PARA ALÉM DO PADRE CASADO (I) – O BEIJO DE JUDAS

Eduardo Hoornaert, Salvador -4/2/2016

“O estudo que estamos iniciando agora há de nos mostrar que aqui o Papa (Paulo VI) ‘tropeçou em Jesus’, (ao comparar o casamento dos Padres ao beijo de Judas) ou seja, levou um tombo capaz de perder autoridade junto a cristãos que leem os Evangelhos e entendem algo do que neles está escrito. O Papa se deixou prender por uma perversa inversão de valores e apreciações, fenômeno infelizmente bastante difundido na humanidade.”

Este estudo será dividido em Quatro blocos. Publicamos hoje o 1º :

  1. O beijo de Judas                   2. Duas teologias conflitantes
  2. A vitória do sacerdote              4. Para além do padre casado

 

  1. O BEIJO DE JUDAS

Uma das declarações mais infelizes do Papa Paulo VI consistiu em comparar o padre casado a Judas. O beijo amoroso do sacerdote a uma mulher seria um beijo de Judas, uma traição a Jesus. Essa traição, esse abandono do sagrado compromisso do celibato, viria a merecer a redução do sacerdote ao estado leigo.

O estudo que estamos iniciando agora há de nos mostrar que aqui o Papa ‘tropeçou em Jesus’, ou seja, levou um tombo capaz de perder autoridade junto a cristãos que leem os Evangelhos e entendem algo do que neles está escrito. O Papa se deixou prender por uma perversa inversão de valores e apreciações, fenômeno infelizmente bastante difundido na humanidade. Frequentemente constatamos que, para muita gente, o que é bom passa por ser ruim e o ruim é considerado bom. Mentira vira verdade e a verdade é considerada mentira.

Alguns exemplos de hoje e de ontem.

– Depois dos terríveis ataques às torres gêmeas em Nova Iorque, o Presidente americano Georges Bush declarou guerra ao terrorismo. Hoje, 15 anos depois, aviões americanos não tripulados (drones) despejam diariamente bombas sobre determinados alvos, sem justificar nada nem explicar nada. Isso nunca é comentado na grande mídia e, portanto, ‘não existe, não é terrorismo’. O governo americano é hoje a instância mais terrorista do cenário mundial, mas passa a ser o melhor governo do mundo. Mentira flagrante, que a opinião pública ‘engole’.

– No julgamento de Jesus, um grupo de judeus, fanatizado pelos Sumos Sacerdotes, gritou diante de Pilatos que ele tinha de morrer. Era um grupo fanatizado, não o povo judeu em geral. Mas durante longos séculos, a Igreja declarou que o povo judeu em bloco era culpado da morte de Jesus. Eu mesmo ainda rezei, no Ofício da Sexta-Feira Santa, pela ‘conversão do pérfido povo judeu’. Eis uma distorção de muitos séculos.

– Maria Madalena era uma apóstola que Jesus valorizava particularmente. Isso incomodou os apóstolos masculinos e, mais tarde, os homens em geral. A imagem de Maria Madalena foi transformada na imagem de uma pecadora arrependida. Hoje, o cristão comum desconhece a história evangélica de Maria Madalena e se deixa levar por uma imagem distorcida daquela mulher (e das mulheres em geral).

  • Há sintonia entre Jesus e a Apóstola (Evangelho de João)
  • Imagem contraditória da santa pecadora:
  • Ao mesmo tempo sedutora e arrependida

– O exemplo mais flagrante é o racismo. Os que se dizem brancos são, direta ou indiretamente, herdeiros dos que, durante longos séculos, escravizaram negros e os transportaram como animais através dos oceanos para que trabalhassem a seu serviço. Logicamente, quem deveria morrer de vergonha é o branco, diante do que seus antepassados fizeram com os negros. Mas o que se verifica é o contrário. Eis um caso patente de perversão.

O Papa Paulo VI, sem tomar claramente consciência disso, repetiu um julgamento, amplamente divulgado, mas equivocado, sem nenhuma prova nos Evangelhos, que reza que o padre que resolve se casar pratica algo errado. Mas em nenhum momento, a autoridade eclesiástica aduz um argumento evangélico claramente enunciado. Fala-se da quebra de um contrato, mas não se demonstra as bases evangélicas desse contrato.

Tudo fica nebuloso. A força da condenação eclesiástica provém do fato que ela afeta o universo emocional subconsciente dos cristãos.

  • O padre casado pode ter clareza absoluta de agir corretamente ao contrair matrimônio,
  • mas seu subconsciente emocional continua abalada.
  • Há padres casados que vivem a vida toda com a impressão mal formulada (ou nunca formulada) de terem feito algo de errado, embora não saibam dizer com clareza o que seria.

Isso comprova o que a psicologia explica:

  • somos antes de tudo seres afetivos,
  • temos dificuldade em fazer reinar a razão de modo harmonioso em nossas vidas.
  • A harmonia entre razão e afeto, no caso particular da passagem de padre celibatário a padre casado, não se obtém com facilidade. 

Por vezes é resultado de lutas durante longos anos, mas outras vezes a decisão tomada continua causando incômodo ao longo da vida. Durante 20 anos, em meus sonhos apareciam imagens de infidelidade, sentimentos de rejeição e inferioridade diante de padres ‘no ministério’. Minha cabeça tinha clareza, meus sentimentos não.

A finalidade dessa nossa jornada de estudo consiste em fortalecer a energia racional, para que ela possa afugentar as neblinas de sentimentos negativos acerca da decisão tomada em casar, que ainda nos incomodam e afloram e podem irromper com ímpeto quando menos o esperamos. Além disso, estamos em situação privilegiada para colocar o dedo num tipo de distorção que continua afetando a Igreja católica em geral.

Assim podemos colaborar para um futuro melhor em termos de organização do ministério cristão. Não se pretende aqui praticar sessões de psicanálise, embora saibamos que grande parte da psicanálise consiste em tentar corrigir a inversão de valores e apreciações que afetam a vida das pessoas, uma inversão muitas vezes inculcada desde a mais tenra infância. Nosso propósito é mais modesto.

Trata-se de saber o que a razão tem a nos dizer acerca da pretensa superioridade do ‘status’ sacerdotal celibatário ao ‘status’ leigo? Em outras palavras, trata-se de restituir a liderança da razão sobre o universo muitas vezes desordenado e confuso de sentimentos e afetos.

Proponho que procedamos, nos dois Blocos seguintes, por meio de comentários históricos. A história revela o ser humano tal qual realmente é. Nesse sentido, a história não mente, mas revela muitas vezes o que fica escondido.

 

 

Eduardo Hoornaert

Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, professor, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador.

FONTE: http://padrescasadosceara.blogspot.com.br/2016/05/para-alem-do-padre-casado-i.html

Respostas de 2

  1. Bom início de conversa. O mais triste é ver como é tolerada “pular a cerca” de muitos padres celibatários e até alguns bispos. Mais ainda, ver tantos padres celibatários arcar com o onus da castidade, ora com tristeza, ora com “fugas” na bebida ou outras atitudes “infantis”. Mais que reabilitar os padres casados vejo a necessidade de um novo olhar sobre o sacramento da ordem que deve nascer da necessidade da comunidade que escolhe seus “ordenandos” para o ministério e de preferência, homens casados de boa reputação, como aconselha a Bíblia. E o celibato? Seja bem vindo, como sinal do desprendimento total, para os que estiverem dispostos e sejam os primeiros reconhecedores da necessidade de se somarem aos padres casados na difícil missão de construir o reino de Deus entre os mais pobres e necessitados.

  2. Parabéns ao nosso grande historiador Eduardo e ao José Valim. Eu acrescentaria que nós padres casados paradoxalmente, temos mais condições de seguir o caminho que é o próprio Cristo: Não consta que Ele tenha celebrado tanto… Apenas uma missa do nascimento à Cruz e ressurreição… Não tinha nenhum apoio ( como nós) nem político e tão pouco religioso e no entanto se constitui o único sacerdote e nós Nele. Nossa luta a favor da liberação da ligação ordenação-celibato é oportuna e ajuda a caminhada histórica, o exemplo, porém, é mais urgente

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