Uruguai: a esquerda volta de cara nova. Artigo de Silvio Falcón

Quem é o novo presidente, discípulo de Mujica. Como a renovação de quadros e o convite ao diálogo nacional foram chaves. O grande desafio do novo governo: aumento da violência, num dos “países mais seguros da América do Sul”.

O artigo é de Silvio Falcón, cientista político, publicado por La Marea e reproduzido
por Outra Palavras, 25-11-2024. A tradução é de Rôney Rodrigues.

Eis o artigo

A Frente Ampla é, há vinte anos, a principal força política no Uruguai. Ao contrário do que se poderia entender numa perspectiva europeia, este é um fenômeno sem precedentes na política latino-americana, em tempos de polarização e num contexto de ascensão de populismos. O sistema partidário deste pequeno país só mudou para garantir um lugar privilegiado a esta coligação de partidos de esquerda, que consolidou a sua presença institucional através das duas presidências de Tabaré Vázquez e do mandato de Jose Mujica. Os adversários da Frente Ampla têm sido os blancos e colorados: o Partido Nacional e o Partido Colorado, que durante o último mandato liderou a chamada coligação multicolor que levou Lacalle Pou à presidência.

Em 2019, o candidato da Frente Ampla, Daniel Martínez, venceu no primeiro turno (40,49% dos votos), mas foi derrotado pelo atual presidente por uma margem muito estreita (50,79% contra 49,21%). Essa experiência serviu à Frente Ampla para renovar a sua cara e aproveitar a força do seu poder territorial para construir a candidatura presidencial deste ano.

Nas eleições internas da Frente Ampla, uma espécie de primárias abertas a todos os cidadãos, os dois pré-candidatos que aspiravam a liderar a candidatura de esquerda vieram de cargos relevantes na estrutura departamental do país: a prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse, e o prefeito de Canelones, Yamandú Orsi. Este último contou com o apoio do Movimento de Participação Popular (MPP), força política dos antigos guerrilheiros tupamaros liderada pelo casal Mujica-Topolanski. A clara vitória de Orsi (59,1%) contra Cosse (37,6%) permitiu-lhe afirmar-se como candidato da Frente e, ao mesmo tempo, como sucessor de Mujica. A candidatura resultante aproveitou todo o capital político de formação, já que Orsi incorporou Cosse como candidato à vice-presidência, formando um poderoso contingente eleitoral com várias matizes.

Desde o retorno da democracia em 1985, a política uruguaia tem sido marcada por homens de uma geração similar – nascidos entre as décadas de 1930 e 1940 – como os ex-presidentes Sanguinetti, Batlle, Luis Alberto Lacalle ou os próprios Tabaré e Mujica. Nas fileiras da Frente Ampla, uma terceira figura completa este mapa geracional: o ex-ministro da Economia e ex-vice-presidente Danilo Astori. Estes antigos líderes morreram ou retiraram-se da linha de frente política devido à idades avançadas. O último a fazê-lo foi o incombustível ex-tupamaro Mujica, com um discurso contundente sobre as mudanças na política: “Os melhores líderes são aqueles que saem de um grupo que os supera com vantagem”. O legado de Mujica hoje leva o nome do novo presidente do Uruguai, Yamandú Orsi.

A direita uruguaia, porém, soube interpretar esta mudança geracional antes da esquerda, lançando Luis Lacalle Pou em 2019, e usando uma campanha presidencial que usou o poder da comunicação política. Qualquer uruguaio que votou em 2019 se lembra do jingle eleitoral dos blancos, que promovia mudanças positivas; uma modernização que contrastava com as antigas lideranças. “É agora”, dizia a comunicação da campanha. E então ele se fez presidente.

A impossibilidade de reeleição imediata no sistema presidencial uruguaio obrigou o partido de centro-direita que estava no poder a mudar de candidato. Álvaro Delgado, ex-secretário da Presidência do governo Lacalle Pou, foi o escolhido pelos blancos. No primeiro turno, Delgado (26,82%) ficou longe dos resultados obtidos por Orsi (43,92%), mas chegou ao segundo turno com a possibilidade de reeditar uma coligação de direita com o Partido Colorado (16,07%), os ultradireitistas de Cabildo Abierto (2,48%) e do Partido Independente (1,70%). A única saída para a direita se manter no poder exigia reavivar a coligação multicolor, mas nesta disputa eleitoral surgiu uma nova força populista (Identidade Soberana, 2,8% dos votos) que solicitou o voto nulo no segundo turno. Uma decisão que, face aos resultados, foi decisiva na eleição de Orsi.

Fonte: Site Instituto Humanitas Unisinos
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