Em 1924, aos 200 anos do nascimento de Immanuel Kant (em 1724), morreu Franz Kafka, pensador intocado pelo otimismo do projeto iluminista kantiano. O mesmo iluminismo que em Kant conduziria a humanidade ao governo do esclarecimento universal, guiado pela razão pública e pela ética do imperativo categórico, levaria Kafka, ao observar no século XX os efeitos de sombra e opressão produzidos pelo devir reverso e igualmente herdeiro da razão iluminista, a elaborar o quadro mais pessimista, enigmático e de encontro àquele projetado pelo otimismo kantiano.
Em menos de dois séculos, sob férreo controle da produção capitalista, a rota emancipatória idealizada pela razão cede lugar ao dominante paradigma da razão operacional e técnica. Embora iluministas como os séculos XVIII e XIX, os séculos XX e XXI nem ao longe podem ser pensados como kantianos. São bem kafkianas as marcas materiais e espirituais de seu devir, rumo ao abismo a que o capitalismo de catástrofe arrasta a humanidade nessa primeira metade do século XXI.
Haveria na kantiana Universidade de Königsberg, na Prússia do século XVIII, lugar para a apresentação do texto de Kafka “Um Relatório para uma Academia”, ou ao menos para a leitura de dois fragmentos aqui aleatoriamente tirados desse acutilante escrito e a seguir reproduzidos, que descrevem a fala de um homem para doutos acadêmicos sobre sua pregressa vida de macaco cinco anos depois de sua passagem da condição símia para a (dita) humana:
01. Não fazia cálculos mas sem dúvida observava com toda a calma. Via aqueles homens andando de cima para baixo, sempre os mesmos rostos, os mesmos movimentos, muitas vezes me parecendo que eram apenas um. Aquele homem ou homens andavam pois sem impedimentos.
02. Era tão fácil imitar as pessoas! Nos primeiros dias já sabia cuspir. Cuspimos então um na cara do outro; a única diferença era que depois eu lambia a minha e eles não lambiam a sua.
Conclusão: veio da natureza o que restou de humano no símio humanizado do relato de Kafka.