O frade dominicano Frei Betto escreveu uma história dramática. Depois de celebrar a Missa do Galo e de abraçar seus paroquianos, o padre Afonso se viu miseravelmente só em plena noite de Natal. Nessa situação emocional, outros sentimentos desagradáveis vieram à memória. Perturbava-o a consciência do pai que nunca fora, as saudades dos filhos que nunca tivera, o estar sozinho à mesa de refeições. Naquela noite nenhum irmão tivera a generosidade de convidá-lo à ceia. Então, o padre encontrou na cozinha um panetone e uma garrafa de vinho, colocou-os na pasta usada para levar sacramentos aos enfermos e rumou para a zona boêmia.
Por aquela mesma rua descia Shirley, uma mulher igualmente só, desamparada pelos pais e pelo marido. Os olhares de ambos se encontraram. Por fim, ela indicou o hotel da esquina e os dois foram para um quarto. A mulher, que achava que o homem estava em busca de sexo, começou a se oferecer. Porém, o padre explicou que desejava apenas a companhia dela para espantar a solidão, beber o vinho e comer o panetone. Quando a mulher soube que ele era sacerdote, começou a chorar, lembrando-se de seus muitos natais na roça, no norte de Minas. A alcova virou um confessionário. Depois de ler o relato do nascimento de Jesus no Evangelho de Lucas, o padre perguntou se Shirley queria receber a eucaristia. A mulher se assustou. Como poderia ela, uma prostituta, receber a hóstia? Afonso leu a palavra de Jesus na Parábola dos Dois Filhos: “Digo-lhes a verdade: os publicanos e as prostitutas estão entrando antes de vocês no reino de Deus” (Mt 21.31). Quando o dia clareou, o padre havia conseguido se distanciar do pecado e se aproximar do pecador, e a mulher havia tido a oportunidade de se lembrar de sua herança religiosa e de se aproximar de Jesus Cristo.
A história talvez fictícia de Frei Betto, publicada no jornal “Rumos”, do Movimento das Famílias dos Padres Casados do Brasil, pôs o dedo numa das inconveniências da lei do celibato: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18). Se o padre quer ficar só, não há problema. Contudo, ser proibido de se casar só para exercer o ministério ou permanecer nele é uma maldade que nunca teve o aval de Deus, nem no sacerdócio levítico, no Antigo Testamento, nem no ministério pastoral da Nova Aliança.
Tanto os fiéis como o clero precisam fazer pressão contra a exigência do celibato, a exemplo de Dom Clemente Isnard, bispo emérito de Nova Friburgo, em seu livro “Reflexões de Um Bispo sobre as Instituições Eclesiásticas Atuais”. Pois trata-se, como a própria igreja reconhece, de uma legislação não escriturística.
Precisamos reler e considerar o que está escrito no início e no final das Escrituras: nada se pode acrescentar ou retirar à lei de Deus (Dt 4.2; 12.32; Ap 22.18). O livro de Provérbios reforça esse cuidado: “Cada palavra de Deus é comprovadamente pura […]. Nada acrescente às palavras dele, do contrário, ele o repreenderá e mostrará que você é mentiroso” (Pv 30.5-6).
Embora o casamento por si só não possa refrear a imoralidade sexual, ele contribui eficazmente para a realização e o proveito do instinto sexual dentro dos limites para os quais foi criado. O próprio Paulo, celibatário ou viúvo, é contrário à abstinência sexual mesmo dentro do casamento, “exceto por mútuo consentimento e durante certo tempo” (1Co 7.5). Segundo o apóstolo, “por causa da imoralidade, cada um deve ter sua esposa, e cada mulher o seu próprio marido” (1Co 7.2).
O celibato clerical tem estado histórica e seguidamente ligado ao mau exemplo de não poucos padres, não apenas nos dias de hoje, mas também no passado recente ou remoto. Sabe-se que em outubro de 1710, o governador Antonio Albuquerque de Carvalho, da província de São Paulo, escreveu a Dom João V informando que os padres viviam “tão soltamente que em lugar de lhes darem exemplo, lhes servem de escândalo”. Menos de 90 anos depois, em 1799, o bispo do Maranhão queixava-se de alguns eclesiásticos de vida escandalosa e dizia que a situação deveria mudar “porque sendo o clero virtuoso e sábio, os povos serão fiéis e humildes”. A historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva explica que tudo se passava “como se a sociedade colonial compreendesse e aceitasse a ‘fragilidade humana’, que levava o eclesiástico a esquecer seus votos de castidade e a construir verdadeiras famílias, tendo o cuidado de tomar algumas medidas para preservar o decoro e evitar o ‘escândalo’.”
Fazer os votos de celibato e esquecer-se contínua ou eventualmente deles é hipocrisia. Para não carregar tal culpa, seria bom que a igreja tivesse a mesma atitude do primeiro concílio da igreja primitiva: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não impor nada além das seguintes exigências necessárias” (At 15.28).
Vale acrescentar que, nos sete primeiros anos do terceiro milênio, 1.080 sacerdotes católicos romanos abandonaram o ministério só na América Latina, de acordo com o “L’Osservatore Romano” de 16 de agosto de 2008. Naturalmente a questão do celibato foi o que pesou mais. Segundo estimativa do Movimento das Famílias dos Padres Casados, só no Brasil há cerca de 6 mil padres que deixaram o exercício pastoral para se casar.
No dia 30 de maio de 2009, o padre casado Félix Galvão Batista Filho, 53 anos, ordenado em 1984 por Dom Hélder Câmara, tornou-se ministro anglicano. Félix é o presidente nacional da Associação Rumos e do Movimento das Famílias de Padres Casados, com mandato até o final de 2009.
Respostas de 5
Gostei muito do artigo do frei beto. Muito atual.
Tambem sou um padre casado e mal visto pela igreja instituição. Estou passando as maiores privações de que jamais passei, situação de abandono por parte do clero ao quaql pertenci e sói tinha valor enquanto produzia e quando quis dar um fim em tudo e assumir uma familia, fui abandonado. Ninguem da diocese me visitou já há 6 anos, mas não desanimo, vou em frente, por isso tomei nojo da instituição e não acredito mais nela. Por favor me escrevam.
Padres nao devemse casar. Jesus nao se casou. Padres que casam devem se esquecer que sao padres. Jesus nao se casou.
Prezada Lia, uma bem pequena quantidade de católicos conservadores ainda pensam como você.
Mas a grande maioria pensa o contrario. São mais de 90% dos católicos; mais de 80% dos padres celibatários; e mais de 50% dos nossos bispos (só que estes não podem divulgar sua opinião).
Você deve saber – ou saiba agora – que até o século XI os padres católicos do mundo inteiro podiam casar. Um papa teve a infeliz ideia de proibir temporariamente o casamento dos padres devido à corrupção do clero, e lamentavelmente esta proibição já dura 10 séculos.
Essa proibição na Igreja católica latina provocou a separação da Igreja católica ortodoxa, onde os padres continuam se casando.
E no século XVI o padre católico Lutero protestou contra esse erro da Igreja romana e fundou o luteranismo, do qual posteriormente surgiram centenas de igrejas bíblicas, nas quais os pastores (seus padres) podem casar.
Espero que você reflita e – quem sabe? – mude e atualize sua opinião.
Giba, padre católico casado.
Acredito que, como na Igreja Católica do oriente (ligada a Roma) e a Igreja ortodoxa, o celibato deveria ser opcional. Há um influxo histórico de homens que buscam afetos impessoais na vida religiosa gerando um corporativismo e o protecionismo nos casos de pedofilia. Também acredito que teríamos mais padres, visto que precisamos de pelo menos 100 mil padres para atender os católicos no Brasil. Temos somente 18 mil sacerdotes e cresce vertiginosamente os outros movimentos religiosos na América Latina. Lembro que Jesus não fez essa exigência dos apóstolos que eram casados exceto João e disse apenas que haveriam homens com essa disposição. A sua ênfase nesse capítulo bíblico está sobre a condição do divórcio. Também as comunidades pós apostólicas eram pastoreadas por homens casados. Até São Paulo faz recomendações aos episcopos (bispos) e diáconos para que estes fossem fiéis ao casamento. Portanto, se fosse uma ordenança de Jesus para sua Igreja, mesmoo os apóstolos sendo casados, obrigatoriamnte os seguidores das gerações seguintes teriam normatizado imediatamente tal disciplina. Entretanto essa obrigação teve suas justificativas e interesses históricos só legalizado no século XI. O celibato tem o seu valor e se cultivado em meio à outra possibilidade se destacaria com maior autenticidade. Padres seculares casados dariam outro testemunho variando a importância na constituição da família. Há estudos sobre isso e que mostram o declínio do catolicismo que precisa também de uma nova linguagem. O celibato é uma disciplina e um conselho evangélico. Mais autêntico seria essa vivência de modo espontâneo em vez de permanecer como uma disciplina obrigatória. Seria mais nítido o chamado como um dom do Espírito Santo. Deve-se notar que os problemas que enfrentamos hoje na Igreja são graves e afetam o mundo inteiro. Recomendo que vejam a publicação do padre colombiano Germán Robledo (ver Youtube) sobre o influxo de homossexuais no clero nos últimos 30 anos em sua arquidiocese de Cali e sua “profecia” para os próximos 20 anos. Volto a dizer que o que me preocupa é o corporativismo e o protecionismo que envolveu até o Vaticano. Se queremos evangelizar com liberdade é preciso uma abertura em muitos aspectos porque certas exigências estão impedindo o evangelho de ser anunciado com autenticidade e com um alcance maior. Isso faz com que falte padres e eucaristia para boa parte do povo de Deus. Esse fica vulnerável e acaba procurando “socorro” em outras religiões. A ordenança é uma só: “Ide e pregai”. Lembro também que São Paulo aconselhou o celibato, entretanto é preciso analisar o contexto da comunidade destino dessa mensagem (Coríntios) que não foi proferida em outras cartas. Sua afirmação que era uma opnião e recomendação sua e não do Senhor. Hoje também os padres não podem ter trabalho civil, entretanto São Paulo fez questão de continuar fazedor de tendas quando a preferência geral era de que os presbíteros (padres) vivessem do evangelho. O que devemos considerar é o valor do sinal: castidade celibatária e matrimonial são sinais eloquentes e com padres assumindo livremente esses estados de vida, a orientação sobre sexualidade, sobretudo aos jovens teria um efeito mais promissor. Hoje, em vista dos escândalos, o celibato pode ser visto com estranheza por muita gente. Há quem discorde dos meus argumentos, mas essa conclusão eu chego porque sei o que acontce nos interior do clero. As pessoas também pensam, em geral, sobre esses pontos, mas não se manifestam porque julgam que isso não lhes diz respeito, além do medo de falar do que não sabem ou não querem saber. Eu conheço homens casados que gostariam de ser padres. É interessante ver a opnião formulada pelos orientais no Concílio Vaticano II através do patriarca católico melquita Máximo V que afirmou, com outras palavras, que o tema era um tabu e, por isso, foi pouco tratado no concílio. Há quem diga que a valorização do diaconato permanente seria uma forma de “calar” sobre o assunto como também promover uma evolução da condição clerical para que nos próximos anos se reveja essa disciplina. Acredito que os cerca de 7 mil padres que “deixaram” o ministério e se casaram poderiam atuar hoje na Igreja de Deus trazendo muitos benefícios espirituais para suas famílias e comunidades sedentas de sacerdotes. Vamos orar e agir para que se reflita mais sobre isso em nossa perspectiva eclesiológica. Paz.
Prezado Alexandre, parabéns por seus 2 oportuníssimos comentários recém chegados ao nosso site.
Percebo que você é pessoa de profundo conhecimento e competência na ciência eclesiológica.
Imensamente grato lhe fico, e acrescento um convite:
envie-me outros artigos e/ou comentários, tanto para este site, como para nosso jornal dos padres casados do Brasil, o RUMOS.
Pode folhear muitas edições dele neste mesmo site.
Sou o atual editor do Rumos, como você poderá confirmar nas páginas 2.
E tomo a liberdade, se você me autorizar, de incluir este comentário sobre OS PADRES CASADOS TÊM RAZÃO na próxima edição, a sair em fevereiro próximo.
Autorize-me pelo meu e-mail gilgon@terra.com.br
Fraterno abraço e feliz 2012
Giba