Exorto-vos, pois, a beber do exemplo de São Paulo o Eremita, de Santo Antão, dos Santos Padres do deserto, dos numerosos monges que abriram, com a sua vida e o seu exemplo, as portas do céu a muitos irmãos e irmãs; e assim também vós podereis ser luz e sal, isto é, motivo de salvação para vós próprios e para todos os outros, crentes e não-crentes, e de modo especial para os últimos, os necessitados, os abandonados e os descartados.

A Sagrada Família vos proteja e abençoe a todos vós, ao vosso país com todos os seus habitantes. Do fundo do meu coração, desejo tudo de melhor a cada um de vós e, por vosso intermédio, saúdo os fiéis que Deus confiou aos vossos cuidados. O Senhor vos conceda os frutos do seu Santo Espírito: «amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gal 5, 22).

Sempre vos terei presente no meu coração e na minha oração. Coragem e avante, com o Espírito Santo! «Este é o dia que o Senhor fez, alegremo-nos n’Ele!» E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.

 

Fonte: Discursos do Papa Francisco no Egito – Pesquisa Google – br.radiovaticana.va/news/2017

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