A ideia de pecado e o debate político público

“… a Igreja não é uma “polícia sexual”, preocupada em catalogar e proscrever esta ou aquela conduta sexual só para mandar gente para o inferno.”

 

Paulo Vasconcelos Jacobina*

A ideia de “pecado” é uma noção teológica. Recorrer a ela no debate público não parece colaborar com a construção de uma sociedade plúrima, na qual a liberdade religiosa seja realmente respeitada. É o que nos ensina o excelente documento “Em Busca de uma Ética Universal”, da Comissão Teológica Internacional.

É, pois, um equívoco confundir a noção de “pecado” com a noção de “crime” ou “ilícito” para fins de influenciar na legislação positiva estatal, equiparando “condutas pecaminosas” a “crimes”. 

Neste sentido, a atitude de enumerar e citar versículos bíblicos e suas ameaças de pecado e salvação no discurso público não ajuda nem o avanço dos debates, nem o avanço do cristianismo. 

Tomás de Aquino já nos advertiu, há mais de oitocentos anos, que é inútil debater usando argumentos que não são compartilhados pelo outro debatedor, mas apenas por quem compartilha seus próprios pressupostos religiosos.

Não podemos esquecer de que o estado laico é um grande bem: defende o outro de nós, mas também de certa forma, defende nossa própria liberdade religiosa da incompreensão do outro. Não falo aqui do desvio laicista, que quer reduzir o estado laico a um estado ateu. 

Falo de atitudes como a de certos extremistas religiosos que querem empurrar seu próprio livro revelado como lei estatal positiva em estados teocráticos. O resultado já sabemos: coisas como o apedrejamento e mutilação de mulheres e a degola pública de repórteres ocidentais. Não é esta a proposta cristã.

A nossa convivência conjunta deve dar-se com base em dois pressupostos: pertencemos a grupos diversos, com valores diversos, mas compartilhamos a mesma natureza humana e a mesma razão, e é com base nestes dois pressupostos, a natureza humana comum e a razão compartilhada que devemos conviver.

Por um lado, existem valores que devem ser abraçados por qualquer legislação positiva, como o respeito à vida, à liberdade pessoal, à integridade física, à família e ao patrimônio.

Existem, é claro, por outro lado, questões éticas e morais que são controvertidas, e devem ser discutidas racionalmente, e nas quais uma das posições circunstancialmente coincide com a cultura cristã; é o caso do aborto, que envolve o interesse de um pequeno ser no útero, e, portanto, um conflito real entre os potenciais direitos à vida e à liberdade desse pequeno ser humano e os interesses dos seus genitores em abortá-lo.

 Se a ciência nos provar que aquele ser não é o que a própria ciência nos diz que é – um pequeno ser humano já com todas as potencialidades definidas e inscritas em seu DNA, pararíamos de gritar contra o aborto.

É também o caso da família estável e reprodutiva, que sempre foi o alicerce do estado em todas as culturas até hoje. Quais as consequências, éticas, econômicas e sociais, de estender a outras situações familiares, não estáveis e não reprodutivas, a ideia de matrimônio?

Esta é uma discussão sociológica e filosófica séria. Não se pode entrar nessa discussão de “Bíblia em punho”, mas é inegável que haja argumentos interessantes, de cunho racional, para debater estas situações de um modo diverso que a vanguarda cultural quer colocar.

 

Debatê-las, portanto, sem resquícios de fideísmo, por parte dos que alegam ter fé, mas também sem intolerância dos não religiosos contra os que usam argumentos históricos e fundamentam-se em valores culturais e sociais mais tradicionais, é uma necessidade; mas os argumentos perfeitamente razoáveis dos que têm fé são às vezes gratuitamente repelidos por quem não a tem, e que, por não compartilhar sua visão do mundo, querem silenciá-los sob a acusação de violação de estado laico que não está em jogo.

Mas mesmo quem tem fé não pode se esquecer de que a palavra “cristianismo”, hoje, envolve uma série de boas e más compreensões teológicas que está muito longe de ser homogênea. Por exemplo, esta ideia de que a Bíblia é um livro de leis e o cristianismo é um grande tribunal está profundamente equivocada: o Papa Francisco constantemente nos lembra que a graça é graça, não conquista de pessoas que se comportam disciplinadamente.

Excluir da graça determinadas pessoas, em razão do tipo de conduta que praticam, citando versículos bíblicos como se fossem artigos de lei, não parece bom cristianismo. Não é pela lei, mas pela fé, que se é justificado – não há, aqui, nenhum apelo a predestinações ou atitudes “evangélicas” como um radical “sola fide”, mas o reconhecimento de que a santidade é um dom, e o cristianismo, um caminho. Parece contraditório, pois, que se creia nisto e se pregue um simples moralismo como cristianismo.

Por isto, não se pode ver, por exemplo, o Catecismo da Igreja Católica como uma espécie de “decreto de regulamentação” católico das “leis penais” bíblicas. A Igreja Católica, como já disse, não é um tribunal, mas um grande hospital para nós todos, quaisquer que sejam as suas inclinações particulares, as suas lutas pessoais com seus desejos e impulsos.  Como diz o Cardeal Dolan:

Gosto de lembrar às pessoas que a Igreja não é um clube privado para os perfeitos, mas um hospital para os enfermos. Se você está doente espiritualmente ou moralmente, é mais que bem vindo à Igreja, porque todos nós o somos. Também se você cometeu erros mais graves, de qualquer forma, está em ‘casa’ e nós faremos o possível para fazê-lo compreender, à luz da sabedoria da Igreja. Ainda quando fracasse a Igreja estará do seu lado para te fazer compreender que você não está excluído”.

Assim, deveríamos estudar mais seriamente aquilo que a Igreja não é, para entender melhor o que ela é, a fim de participar mais eficazmente dos debates públicos.

Por exemplo, a Igreja tem a melhor proposta a apresentar, para toda a humanidade, sobre a família, como se viu das discussões do último Sínodo. É uma proposta com bases racionais excelentes, e com um verdadeiro equilíbrio.

Mas a Igreja não é uma “polícia sexual”, preocupada em catalogar e proscrever esta ou aquela conduta sexual só para mandar gente para o inferno.

A ideia de castidade (que não se confunde com celibato, mas com integridade pessoal) a que somos todos convidados, é como um horizonte para caminhar, é a ideia de maturidade pessoal, progressiva e acompanhada pela graça de Deus, e é proposta a todos nós, independentemente das nossas inclinações, e mesmo, ouso dizer, de nossas eventuais opções religiosas ou ateias.

Como diz João Paulo II na “Familiaris Consortio”, há necessidade de

“uma conversão contínua, permanente, que, embora exigindo o afastamento interior de todo o mal e a adesão ao bem na sua plenitude, se atua concretamente em passos que conduzem sempre para além dela.Desenvolve-se assim um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social do homem. É, por isso, necessário um caminho pedagógico de crescimento, a fim de que os fiéis, as famílias e os povos, antes, a própria civilização, daquilo que já receberam do Mistério de Cristo, possam ser conduzidos pacientemente mais além, atingindo um conhecimento mais rico e  e uma integração mais plena deste mistério na sua vida.”

 

Procurador Regional da República da 1ª Região, Dr. Paulo Vasconcelos Jacobina

 

Paulo Vasconcelos Jacobina

 Procurador Regional da República, Mestre em Direito Econômico pela UFBA

 

Fontes: http://www.zenit.org/pt/articles/a-ideia-de-pecado-e-o-debate-politico-publico

 

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