ARTIGO – A COMPLEXIDADE DO CRISTIANISMO

 

Passando um olhar panorâmico sobre a história do cristianismo, descobrimos que dois fatores, vindos de fora, o complexificam e dificultam descobrir nele a herança de Jesus de modo claro e inequívoco: a chamada ‘leitura grega’, que desde o século III dC influencia o movimento de Jesus, e o ‘fator iraniano’ (ou ‘zoroastra’), que, desde o século VI aC influencia o judaísmo e, indiretamente, o cristianismo, por meio da própria cosmovisão de Jesus. Vale a pena se aprofundar, mesmo superficialmente (como aqui) no tema da complexidade do cristianismo, pois ela dificulta e, em certos casos, impede uma visão clara das proposições de Jesus.

A leitura grega.

As sensacionais conquistas militares de Alexandre o Grande, da Macedônia, no Médio Oriente, no século III aC, fazem com que a cultura helênica se espalhe por grandes extensões de terras e culturas muito diversas e atinge cidades importantes da época, como Antioquia na Síria, Alexandria no Egito e mesmo a longínqua Roma, que desponta como centro virtual de um grande Império. Um sinal muito conhecido dessa avassaladora influência está no fato que os evangelhos, embora descrevam um movimento surgido numa cultura semita, estão redigidos em grego. É nesse contexto que o neo-platonismo, uma das mais significantes ‘ondas’ desse tsunami cultural, inunda o jovem movimento cristão, como descrevo em rápidas pinceladas.

Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino Plotino de Licópolis (203-269) aparece em Roma, na época centro de um Império em rápido crescimento, e inaugura ali uma escola de filosofia neo-platônica para jovens da elite intelectual romana, ele alcança em poucos anos um renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da intelligentia do Império Romano, de modo convincente, um modo grego de se entender o homem e a história, especificamente uma interpretação platônica do ser humano e do sentido de sua existência. Essa filosofia, na realidade uma arte de viver, não deixa de penetrar no cristianismo letrado e intelectualizado da época, notadamente por meio dos chamados ‘Padres da Igreja’, que são os intelectuais cristãos do primeiro milênio do cristianismo. Através de seus numerosos escritos, os Padres da Igreja tentam fazer uma síntese entre o pensamento platônico e a visão evangélica do mundo. Com eles, o platonismo se ‘cristianiza’, ao mesmo tempo em que o cristianismo se ‘platoniza’.

As ideias-mestres do platonismo são conhecidas: abaixo do mundo divino, não atingido pelo mal, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas. O corpo humano, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: pode deixar-se seduzir pelas formas vãs da matéria, ou deixar-se fascinar pela luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas é capaz de tornar-se trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, ou melhor, da purificação do amor. O homem precisa partir do mundo material e se encaminhar para o que é espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria.

A maioria dos Padres da Igreja julga que o encontro entre neo-platonismo e cristianismo leva a um enriquecimento da mensagem de Jesus. Só alguns deles, como Basílio de Cesareia (330-379), percebem que, no processo da espiritualização, a perspectiva social, tão presente nos evangelhos, corre o perigo de desvanecer e que, por conseguinte, não se pode falar em ‘síntese’ entre cristianismo e neo-platonismo, já que os elementos da ‘fusão’ são heterogêneos. Seria antes um ‘amálgama’, um hibridismo, uma junção de elementos heterogêneos. Mas essa crítica não prevalece. Vence a ideia que o drama da vida cristã se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo têm de ser controlados e possivelmente eliminados,enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a êxtase, a contemplação de Deus. Pois, impregnado de um senso religioso agudo e místico, o neoplatonismo faz com que muitos confundam as coisas e não consigam mais distinguir com clareza a diferença entre ensinamentos de Jesus e ensinamentos de Platão.

Há de se ressaltar aqui que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível, e nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos.

Esse é o caso de Agostinho de Hipona (354-430). Ele faz parte de um grupo de amigos não cristãos, da África do Norte, que viajam de Cartago a Roma e depois a Milão, na companhia de Mônica, mãe de Agostinho, que é cristã. O grupo procura emprego na Itália, aos poucos renuncia a uma vida de prazeres e passa a procurar a sabedoria. É um grupo seleto, que cultiva altos ideais de vida, tem grandes intuições, formula excelentes orientações morais e segue um elevado modo de viver. Depois de tentar diversas filosofias de vida, o grupo entra em contato com a espiritualidade neoplatônica e, quase ao mesmo tempo, ao chegar a Milão, se impressiona com Ambrósio, bispo cristão, grande orador e figura de elevada estima moral. O grupo de amigos, então, se estabelece em uma propriedade rural num vilarejo nos arredores da cidade de Milão, chamado Cassiciacum. Ali, todos leem e trocam opiniões. São idealistas em busca de uma alma espiritual, que já deixaram para trás os prazeres da carne pecaminosa.

A situação dos escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões (7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal, faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, mas dificulta o senso evangélico. Em suas Confissões, Agostinho afirma que a sabedoria neoplatônica combina bem com a sabedoria bíblica, como deixa claro em dois trechos daquele livro: Se eu persistisse no sentimento salutar que deles (dos livros dos platônicos) tenho haurido, julgaria que, se alguém aprendesse só com esses livros (deixando de lado os livros bíblicos), também deles poderia alcançar o mesmo afeto espiritual (Confissões, 7, 26).

Notei que tudo de verdadeiro que li nos livros dos platônicos se encontrava neles (nos livros bíblicos) (Confissões 7, 27). Agostinho só enxerga originalidade no cristianismo em temas morais: ascese, obediência, humildade, controle do corpo, procura da vida perfeita, introspeção, organização da Igreja, patriarcalismo e, principalmente, a convicção inabalável de andar no caminho certo (dogmatismo). Nada transparece, nas Confissões, que se refira a um Deus que opta pelos sofredores, pelos escravos.

Após Agostinho ser batizado por Ambrósio, o grupo volta à África do Norte, onde o convertido vive alguns anos numa propriedade da família em Tagaste. Ele, finalmente, transforma essa residência numa ermida, onde – na companhia de alguns amigos igualmente convertidos ao cristianismo – vive uma vida monacal, enquanto é bispo da cidade. Uma linda trajetória de vida, mas, sinceramente, há de se questionar: Agostinho não será um idealista neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos? Em outras palavras: a ‘leitura grega’ da mensagem cristã combina com a genuína tradição de Jesus?

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